E o céu mudou de cor - excerto

E o céu mudou de cor - excerto Eu tinha medo de que o Mateus descobrisse que eu andava a mexer nas coisas dele. Mas, mesmo assim, não recusei o desafio. Despedimo-nos e fomos cada um para o seu caminho. A caminho de casa, dei por mim, mais do que uma vez, a pensar naquela ligação que o Marley tinha feito. Estava dividido. Parte de mim estava desmoralizada com a ideia de que o castelo do texto “As Belezas da Cidade-Baixa” podia não ser aquilo que eu imaginava. E a outra parte preferia acreditar que o castelo descrito na carta não era o mesmo castelo da Cidade-Baixa. Esta última, defendia que não se tratava de nada mais do que a fértil e sempre conspiradora imaginação do meu primo a armar mais uma das suas. Já na minha rua, curvei-me para amarrar os atadores e deparei-me com o Didi. Ergui a cabeça. Cheirava a cigarro, cerveja e não dizia coisa com coisa. – Tens aí cem kwanza? – chutou, enquanto andava num passo descoordenado.

Mukanda

09.06.2023 | por Israel Campos

Uma abordagem crítica do romance “A Última Lua de Homem Grande”, de Mário Lúcio Sousa (parte II)

Uma abordagem crítica do romance “A Última Lua de Homem Grande”, de Mário Lúcio Sousa (parte II) Inserindo vários monólogos de Amílcar Cabral consigo próprio, vazados e lavrados em modo diarístico na sua depois desaparecida, ou, melhor, surripiada agenda azul, o romance 'A Última Lua de Homem Grande' pretende ser ser uma espécie de reconstituição póstuma dessa mesma agenda azul e de eventos marcantes da vida e da obra de Amílcar Cabral, esse Morto Imortal, cujos dilemas, paradoxos, ambivalências e notável coerência do ser e do estar são traçados à saciedade nesse deslumbrante e cativante, mas também trágico perfil social e psicológico de Amílcar Cabral que é o romance A Última Lua de Homem Grande, doravante um marco fundamental do percurso literário de sucesso de Mário Lúcio Sousa que vem, aliás, marcando com um verbo muito próprio e luzente as letras caboverdianas contemporâneas, tornando-se assim por mérito próprio um dos maiores, mais criativos, imaginativos e produtivos escritores

Mukanda

22.09.2022 | por José Luís Hopffer Almada

Uma abordagem crítica do romance “A Última Lua de Homem Grande”, de Mário Lúcio Sousa (parte I)

Uma abordagem crítica do romance “A Última Lua de Homem Grande”, de Mário Lúcio Sousa (parte I) Lido e/ou ouvido o impressionante, poderoso e sempre cativante poema “Kabral ka More”, de Emanuel Braga Tavares (o saudoso Xanon), debrucemo-nos agora e mais detalhadamente sobre o livro que aqui nos traz e que certamente teve a sua génese mais remota nessa primeira vez que Mário Lúcio Sousa resolveu, ainda menino e por inexcedível curiosidade infantil, espicaçada pelos tempos de festiva ruptura com o statuo quo colonial-fascista, copiar (e, certamente, decorar) o poema de Emanuel Braga Tavares e fazê-lo ressoar entre os colegas meninos e os mais adultos da sua vila natal do Tarrafal, poema esse que para sempre mudou a vida dele e de todos nós, crescidos e amadurecidos nesses férteis e irruptivos tempos pós-1 de Maio de 1974.

Mukanda

22.09.2022 | por José Luís Hopffer Almada

A literatura, uma arte triunfal. Entrevista a Lídia Jorge

A literatura, uma arte triunfal. Entrevista a Lídia Jorge Enquanto escritora sinto-me uma construtora da vida marginal, ou mais propriamente uma espécie de testemunha do tempo que passa. No plano da mudança social, o facto de nos termos integrado na Europa, depois da Revolução, colocou em estado de stress um país que mantinha demasiados traços arcaicos, e o percurso rápido que precisou de fazer pôs em evidência conflitos profundos da sociedade portuguesa. Foi necessário um esforço estoico por parte da população. Em situações desse tipo, as questões ontológicas colocam-se com grande agudeza. Faço parte do grupo dos escritores que tornaram essa mudança social e histórica literariamente visível, mas a partir do palco interior das personagens, a partir de uma olhar individual transfigurado.

Cara a cara

20.05.2022 | por Margara Russotto e Patrícia Martinho Ferreira

Prefácio do livro "Sinfonia em Claro-Escuro" de Elsa Fontes

Prefácio do livro "Sinfonia em Claro-Escuro" de Elsa Fontes Embora não seja uma obra concebida para agradar um grande público é, no entanto, uma sucessão de oferendas, sobretudo no que se refere ao amor que tem pela família, à admiração que cultiva por alguns amigos ou sua memória, ao carinho que sente pelas terras por onde andou e que lhe deram um olhar maior sobre o mundo, suas gentes e diferenças. Trata-se de um livro de pormenores e lembranças, de luta e exposição só possíveis de transmitir de forma tão forte e incisiva pela escrita em primeira pessoa.

Mukanda

05.11.2020 | por Dina Salústio

A realidade em estado de palavra: notas a partir d’os Papéis do Inglês, de Ruy Duarte de Carvalho, e de fragmentos conradianos

A realidade em estado de palavra: notas a partir d’os Papéis do Inglês, de Ruy Duarte de Carvalho, e de fragmentos conradianos Gostaria de propor que o recurso a duplos parece sugerir que perceber a si envolve fazer-se outro. Ou seja, se ao falar do outro digo de mim, apenas tomo contato com minha própria existência na relação de alteridade e configurando “outros”. Estas seriam, em minha opinião, algumas das proposições que surgem da trilogia: 1) ao dizer do outro, digo de mim; 2) para me conhecer, necessito me dizer ao outro; 3) para me perceber no mundo, preciso tornar-me, também, uma alteridade.

Ruy Duarte de Carvalho

08.10.2019 | por Anita Martins de Moraes

“Essa dama bate bué!” - PRÉ-PUBLICAÇÃO

“Essa dama bate bué!” - PRÉ-PUBLICAÇÃO Sonhou que via Luanda lá de cima. No alto do Morro da Cruz, um mpungi gigante de marfim equilibrava-se na sua ponta. No Morro da Fortaleza, outro mpungi igual. Da terra chegou um sopro grave que subiu pelas pontas maiores dos mpungis. Este alcançou as nuvens, e o céu palpitou em resposta. O barulho feito pelo céu espalhou-se por onde lhe levou a vontade. Depois juntaram-se marimbas a tocar na Corimba e mukupelas na Samba.

Mukanda

29.11.2018 | por Yara Monteiro

A nossa alegria chegou - pré-publicação

A nossa alegria chegou - pré-publicação Alguns mamíferos sabem que vão morrer. Estes três sabem que podem morrer hoje. — O sol tem cores que nunca ninguém viu — diz Ira. Atrás dele, Ossi abre os olhos. À frente, Aurora, também. De tão colados, a voz vibra nos três. — Que cores? — pergunta Ossi. — Cores sem nome, não as conseguimos ver — diz Ira. — Ouvi isto uma vez, lá na cidade. — Há cores que não conseguimos ver?! — Aurora faz uma pala com a mão. O sol dá-lhes em cheio. Três corações, seis pulmões, biliões de nervos numa cama de rede, tórax com tórax, boca com nuca, côncavos, recôncavos, convexos. Jovens como a jovem flor do cacto de Alendabar, a praia onde acordam.

Mukanda

12.09.2018 | por Alexandra Lucas Coelho

O cativante esplendor literário de Germano de Almeida

O cativante esplendor literário de Germano de Almeida É nessas incursões históricas, nessas narrações, nessas falas, a mais das vezes pejadas e investidas de ironia e revestidas de muita mordacidade e sátira do verbo sempre livre e bem-humorado, intrinsecamente pluralista do escritor, que se vaza, se entretece e se mostra em toda a sua plenitude sociocultural e político-ideológica e no seu cativante esplendor literário o olhar policlínico de Germano Almeida.

A ler

03.07.2018 | por José Luís Hopffer Almada

Um apocalipse comosgónico, sobre "Deus Dará"

Um apocalipse comosgónico, sobre "Deus Dará" “Mas se a história for o arco, o narrador será o arqueiro que liga os mortos aos vivos. Os índios sabem que os mortos dão flor e fruto, e a sombra deles vai longe no horizonte.” Da chegada dos navegadores portugueses e da insistência historiográfica em falar de descoberta (esquecendo a invasão, a mortandade, a exploração, a colonização) às manifestações contra a Copa do Mundo, de Machado de Assis a Caetano Veloso, da prosa mais arrumada ao estilhaçar de géneros literários, com imagens, recortes e tudo, dos emigrantes que ajudaram a definir o Rio de Janeiro às UPP que instauram o estado policial nas favelas, quase nada do que é, foi ou será o Brasil que conhecemos ou queríamos conhecer é estranho a este livro e, mais importante, nada surge aqui por acaso ou vontade de fazer bonito numa qualquer caracterização arrumada do que é ou não esse Brasil.

A ler

05.07.2017 | por Sara Figueiredo Costa

“Nunca pediria asilo à embaixada portuguesa, com medo de ser entregue”, entrevista a José Eduardo Agualusa

 “Nunca pediria asilo à embaixada portuguesa, com medo de ser entregue”, entrevista a José Eduardo Agualusa Pessoas que se sentiram abandonadas,de repente os seus patrões, que lhes davam ordens, passaram do campo socialista para o capitalista sem nenhum problema. Tudo aquilo que eles tinham feito, morto e torturado, em nome de um ideal socialista, tinha deixado de ter sentido. Essas pessoas sentem, algumas delas são muito atormentadas. Outras não. Outras também mudaram de lado com os patrões.

Cara a cara

13.06.2017 | por Nuno Ramos de Almeida

O coma do criptozoólogo Svart através da chuva

O coma do criptozoólogo Svart através da chuva Em 2008 o escritor luso-sueco Miguel Gullander acompanhou uma expedição pela mata angolana na pegada da palanca negra, na qual se inspirou para escrever o romance "Através da Chuva". Entre vários episódios alucinantes, cruzamo-nos com um curioso protagonista, o criptozoólogo Svart.

Cara a cara

05.04.2017 | por Marta Lança

Eu mesma - entrevista a Djaimilia Pereira de Almeida

Eu mesma - entrevista a Djaimilia Pereira de Almeida Uma pessoa nas minhas condições não tem propriamente onde regressar, tirando os meus bairros. Pelo contrário, e pensando no tópico da auto-descoberta, parece-me que o mais provável é uma pessoa encontrar-se enquanto faz outra coisa, enquanto procura outra coisa, como alguém que encontra uma tesoura quando estava à procura de um tubo de cola. O que me parece inalcançável é imaginar que posso reclamar o título de descobridora daquilo que encontro por acaso e quando não estava à espera.

Cara a cara

16.09.2015 | por Marta Lança

A Sul. O Sombreiro - pré-publicação Pepetela

A Sul. O Sombreiro - pré-publicação Pepetela Manuel Cerveira Pereira, o conquistador de Benguela, é um filho de puta. O maior filho de puta que pisou esta miserável terra. Pisou no sentido figurado e no próprio, pisou, esmagou, dilacerou, conspurcou, rasgou, retalhou. O filho de puta admito ser apenas no figurado, pois da mãe dele pouco sei, até dizem ter sido prendada senhora e de bem. Embora quem tal crocodilo deixou crescer no ventre pomba não deveria ser, afirmam os entendidos. Mas mereço eu, desgraçado padre, julgar o ventre de donas bem casadas?

Mukanda

06.09.2011 | por Pepetela