Lisboa assenta em trabalho precário, mal pago e por turnos. António Tonga
António Tonga tem 32 anos, é angolano nascido e criado na diáspora. Há cerca de uma década que trabalha por turnos no aeroporto, e é militante antirracista. Fundou o coletivo Consciência Negra e faz parte do movimento Em Luta. Tem participado em protestos contra a violência policial, pela habitação digna e contra a glorificação do colonialismo, defendendo memória e justiça histórica. A sua ação centra-se na luta contra o racismo estrutural e na valorização da resistência negra em Portugal.
António Tonga
Porque escolheu viver em Lisboa?
Não escolhi viver em Lisboa, nunca fui o maior fã, aliás, sempre me senti desconfortável em Lisboa, mas as circunstâncias da vida empurraram-me para tal. Partilho casa com companheiros de vida e luta.
Que transportes usa?
De momento, como tenho dois trabalhos (um full-time e part-time), desloco-me cada vez mais de carro. Mas sempre usei o comboio da ponte e os autocarros da margem sul (TST) e acompanhei as mudanças no paradigma da mobilidade. É tudo muito orientado para o funcionamento desta cidade-montra, onde somos parte do backstage.
Quais são os problemas mais gritantes de Lisboa?
O projeto de cidade, sem dúvida. Lisboa é central para o mito de Portugal como cantinho à beira-mar plantado. Porém, é uma cidade que volta costas a quem a constrói. Apesar das recentes melhorias à mobilidade é ainda francamente insuficiente. Os comboios estão sempre sobrelotados, os autocarros também. Um pequeno exemplo: a rede de bicicletas públicas é cretinamente negada aos habitantes de boa parte dos bairros, inclusive da região central de Lisboa, sob a desculpa classista de não ser possível assegurar a inviolabilidade das mesmas.
Como são os acessos ao aeroporto?
No aeroporto, local cada vez mais negro e imigrante e sempre periférico, não há estacionamento para os trabalhadores que têm de estar uma hora antes de entrar no serviço para conseguirem estacionar nos Olivais ou no Prior Velho. Muitas vezes têm os seus veículos rebocados.
A verdade é que o espetáculo de Lisboa funciona cada vez mais com base em trabalho precário, mal pago e por turnos, impondo um estilo de vida anti-social e cinzento a um número cada vez maior de pessoas e famílias, que são obrigados a começar as suas jornadas às cinco da manhã, a partir da periferia rumo ao El Dorado.
Como é a situação da maioria da população africana e afrodescendente na Grande Lisboa?
É indesmentível que existem cada vez mais setores integrados, mas continua a haver uma segregação territorial e uma divisão de trabalho que separa categoricamente africanos e afrodescendentes do conjunto da população. Talvez por isso o poder político não tenha interesse em que se discrimine dados e estatísticas pelo marcador étnico-racial. Preferem continuar a trabalhar com percepções, em vez de trabalhar com a realidade.
Por um lado, temos a realidade de segregação que referi, por outro, uma presença muita marcada, celebrada e de certa forma mitificada da Nova Lisboa, onde Portugal desfila a sua multiculturalidade e a sua integração. Como reconciliar as duas realidades aparentemente contraditórias entre si?
Essa Nova Lisboa cantada e idealizada existe?
A Nova Lisboa, dos artistas negros de classe média crescente, da influência da cultura negra e suburbana, é uma face da moeda. Mas percebemos o tratamento hipócrita. O Estado não nos trata como potenciais melhores do mundo, ou embaixadores da nossa cultura, mas enquanto negros: uns normais e outros especiais. Cresci a ouvir que fulano é um negro diferente, não é como os outros, é negro por fora mas branco por dentro.
Enquanto essa armadilha ardil não for rompida, vai-se consumindo a nossa música, dança, e outras manifestações culturais, vai-se parecer trendy, moderno, e inclusivo, mas rejeita-se o diagnóstico das condições que são, por sua vez, o fermento para essas manifestações culturais pulsantes e vivas.
Que lugares escolheria como modo de Memorialização da presença africana e da história colonial? Porquê?
Não faço questão de um lugar físico, o debate é central e necessário, e existem suficientes lugares simbólicos. O lugar que me interessa é o espaço no imaginário, e aí elenco o centro da discussão sobre a Portugalidade. Se a cola que une, do Minho ao Algarve (passando pelas ilhas), as gentes de Portugal é a retórica dos “Descobrimentos”, então a memorialização da história colonial e escravocrata, como factor humano director do “sucesso” desta empreitada, é o aspeto central de para onde vai a Portugalidade. Todos o sabem, a extrema-direita sabe, o centrão sabe, os guardiões do pensamento académico também, e por isso resistem e resistirão sempre a esta discussão. Naturalmente ela tem de ser feita. Inevitavelmente o quem somos e de onde viemos será procedido de: «dito isto para onde raios estamos a ir?»
Falou da necessidade de reconhecimento que o movimento anticolonial esteve na base do 25 de Abril, explique melhor.
Aí entra a questão do 25 de Abril, e a conclusão incómoda e transformadora de que a libertação deste país só foi possível após o deflagrar da luta pela libertação de quem mais foi oprimido! Vejamos a ironia brutal: não só não há reconhecimento sério nem qualquer tipo de reparação, como ainda assentamos a liberdade num ato de violência transformadora organizada, que jorrou sangue negro e que fez brotar também os belos cravos da revolução.
As lutas de libertação em África.
Sendo concreto: não fosse a derrota política e militar portuguesa nas matas da Guiné mas também a natureza política económica e logística da Luta de Libertação no seu conjunto, e jamais surgiria o movimento dos Capitães, com a acutilância com que surgiu. É impossível igualmente dissociar o apoio popular ao golpe, e o consequente nascimento da revolução, da exaustão do povo português face à guerra, fuga ao recrutamento, mortes, incapacidade e escassez devido ao desviar de fundos para o esforço de guerra, tensões nas alturas do regime, etc.
No final de tudo relembramos o papel não subestimável para o Verão Quente e a reorganização estudantil, da tensão do Maio de 68 impulsionada pela derrocada de França na Guerra da Argélia. Normalmente, os impérios caem perante as suas próprias contradições.
Os movimentos antiracista e as pessoas negras estão a ter mais voz no espaço público em e sobre Lisboa? O que tem mudado?
Sim, sem dúvida. Para além do inescapável avançar dos tempos, e a marcha das sucessivas gerações de imigrantes e a sua descendência, isto é, o sucesso dos nossos pais em sobreviver e criar raízes possibilitou alguma integração orgânica, mas também forçou mais casos excepcionais que furaram a redoma erguida à nossa volta. Hoje é virtualmente impossível calar o protesto e a expressão negras em todo o lado, a toda a hora. Essa impossibilidade, no entanto, não impede a resistência. Vejamos este momento particular no tempo, e ainda se percebe que as pessoas negras não têm lugar na política. Tanto à direita como também, mais dolorosamente, à esquerda, continuamos a ser a excepção e o fetiche, e não parte da regra. Quem são os comentadores negros nos espaços de informação? No entanto, quando se matam negros, e é preciso pacificar-nos, percebemos sim que afinal a nossa existência é monitorada e, afinal, as mulheres negras intelectuais até podem ser encontradas. Existe uma diferença cada vez maior em relação aos tempos de Fernando Cá. Hoje luta-se cada vez mais contra a brutalidade policial, pela revisão dos manuais escolares, pela criminalização do racismo, pelo direito à nacionalidade para os que nascem em território português independentemente do estatuto legal dos pais.
Lisboa é uma cidade algo segregada? Que forma toma essa segregação?
É uma cidade que abre e se fecha muito negra e racializada, mas que destrata essas pessoas, não recebendo as suas crianças, tendo incapacidade em oferecer alternativas de mobilidade que dêem conforto e dignifiquem o trabalho dessas pessoas. O desafio para Lisboa é decidir entre o racismo aberto, a xenofobia e a islamofobia do império do passado, e a integração plena: um parque habitacional para todas as pessoas, uma cidade com acesso para quem a vive e a constrói. Cada vez mais a utopia é achar que a Lisboa das falsas aparências da multiculturalidade performativa, das “rendas acessíveis” e do equilíbrio entre a cidade espetáculo e a vida pode continuar a existir. Decidam-se.