Enfrentar-se
Posfácio de Quotidiano de Luxo, de Júlia Barata. ed Tigre de Papel
O quotidiano, tal como a vida na canção do Godinho, faz-se de pequenos nadas. Micro-ações diariamente praticadas, eterno retorno de gestos e problemas. Por mais conturbado o ponto de existência, a rotina é âncora nas ilhas de desordem da vida, impelindo-nos a sair de casa, enfrentar o mundo. A enfrentar a esquizofrénica leitura sobre o mundo que habitamos, mais ou menos conjuntamente, e a insuportável pressão de estarem sempre a acontecer coisas. Obedecendo a uma lógica muito própria, a rotina obriga a insignificantes ou radicais decisões: levantar da cama, levar filhos à escola, trabalhar com garra ou em saturação, arrastando dúvidas e dívidas.
Cumprir o quotidiano devolve-nos, pelo empenho que exige, uma aparente sanidade, mas não nos salva da sua orgânica voracidade. Da sensação de que, mal se entra nas solicitações do dia, logo outro se apressa a recomeçar a lengalenga (e dias de intervalos curtos, especialmente quando se dorme mal e a noite é um buraco escuro). Na vertiginosa espiral das semanas, acordamos sempre a uma – maldita ou promissora, dependendo da neura – segunda-feira!
No entanto, nenhum dia é igual ao outro, por mais que os sentidos desatentem nos pequenos nadas que fazem toda a diferença. Nenhum pequeno-almoço é rigorosamente idêntico: cereais ou iogurte, café com leite mais ou menos escuro, pão mais ou menos torrado, queijo e um cantinho de doce. Comer, dormir, higiene diária, sexo, pequenos vícios, continuam a dar-nos prazer porque entre diferença e repetição há todo um mundo de possibilidades. Então perguntamos: Que impacto têm tantos pequenos nadas da nossa vida? Que pessoa vamos sendo com o avançar do tempo?
O quotidiano, tal como um lintel, pode desabar. Talvez seja esse vulnerável equilíbrio que lemos /vemos nas páginas de Quotidiano de Luxo, de Júlia Barata. A obsessão confessional e diarística de desenhar o pequeno incidente, momentos mais ou menos desastrosos, vergonhas e sucessos, utilidade ou vazio, convida-nos a um passeio aos dias pelos seus olhos, os mesmos com que se vê a si. Às tantas, a autora interroga a motivação de desenhar as suas «situações» de vida (e de postá-las no Facebook): «Estou aqui nas histórias banais. Porque não escrevo sobre coisas importantes? Motivos tão corriqueiros como acumular likes. Festinhas no ego das redes.» Mas logo arruma a coisa com o slogan feminista: «O pessoal é político.» E pronto, há sempre um desenlace possível para a nossa história.
Ninharias de um quotidiano de «luxo», isto é, sem dramas de maior, aparentemente sem matéria «importante». Mas que melhor password senão as ninharias para nos deixar entrar empiricamente na vida de alguém? As ninharias ajudam a não julgar gratuitamente, uma vez que acedemos às suas dificuldades e frustrações, empatizando com o que nos é contado. Apesar dos gestos pertencerem a determinada Júlia Barata (artista e arquiteta portuguesa a viver na Argentina), que retrata uma temporada (entre 2016 e 2019) na periferia classe média de Buenos Aires (onde é preciso coordenar o horário do comboio), este livro extravasa o seu universo particular.
Nesse sentido, as questões da autora fazem eco noutros contextos e aspetos, por exemplo, das nossas vidas. A reflexão de uma mulher a aprender a ser mãe, a gerir a conjugalidade, a parentalidade, as suas neuras e a vida laboral (com as acrescidas dificuldades de viver numa língua e cultura estrangeiras, e aí definir o seu lugar) tornam-se muito familiares. Por exemplo, o difícil domínio do tempo – se está pouco ou muito tempo com o filho, os turnos e divisão de tarefas entre o casal, a nostalgia de como era a vida antes do filho, a alegria absoluta de uma criança a crescer e, no seu veloz crescimento, acompanharmos as mudanças de perceções e interações. A clássica queixa que todos – devorados por trabalhos, deveres e expectativas sociais – tantas vezes gritámos: «não tenho tempo para mim!» De como os dias se iniciam serenos e, num ápice, os pequenos azares e conflitos se apoderam das horas. A decepção de projetos que não chegam a bom porto, os mal-entendidos arrasadores, ou apenas o facto de perder um comboio. Estranharmos a idade que temos e a imagem, física e social. Assumirmos a contradição entre o nosso estilo de vida e as nossas opiniões sobre os estilos de vida em geral e dos outros. Ouvir as suas estúpidas chantagens enquanto mãe, mas também ser capaz das saídas mais airosas e conversas de proximidade com o filho: «Eu não sou mamã o tempo todo!, – Não?, – Não, tu não gostas de não ser filho às vezes?, – Sim.» Surpreender-se com as inesperadas perguntas de criança, que obrigam a repensar coisas essenciais e o modo de transmitir o bem maior que é a curiosidade. Pôr-se a jeito para as mirabolantes interpretações do fedelho: «a ti fazia-te bem um pouco de anarquia porque dás muitas ordens.»
Suspiramos, junto com a autora, sobre a vida de casal e a gestão de compromissos sociais com a família, arrependimento do que devia ter dito ou o que devia ter feito. Momentos em que tudo se torna impercetível num burburinho indistinto. As roupas, a acumulação, deixar de fumar, a mobilidade no quotidiano, mil projetos, dores, ansiedades e insónias, investir na calma sem largar o “bicho-carpinteiro” interior. Despachar é a palavra: tarefas, missões, tudo encaixar em gavetinhas de arrumação ilusória. Aturar clientes mais ou menos snobs, malabarismo de dois ou três trabalhos e afinal nada estar garantido, esbarrando contra a parede, com a mnemónica já fracamente sussurrada: «Eu não me apequeno não me apequeno.» Interiorizar a culpa quando tudo parece desmoronar, tal como o lintel. As idas ao psi, vício de argentinos, e subitamente tudo parecer mais leve com um antidepressivo. E desenhar também os dias em que nada tem para dizer porque, no fundo, isso quer dizer qualquer coisa.
No fim de contas, o mais potente nas ilustrações da Júlia é a sua desarmante sinceridade que alimenta a curiosidade dos leitores sem cairmos num voyeurismo pateta. Aliás, um desenho ironiza com o voyeurismo dela própria perante os exibicionistas de Facebook e o desejo de reconhecimento, do qual ela também padece. Como se o género autobiográfico de alguém que se conta a si mesmo, documentando os gestos para mostrar, tivesse o propósito de uma vida menos vã. E não será? No processo de acompanhar, com uma insuspeita solidariedade, o quotidiano desta super-(anti)-heroína —que se vê como «neurótica», vazia, monstruosa, em burnout, metamorfoseando-se em bicho raro—, percebemos que a autorrepresentação é deformada em função da lupa com que nos vemos. O desenho, a mais saudável droga, surge aqui como modo de se pensar e de nos conduzir aos nossos próprios dilemas, numa contaminação franca. Mas trata-se de um autoconhecimento sem atestado ou prescrição: a cada um as suas fórmulas e formulações, a cada um os seus azares, dúvidas, as suas merdas, acontecimentos a toda a hora, pequenos nadas que nos acendem.
Júlia Barata faz esse exercício de se observar nas coisas mínimas, enfrentar-se e partilhar-se. Às tantas desliga, desliga-nos e o silêncio invade a mancha gráfica. Prefere viver onde está e não num algures virtual, para logo voltar a ter vontade de se desenhar, mais e mais.
Marta Lança