A relação com a comunidade africana é, acima de tudo, a periferia. Sinho
José Baessa de Pina, mais conhecido por Sinho, nasceu em Lisboa em 1976, filho de pais cabo-verdiano e angolana, cresceu nas Fontaínhas e hoje vive no Casal da Boba, na Amadora, onde está envolvido em projetos sociais através da Associação Cavaleiros de São Brás, da qual é vice-presidente. Criou o projeto Noz Storia, de passeios guiados. Fez parte do grupo de rap dos anos 90 BFH Bairro Fontainhas In da House, praticou dança cabo-verdiana no Grupo Estrela da Paz e Estrela cabo-verdiana. Trabalha como vigilante e dinamizador sociocultural (tendo passado pela Expo 98, Feira Nova ou Pingo Doce). O seu ativismo tem-se manifestado contra a segregação e racismo institucional, conhecido pelo seu trabalho comunitário e defesa de causas sociais como o direito à habitação e o empoderamento comunitário.
Sinho Baessa de Pina
Onde se encontra a maioria da população africana e afrodescendente na Grande Lisboa?
Na Grande Lisboa, a maioria da população africana e afrodescendente, especialmente a comunidade cabo-verdiana, vive nas periferias. Houve um tempo em que se falava numa “Lisboa africana”, mas, desde os anos 1970, a realidade mostra outra coisa: a relação do país com estas comunidades foi marcada sobretudo pelo afastamento geográfico e social, empurrando-as para os limites da cidade. A presença africana está fortemente ligada à periferia — não por escolha, mas por falta de políticas públicas que garantissem inclusão e acesso ao centro urbano. A segregação territorial tornou-se parte da história da migração africana em Portugal.
Que lugares escolheria como modo de memorialização da presença africana na Grande Lisboa?
A ter um lugar específico seria a cidade da Amadora, que mantém uma relação histórica com a herança colonial de Portugal. A Amadora acolheu muitas pessoas vindas de vários países africanos, principalmente de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola, entre outros. Esse fluxo migratório resultou numa presença marcante dessas comunidades, sobretudo nos bairros autoconstruídos, onde, ao longo dos últimos 50 anos, tem havido uma clara ausência de políticas públicas eficazes. Esses bairros cresceram sem o devido acompanhamento do Estado, o que prejudicou muitas famílias em áreas fundamentais como habitação, educação e acessibilidade. Além disso, é importante reconhecer esse território também como um memorial vivo, em homenagem à classe trabalhadora africana que chegou a Portugal nos anos 1970 para suprir a escassez de mão de obra, muitas dessas pessoas nunca receberam o apoio necessário para viver com dignidade a sua condição de imigrantes.
Em que outros lugares podia haver mais referência a essas comunidades?
No tempo em que os meus avós vieram para Portugal, no início dos anos 70, a comunidade cabo-verdiana constumava ficar muito no Jardim de Estrela, junto às pensões onde moravam várias famílias. Podia ser interessante haver um Memorial no Jardim da Estrela, porque, segundo consta ali se trocavam informações, notícias, as pessoas encontravam-se ao fim-de-semana.
Também seria bom haver um memorial nas Portas de Benfica, no já demolido Bairro das Fontaínhas, onde agora fica o Consulado de São Tomé e Príncipe, numa rotunda. Nesse bairro moraram 5 mil e tal pessoas, dos anos 1970 até 2000, e tem grande simbolismo para várias pessoas que vieram para Portugal durante esses anos.
Portas de Benfica, Noz Storia
Se pudesses intervir sobre a resistência negra em Lisboa, o que seria?
Tenho um sonho: que no Casal de São Brás, na Boba, exista uma rua com o nome de Amílcar Cabral. Talvez seja o momento de avançar com uma petição. Seria algo importante e simbólico. Amílcar Cabral é uma referência mundial. A sua memória continua atual, necessária. É triste ver que Portugal ainda não valoriza quem ele foi e o que representou. Cabral lutou por liberdade, justiça, autodeterminação, tudo aquilo que ainda hoje continuamos a reivindicar. Ele sonhou com direitos iguais para todos, mesmo que não tenha vivido o suficiente para ver esse sonho realizado.
O pensamento de Cabral continua vivo, presente na mente de várias gerações. Portugal devia reconhecer isso, dedicar-lhe espaço público, e incluí-lo no currículo escolar, tal como faz com tantos outros autores que marcaram o mundo. Ele faz parte da nossa história, da história de Portugal, da história africana e da história global.
Em que medida as pessoas negras têm participado no debate sobre a memória em Portugal?
Mesmo sem terem os privilégios, os meios ou as oportunidades para isso, há muita gente negra a trabalhar com e sobre a memória, apesar de todas as barreiras. Eu próprio recolho as memórias da minha comunidade — aquilo que vivi, ouvi, perguntei. Essa memória é real. Mas falta uma coisa fundamental: deixar as pessoas negras serem a sua própria voz.
Como colmatas isso?
Muitas vezes, quando falamos, a primeira pergunta é: “Qual é a tua fonte?” A minha fonte sou eu. A minha vivência. A minha memória. E isso, frequentemente, não é reconhecido como válido. A história negra em Portugal continua a ser contada por outros, como se precisássemos sempre de mediação para falar de nós próprios. Isso tem de mudar. Porque a memória não se arquiva só em livros — vive em quem a carrega no corpo, na fala e na experiência.
Como são os Passeios Guiados “Noz História” que organizas?
Faço passeios guiados sob o nome Noz História, onde partilho a memória e resistência das comunidades africanas em Lisboa. Costumo divulgar os passeios via redes sociais, especialmente Instagram, e também pelo boca a boca. O percurso começa nas Portas de Benfica e termina com um almoço num dos bairros históricos da comunidade africana: Cova da Moura, Roboleira ou Casal da Boba. Durante o passeio, conto as histórias de resistência e superação dos últimos 50 anos — como foi chegar a esses bairros, os desafios da integração, as dificuldades nas escolas, os problemas de mobilidade, e também os momentos felizes que vivemos por lá. Mesmo com todas as dificuldades, essas comunidades resistiram e continuam a existir com dignidade e força.
Sobre o que falam no percurso?
Falo sobre os problemas estruturais da periferia: a desigualdade social, a segregação espacial e o modo como o Estado — especialmente através da polícia — se relaciona com essas comunidades. Nas chamadas Zonas Urbanas Sensíveis, a abordagem policial é muitas vezes violenta, com um tratamento desproporcional e discriminatório. Isso alimenta a sensação de que há duas cidades: uma para os de dentro e outra para os de fora.
O caso de Odair Moniz é um símbolo disso e foi o mais falado mas, nos últimos 50 anos, vários crimes foram cometidos contra membros dessas comunidades, e muitos agentes da autoridade ficaram impunes. Mesmo havendo leis, quando os crimes acontecem nas periferias, são frequentemente ignoradas ou mal aplicadas.
Quais são os maiores problemas de Lisboa?
Lisboa está a mudar, e não para melhor para quem é do povo. A cidade gentrifica expulsando os seus moradores históricos. A periferia está cada vez mais sobrecarregada e esquecida. A habitação é uma das maiores crises. Cada Câmara municipal tem a sua política, mas falta uma política nacional de habitação que seja coerente e inclusiva. Sem isso, continuamos a agravar os problemas das comunidades, sobretudo na Área Metropolitana de Lisboa e no Vale do Tejo.
Qual tem sido o papel dos Movimentos, como a Vida Justa, e Coletivos para alertar contra a discriminação na cidade?
Nos últimos anos, movimentos como a Vida Justa e vários outros coletivos têm estado mais presentes no espaço público, usando as redes sociais e outras ferramentas para alertar, mobilizar e empoderar as comunidades. Esses movimentos servem para: Informar as pessoas sobre os seus direitos e deveres; Incentivar a participação comunitária em temas como habitação, violência policial, racismo e exclusão; Pressionar o Estado a implementar políticas públicas reparadoras; Trazer essas discussões para o centro do debate político e social. Mais do que protestar, estes coletivos estão a construir consciência cidadã, mostrando que temos direito a uma cidade justa, e que também temos poder para transformar essa realidade.