Os transportes funcionam numa estratégia colonialista. Marinho de Pina

Marinho de Pina tem 43 anos, e há vinte que vive entre Lisboa e a Guiné Bissau, de onde é natural. Tem formação em arquitetura e tabalha como artista, músico, performer e poeta.  


Marinho de PinaMarinho de PinaNo seu percurso, o comboio é um meio de transporte fundamental…

 Moro em Mem Martins, Sintra mas boa parte da minha vida acontece em Lisboa: amigos, amores, arte, cultura, trabalho (quando há), pelo que recorrentemente tenho de usar o comboio, principalmente. E o o metro e o autocarro, secundariamente. o comboio é vital para pessoas que vivem nas periferias de Lisboa, a forma mais rápida e eficiente de acesso à cidade e de intercomunicação entre algumas cidades periféricas. O comboio acaba por tornar-se não apenas um meio de transporte mas, na expressão metafórica de vida em pêndulo, as pessoas a ioioar, marcando a manhã e a noite, entre as suas casas e Lisboa, que nos lembra que Lisboa não é nossa.  

Quais são problemas mais gritantes de Lisboa? 

O problema principal de Lisboa é a centralização: tudo, ou quase tudo (tirando a violência policial), está concentrado em Lisboa: a arte, a cultura, o lazer, os trabalhos e as instituições. Descentralizadas, as pessoas da periferia não teriam de passar a vida pendularmente entre Lisboa e as suas moradas. Para agravar a situação, a gentrificação repele as pessoas, cada vez mais, para os anéis circulares encarecendo a própria periferia que um dia já foi um refúgio para os menos favorecidos, e onde agora têm dificuldade em permanecer. Lisboa virou uma montra para turistas e investidores, não parece mais um espaço para habitar, só de passagem. Disso nasce a segregação, a cidade torna-se de quem pode pagar, e o preço é alto e sobe e sobe, balão sobe. 

O que acha da situação da maioria da população africana e afrodescendente na Grande Lisboa?

A maioria vive nas periferias, algumas pessoas em contextos mais deprimentes e com acesso a transporte bastante condicionado e controlado. É de notar que, em alguns bairros, o transporte começa a opera entre as 5 e as 6 da manhã, precisamente para levar as pessoas para Lisboa, para trabalhar, mas cessa entre às 9 e a 10 da noite, quando devolve todos quanto puder para os seus bairros. Os transportes funcionam dentro de uma lógica laboral, numa estrutura e estratégia colonialista. Durante o colonialismo, em Bissau, por exemplo, a cidade esvaziava-se às seis da tarde, os indígenas (pretos) tinham de voltar para as suas aldeias e deixar a cidade para os cidadãos (brancos), e para entrar na cidade precisavam de um documento. Hoje é a mesma lógica, as pessoas vivem aprisionadas nos seus próprios bairros, numa espécie de senzala urbana, o documento para entrar na cidade chama-se “navegante”.  Quem quer ficar em Lisboa para ir a eventos culturais ou frequentar espaços de lazer que normalmente funcionam mais no período pós-laboral ficam sem essa hipótese. a dificuldade de acesso a outros espaços que não os do trabalho coloca as pessoas num limbo de apropriação/rejeição, desejam e procuram usar a cidade, ao mesmo tempo rejeitam-na, porque sentem-na hostil e fechada.  

Que lugares escolheria como modo de Memorialização da presença africana e da história colonial? Porquê?

Não vejo necessidade de memorializar a presença africana em Lisboa quando é uma presença bastante presente e presentemente. É constante, está grafada e grava-se no quotidiano da cidade. Lisboa respira África e isso é parte do seu charme, razão porque devia reconhecê-lo mais. Há uma anedota: o que é amarelo por fora e preto por dentro? Carris. As lojas do Aima, as estações e paragens de transportes públicos, os grandes centros comerciais são espaços de não memorialização, mas materialização da presença africana. É certo que memoriais oficiais podem e têm o seu valor, mas há um risco de transformar a “presente” presença africana em “passado”, num espaço de memória, ou uma “folclorização de reconhecimento”, quando é viva e incontornável e manifesta-se no corpo e na alma das pessoas que cruzam a cidade o tempo todo.

Sente que os movimentos e pessoas negra estão a ter mais voz no espaço público em e sobre Lisboa? O que tem mudado?

Sim, definitivamente há mais vozes negras e mais presentes, mas creio que poucos realmente têm voz, se isso significar ter ouvidos e, portanto, consequência. Se cada fala de pessoas e movimentos negros é recebida com repercussões negativas pela parte dos gestores da cidades e, provavelmente, pela maioria da população branca em geral, o que talvez explique a ascensão da extrema-direita e o aumento de discursos racistas. Respondem sempre preocupados em descrebilizar protestos e denúncias, às vezes de forma até violenta, acusando sempre essas vozes de exageradas e histéricas. Mas, apesar dessas resistências, a presença negra multiplica-se: artistas, rappers, escritores, políticos, professores, pessoas a ocupar o espaço público, mostrando presença e ação” e, mesmo devagar, mesmo atiçandos ódios de brancos conservadores, isso cria mudanças. Por exemplo, o tabu da violência colonial é hoje publicamente quebrado, questionado os “descobrimentos” e afins. O caminho é essas vozes terem consequências cada vez maiores, influenciarem políticas, instituições e o dia-a-dia pois, sem isso, vai ser um voz à la Benetton: presença sem poder. Apesar de tudo, é visível que a presença africana na cidade tem mudado, não se resumindo apenas em ficar no fundo, como mero trabalhador e sujeito passivo, embora seja preciso ainda uma maior expressividade.  

Lisboa é uma cidade segregada?

Lisboa é bastante segregada. A segregação é muito baseada na classe social. Por causa de situações e de toda a história portuguesa e de migração, a população negra tem tido menos oportunidades de subir socialmente, o que se reflete também na cidade. A maioria da população negra vai para as periferias, resultados de décadas de empobrecimento sistémico. Lisboa é um Airbnb, com boa parte da população negra a servir às mesas e a fazer a cama dos turistas, trabalhando para a cidade, mas não podendo habitá-la. A cidade multicultural acaba por ser uma caricatura, preferindo mais a pele e a maquilhagem, porque quem decide, quem gere e controla a cidade e os cargos políticos continua a ser o mesmo branco de antigamente. Então a presença africana é só isso, presença. A diversidade só será realmente real quando começar a ocupar os espaços de decisão. Lisboa é segregada pelo dinheiro e pela cor da pele, com a polícia a encostar pessoas não brancas à parede, porque é preciso mostrar quem é de cá e quem pode ser mandado de volta à sua terra, mesmo que seja uma terceira geração de gente nascida cá, mas a vestir a pele errada. A base da segregação é social, dinheiro, dinheiro, dinheiro. Mas a mentalidade colonial controla a população negra, mantendo-a sempre longe das oportunidades. acho que já estou a repetir-me. Enfim, com bairros racializados e pobre nas periferias, transportes condicionados, pobreza institucionalizada, planos urbanos que separam mais do que une, não há duvidas sobre a segregação em Lisboa.

 

 

por Marta Lança
Cidade | 19 Setembro 2025 | Lisboa, Quem mora nesta Buala