Um pequeno pormenor

Um pequeno pormenor Haverá quem ache que uma coisa (a esmola que a mão direita dá) redime de certo modo a outra (as vidas destruídas que a mão esquerda tira). E haverá também quem sinta o embaraço que tal dilema lhe impõe. E a que não pode escapar: no nome de uma rua, de uma praça, diante de uma estátua pública que não pode deixar de ver, não pode agora deixar de adivinhar a sombra daqueles milhares de vidas roubadas até aí ignoradas, que agora nos assombram, que, essas, não podemos já deixar de ver, tão presentes como as estátuas do Conde. Do negreiro beneficente.

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01.01.2024 | por José Lima

László Magyar, explorador húngaro do séc. xix ou traidor Bantu?

László Magyar, explorador húngaro do séc. xix ou traidor Bantu? As peripécias de Ladislau Magyar têm respaldo nas consequências da inesperada proclamação da independência do Brasil, de 1822, que inflacionou o tráfico de escravos bantu forçando os esclavagistas ocidentais a apearem nas fontes de origem, numa altura em que o desenvolvimento das forças produtivas britânicas prescindia deste mercado, tendo frustrado as expectativas euro-internacionais com a promulgação do final do comércio esclavagista, de 1836. Tendo Portugal resistido até 1856, com paragem no sultão Nova Calabar, do Brasil, o explorador alcançou o estuário do Khongo em 1846, mas desembarcou em Benguela em 1848.

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28.12.2023 | por Armindo Jaime Gomes

O que fica por revelar no filme Segredos do Putumayo

O que fica por revelar no filme Segredos do Putumayo O filme Segredos do Putumayo, do realizador brasileiro Aurélio Michiles, centra-se no universo do ciclo da borracha na Amazónia peruana do início do século XX, e pretende pôr em foco o sistema de mão-de-obra escrava indígena e o consequente genocídio dos povos originários provocados por este negócio. O relato da tragédia é conduzido por um cônsul britânico, o irlandês Roger Casement (1864-1916), que viajou pelas margens do rio Putumayo para investigar as denúncias contra a Peruvian Amazon Company (PAC), empresa dirigida pelo peruano Julio César Arana em associação com investidores britânicos.

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19.06.2023 | por Anabela Roque

Entrevista a Kiluanji Kia Henda sobre Plantação, projeto para o Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas

Entrevista a Kiluanji Kia Henda sobre Plantação, projeto para o Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas É importante que uma obra pública (sobretudo um memorial) não mostre apenas uma face, mas que se abra a distintas leituras. Trata-se de uma plantação em luto, queimada, que traduz o lado lúgubre e funerário da plantação. E ainda faz homenagem à resistência dos escravizados pelo gesto de queimar a plantação e boicotar o regime de opressão. A plantação é o lugar onde o processo de desumanização ocorre.

Cara a cara

07.04.2023 | por Marta Lança

O Carnaval dos filhos de Yanga

O Carnaval dos filhos de Yanga Um carnaval fora de época celebra todos os anos a fundação da pequena cidade de Yanga, no estado mexicano de Veracruz. Nos primeiros dias de agosto, milhares de afromexicanos revivem o “príncipe africano” que, no século XVII, liderou uma revolta de escravos que obrigou a coroa espanhola a criar o “Primeiro Território Livre das Américas”: San Lorenzo de los Negros, nome antigo da quente Yanga.

Jogos Sem Fronteiras

28.02.2023 | por Pedro Cardoso

Quando os diabos dançam

Quando os diabos dançam Num momento indeterminado na costa do Pacífico da Nova Espanha, atual México, escravos africanos disfarçaram-se de diabos e desfilaram pelas ruas de pequenos povoados. Pediam aos deuses ancestrais a liberdade. Com máscaras de seres do inframundo e à cadência de harmónicas e puítas reinventadas, criaram a Dança dos Diabos. O ritual é uma das expressões máximas dos afromexicanos, minoria invisibilizada durante séculos e que só em 2019 foi oficialmente reconhecida com povo originário.

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02.09.2022 | por Pedro Cardoso

Pré-publicação | Eu, Tituba, Bruxa… Negra de Salem

Pré-publicação | Eu, Tituba, Bruxa… Negra de Salem Começou por me dar um banho no qual flutuavam raízes fétidas, deixando a água escorrer ao longo dos meus membros. Em seguida, fez-me beber uma poção da sua lavra e atou-me à volta do pescoço um colar feito de pedrinhas vermelhas. — Hás-de sofrer durante a tua vida. Muito. Muito. Estas palavras, que me mergulharam no terror, pronunciou-as com calma, quase a sorrir. — Mas vais sobreviver. Isso não me consolava! Ainda assim, emanava uma tal autoridade da pessoa curvada e enrugada de Man Yaya, que eu não ousava protestar. Man Yaya ensinou-me as plantas. Aquelas que dão o sono. Aquelas que curam as chagas e as úlceras. Aquelas que fazem confessar os ladrões. Aquelas que acalmam os epilépticos e os mergulham num bendito repouso. Aquelas que metem nos lábios dos furiosos, dos desesperados e dos suicidas palavras de esperança. Man Yaya ensinou-me a escutar o vento quando ele se levanta e mede as suas forças por cima das cubatas que se prepara para esmigalhar. Man Yaya ensinou-me o mar. As montanhas e os montes. Ensinou-me que todas as coisas vivem, têm uma alma, um sopro. Que todas as coisas devem ser respeitadas. Que o homem não é um soberano percorrendo o seu reino a cavalo.

Mukanda

27.08.2022 | por Maryse Condé

As histórias da história de África, entrevista a Isabel Castro Henriques

As histórias da história de África, entrevista a Isabel Castro Henriques A história dos muitos Outros é uma história autónoma, longa no tempo, muito para além da história colonial e dos períodos do colonialismo, que permite compreender todo o seu percurso e todo o seu passado histórico. Já em meados do século XIX, uma das figuras fundadoras da historiografia africana panafricanista e do pensamento africano anticolonial, o afro-antilhês, depois liberiano, Edward Blyden, afirmava que na muito longa história multimilenar africana, a colonização e a dominação colonial europeias, corolário lógico e previsível da escravatura e do tráfico negreiro, não representavam mais do que um momento a ser rapidamente ultrapassado.

Cara a cara

20.04.2022 | por Elisa Lopes da Silva, Bárbara Direito e Isabel Castro Henriques

Independência do Haiti: Culminar de um processo revolucionário de emancipação dos escravos

 Independência do Haiti: Culminar de um processo revolucionário de emancipação dos escravos A publicação, a 26 de agosto de 1789, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que estipulava que todos os homens eram livres e iguais, é um marco incontornável. O documento abriu novas expectativas, rapidamente defraudadas no que respeita aos mulatos e aos negros de São Domingos. Prova disso foram a tortura e a execução de Vincent Ogé, em 1791. Ogé deixou Paris, onde trabalhou com Julien Raimond6, e liderou uma revolta em São Domingos, próximo de Le Cap. Para o efeito, contou com o apoio dos Amis des Noirs, e foi instigado e apoiado por Thomas Clarkson, tendo, inclusive, recebido armamento em Inglaterra. Ogé, mulato livre nascido na ilha de São Domingos, liberal, apelou a interesses comuns de brancos e mulatos, ambos proprietários de escravos. Esta postura não o salvou de ser barbaramente torturado e executado. Antes de morrer, Ogé pediu clemência. A sua morte inflamou o debate sobre a questão colonial em França.

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16.03.2022 | por Mariana Carneiro

Ação de Graças, o luto do povo da Primeira Luz

Ação de Graças, o luto do povo da Primeira Luz Os perus, pão de milho, abóboras, amoras e bolos são a cara feliz do dia de Ação de Graças. Nesta celebração fofa que Hollywood nos impinge, as famílias unem-se e abraçam-se; os bons cidadãos ajudam os pobrezinhos que não têm que comer; milhares desfilam pelas ruas das cidades. A festa celebra o amor ao próximo e prepara os estômagos e ânimos para o Black Friday na virada das 24 horas. Oficialmente, a comezaina e arrebate de caridade têm origem lá no início da fundação dos EUA em terra indígena, quando o primeiro grupo de colonizadores europeus com intenções claras de assentar arraiais aportou às praias do que hoje é Massachusetts. Eram 102 e passaram para a História como os “pais peregrinos”. Era o ano de 1620.

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01.12.2021 | por Pedro Cardoso

O lugar do negro — A escravidão no cinema brasileiro

O lugar do negro — A escravidão no cinema brasileiro Os primeiros filmes brasileiros são realizados em 1897. Nove anos antes, o Brasil fora o último país ocidental a abolir a escravatura. Os portugueses começam o tráfego negreiro pouco após a descoberta e, durante 350 anos, deportam no mínimo 5 milhões de africanos, número que não inclui os desaparecidos no oceano. Soldados da conquista, mão-de-obra no campo e na cidade, empregados e artesãos, os africanos edificam o Brasil. Quando D. Pedro, herdeiro da coroa portuguesa e rei do Brasil, proclama a independência, em 1822, dois terços dos brasileiros são afro-descendentes, na sua maioria alforriados e livres. No entanto, durante décadas, o cinema oculta esse passado fundador, o cinema apaga a escravidão.

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30.04.2021 | por Ariel de Bigault

Um ciclo de debates para questionar a amnésia colonial do Porto e do país

Um ciclo de debates para questionar a amnésia colonial do Porto e do país “Há uma predominância de narrativas ligadas à história colonial e uma ausência de narrativas relacionadas com a escravatura. Não há qualquer menção na toponímia, nos monumentos ou em qualquer manifestação urbana no espaço público que relembre ou simbolize o passado escravocrata do Porto”, acrescenta. Ao trazer intervenientes de fora do espaço geográfico da cidade que reflectiram mais sobre o problema, a discussão de quinta-feira alarga-se obrigatoriamente aos casos de cidades como Lisboa e São Paulo e, no debate seguinte, também a Luanda.

Jogos Sem Fronteiras

27.02.2021 | por Isabel Salema

Transferência de conhecimento tecnológico africano em Portugal durante a Modernidade: pessoas escravizadas e cultivo de arroz nos rios Tejo e Sado

Transferência de conhecimento tecnológico africano em Portugal durante a Modernidade: pessoas escravizadas e cultivo de arroz nos rios Tejo e Sado Historiografias demasiado simplificadas têm (re)desprovido as pessoas escravizadas e os seus descendentes de qualquer papel histórico transformador; porém, alguns autores, como Judith Carney, Edda Fields-Black, Peter Wood e Daniel Littlefield, colocam o movimento de pessoas escravizadas da África Ocidental no centro de transferências tecnológicas e alterações agroecológicas associadas ao cultivo de arroz no continente americano. No lado europeu do Atlântico, esta linha de investigação não foi ainda desenvolvida. Propomos uma hipótese de pesquisa que procura superar a divisão colonial natureza-sociedade e o que tal implica de objetificação acrescida da pessoa negra escravizada, uma vez reduzida à sua condição metabólica. O nosso estudo contribui para uma abordagem crítica da história socioambiental do/a subalterno/a nas sociedades esclavagistas. A história largamente desconhecida do arroz no Sado e no Tejo está ligada à história por contar das pessoas negras escravizadas em Portugal. Este artigo oferece uma primeira formulação destas conexões.

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18.02.2021 | por Joana Sousa, Manuel Bivar, Miguel Carmo, Pedro Varela e Ricardo Ventura

Desenterrando a esquecida história da escravatura em Lisboa

Desenterrando a esquecida história da escravatura em Lisboa Apesar da importância da escravidão na formação de Portugal e do seu império ultramarino, esta horrenda história da submissão “negra” é completamente abafada na memória pública lisboeta. Em contraste ao (recentemente criado e bem tardio) Museu da História e Cultura Afro-Americana nos EUA ou ao Museu Afro-Brasileiro em São Paulo, Brasil, não há museus deste género ou um memorial público de condenação tal como em Nantes, França. Mais recentemente, apesar de tudo, um museu de escravatura foi criado no histórico mercado negro “Mercado de Escravos” no sul de Portugal, no porto de Lagos, o qual é considerado o primeiro local de troca comercialde escravos africanos na Europa. No entanto, Lisboa permanece ainda largamente calada face ao seu legado de terror branco e cativeiro negro.

Cidade

04.02.2021 | por Yesenia Barragan

Mulheres negras e a força matricomunitária

Mulheres negras e a força matricomunitária E as mulheres foram fundamentais para desenhar novas formas de convivência e possibilidades de viver em sociedade, articulando formas de compreender as dinâmicas do escravismo. Aproveitando seu trânsito dentro das casas-grandes e senzalas, igrejas e ruas, para transmitir ideias revolucionárias para fora das estruturas pensantes escravocratas, elas foram fundamentais para a criação de planos de sobrevivência, rotas de fuga e a construção, por grupos de diferentes etnias, de espaços afastados das casas-grandes e senzalas: os terreiros e os quilombos, lugares que reelaboraram a força subjetiva africana de organização e de humanização desses indivíduos.

Mukanda

20.12.2020 | por Katiúscia Ribeiro

A história colonialista e escravocrata dos Donos de Portugal: o caso dos antepassados do banqueiro Fernando Ulrich

A história colonialista e escravocrata dos Donos de Portugal: o caso dos antepassados do banqueiro Fernando Ulrich Fernando Ulrich é trisneto de João Henrique Ulrich (1815-1885), um homem que enriqueceu com o tráfico de pessoas negras escravizadas e que a partir daí construiu o vasto império empresarial da família. Nascido em Portugal, este homem sinistro enriqueceu na costa Angolana e no Rio de Janeiro com a venda clandestina de pessoas, quando já era proibida a entrada de novos escravizados no Brasil. De regresso a Portugal, passou a dominar diversas empresas, ligou-se à banca e foi deputado da monarquia.

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12.11.2020 | por Pedro Varela

«Chão de Massapé»

«Chão de Massapé» A opção por Portugal como país de emigração, resulta de inúmeros fatores, que vêm dos aspectos históricos da colonização, da proximidade da língua, e do reagrupamento familiar que o percurso das gerações tem provocado. A tudo isto se junta a necessidade de mão-de-obra ciclicamente sentida no país, e que vem colmatando recorrendo a este contingente, “mais ou menos voluntário”.

Cidade

10.08.2020 | por Elsa Fontes

Visita à Setúbal Negra (séc. XV-XVIII): Desocultar a história local através da educação não-formal

Visita à Setúbal Negra (séc. XV-XVIII): Desocultar a história local através da educação não-formal O presente artigo dá conta de um roteiro sobre a presença negra em Setúbal, nos séculos XV a XVIII, concebido enquanto “aula-passeio”, espaço de educação não formal sobre o colonialismo português. Pretende-se suscitar o rompimento com a narrativa lusotropicalista, entender a escravatura como um sistema complexo e parte de conflitos geopolíticos globais e conduzir os participantes na “descoberta” de como os outros estão, afinal, em nós.

Cidade

10.03.2020 | por Ana Alcântara, Carlos Cruz e Cristina Roldão

Nem Pessoa, nem Eça

Nem Pessoa, nem Eça Zenith assegurou que Fernando Pessoa «escreveu aquelas coisas citadas» e que isso «desqualifica o seu nome para ser associado a iniciativas da CPLP. O seu pensamento evoluiu, felizmente, e em 1935 não teria subscrito àquelas afirmações..., mas também não chegou a renunciá-las. Aliás, pode nem se ter recordado de as ter escrito. Escreveu-as, porém, e compreendo e concordo com a revolta das pessoas cuja dignidade feriu.»

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18.02.2019 | por Eurídice Monteiro

a dívida impagável: lendo cenas de valor contra a flecha do tempo

a dívida impagável: lendo cenas de valor contra a flecha do tempo A dívida impagável, enquanto imagem dialética, ajuda a ler o valor simultaneamente nas cenas econômica e ética, e como o capital é a mais recente configuração da matriz moderna de poder, contando com dispositivos de conhecimento (conceitos e categorias), uma gramática ética (princípios e procedimentos) e arquiteturas jurídico-econômicas (práticas e métodos), que derivam sua força de como a necessidade opera por meio de separabilidade, determinação e sequencialidade.

Mukanda

04.10.2018 | por Denise Ferreira da Silva