"Foi a partir do cinema que me tornei antropólogo". Pensar por imagens.

fotografias da autora, Namibe 2018

Nas reflexões de Ruy Duarte de Carvalho reunidas no livro A câmara, a escrita e a coisa dita (1997), é reiteradamente defendida a importância do cinema como instrumento antropológico assim como o papel da antropologia na criação de um cinema africano. No entanto, não são poucas as ressalvas quanto às possibilidades de um cinema etnográfico no contexto africano e, em particular, angolano. Pensemos essas reflexões à luz do filme Nelisita (1982), filmado no sul de Angola (Chibia) em tempos de invasão sul-africana, no seguimento da série documental Presente Angolano Tempo Mumuíla (1979), com intérpretes reincidentes e maior mise-en-scène (apesar de o autor diagnosticar como inoperante a distinção entre documentário e ficção1), ambos implicados com um território, um povo e um momento: “a mesma geografia, a mesma sociedade, o mesmo tempo” (Carvalho 1997, 52). 

Premiado no Festival Pan-Africano do Cinema e da Televisão de Ouagadougou (FESPACO – no Burquina Faso) em 1984 e recenseado nos Cahiers do Cinéma, Nelisita marcaria o último fôlego da breve produção cinematográfica angolana, rapidamente vencida por outras prioridades, empurrada depois pela guerra civil e pela negligência para um longo marasmo e incapacidade. No contexto pós-independência da rodagem de Nelisita, o carácter de urgência2 era assinalado pelo autor que, partindo da sua experiência de vida e de trabalho, refere a excitação, a euforia e a descoberta do ato de viajar pelo país, para o filmar e conhecer. “Era a independência, era a guerra, era o começo de uma nova era, longamente aguardada. A mesma euforia de um extremo a outro de Angola e que tamanha diversidade, no entanto, entre os actores dessas manifestações” (Carvalho 1997, 10). Em linha com o carácter militante, pedagógico e algo experimental (nomeadamente as experiências em Moçambique no tempo de Samora Machel3), o cinema era considerado um veículo atuante de interconhecimento entre um povo que se desconhece e que, através de imagens, se vai dando a conhecer nas suas problemáticas: “Que pensam uns dos outros, do lugar que ocupam no mundo e do próprio mundo que ocupam aqueles que, perante a câmara, são chamados a depor?” (Carvalho 1997, 11).

Pensar por imagens 

A abrangência e continuidade das abordagens no cinema de RDC (a consultar no catálogo virtual composto por Inês Ponte4) podem ser ilustradas através de dois filmes: Uma Festa para Viver (1975), que revela expectativas e inquietações no momento da independência em alguns bairros periféricos de Luanda, como o Cazenga5, e o derradeiro Moia: o Recado das Ilhas  (1989), no qual se insinuam os traços de uma crioulidade africana, atlântica e lusófona6, recriando em Cabo Verde o conflito Próspero / Caliban da Tempestade shakespeareana. Não tendo qualquer aparente relação, ambos os filmes levantam “questões identitárias” subvertendo expectativas sobre essas mesmas questões, introduzindo inusitadas referências e camadas de reflexão.

Elemento comum a todo o seu trabalho poderia ser a “formulação cinematográfica da própria ideia” (Carvalho 2010a). Como se fosse possível aceder ao processo de visualização da ideia, no momento em que é processada e se vai adensando, resultando num filme ou livro, cujo olhar parte da sua experiência. Escreve em Desmedida: “nunca estive em nenhum lugar, e em qualquer tempo, mesmo de uma maneira geral na vida, se não como se fosse para voltar depois e rodar um filme” (Carvalho 2010a, 205). Há vários sinais de um processo de escrita que incide na narrativa pela imagem, por exemplo no livro inacabado Paisagens Efémeras (que dá título ao ciclo que incluiu este colóquio) no qual as personagens, em criação, filmavam paisagens e fragmentos para um filme que o narrador iria realizar sobre o “estado do mundo”, contradições e resistências ao projeto ocidentalizante do mundo, para “apresentar aos mais-velhos”7.

Gilles Deleuze referia o particular modo de maturação dos realizadores que “pensam com imagens-movimento e com imagens-tempo, em vez de conceitos” (Deleuze 2016, 11), numa intensa contaminação entre o registo pensado, escrito e cinematografado. Temos assim, por um lado, a imagem que dá forma à ideia e, por outro, a necessidade do cinema mostrar a ideia: 

“o cinema retira a sua especificidade como via de expressão do facto de fornecer imagens que estabelecem uma ideia, ou a seguem, ou a desenvolvem, ou a ilustram. Não é possível em cinema dizer simplesmente – homem – como em poesia, por exemplo. É preciso mostrar o homem. Em cinema tudo vem adjetivado pela multiplicidade de sinais que constituem o fotograma”. (Carvalho 1997, 63) 

A dupla formação em cinema e antropologia do autor terá eventualmente contribuído para este conhecimento em dialética: o cinema recorreu à literatura, do mesmo modo que a sua escrita adquiriu da linguagem cinematográfica – e da experiência de viajante e de observador – uma certa sabedoria de olhar para descrever. Disseminando estratégias para comunicar e fazendo proliferar géneros e figuras expressivas – cineasta, antropólogo, romancista, poeta, ensaísta, pintor de aguarelas, fotógrafo, filósofo – que compõem a sua obra escrita e visual, a voz de RDC potencia novas leituras sobre reincidentes questões. Sugestiva e rigorosa, a cadência desta escrita mistura oralidade e erudição, num constante e insatisfeito diálogo com a História. A frequência das reticências impulsiona em quem lê uma certa adivinhação do que falta, como um exercício de pensar em conjunto, muitas vezes por imagens, por cadeias de incidentes.

O filme etnográfico como produtor de alteridades

Um dos fatores que concorre para um certo carácter visionário da obra de RDC é o facto de ter tocado em questões que seriam dominantes em teóricos contemporâneos, sobretudo nos estudos pós-coloniais. Por exemplo, pensar o projeto de Estado-nação a partir das suas muitas ex-nações e as contradições das fronteiras herdadas do colonialismo terá sido ousado nos anos de 1970, num contexto de “cultos nacionalistas” de unificação de países que saíam de longos processos coloniais e reivindicavam soberanias. No caso de Ruy Duarte, não se tratava de negar o projeto nacionalista, associado à luta de libertação e anunciado nos entusiasmos da independência enquanto “um só povo, uma só nação”, sendo o cinema um aliado na construção das identidades nacionais. Implicava, antes, um contributo para o reconhecimento de grupos ou de formas de vida minoritárias, silenciadas e oprimidas, tanto pelo colonialismo como pelo poder angolano e internacional, constrangimentos de que Angola nunca se desenvencilhou.

A valorização destes outros modos de vida, e as apreensões descritas por RDC nestes processos, previam já alguma negligência futura da parte dos governantes. Assim, mostrar as contradições de modelos dominantes (e suas violências) e entender o excluído/subalterno sem o coisificar em “outros do Outro” atravessaria tanto o seu curto percurso fílmico como o de literatura, no propósito geral de transformar uma nação moderna (que promovia a identificação com um povo uno) em  nação pluralista, reconhecedora e valorativa da sua diversidade.

O programa de cinema de Ruy Duarte de Carvalho, enquanto aspiração a uma fórmula “válid[a] como cinema, útil como referência e fiel como testemunho” (1997, 11) assentava num claro posicionamento ético. Problematizar os limites da categoria de “filme etnográfico” relacionava-se persistentemente com esse travão ao processo de outricização ao qual normalmente as comunidades excluídas ficam confinadas longe das culturas do “progresso” e da “modernidade”. Um dos modos de manifestação de tal programa seria a recusa em apresentar as sociedades filmadas como “etnografáveis”, uma vez que, para o autor, esse procedimento corresponderia à instrumentalização e à exotização da diferença, logro maior do cinema etnográfico que, até hoje, vem alimentando muitos festivais de cinema documental. Encontramo-nos, pelo contrário, em presença de um cinema que indagava a contemporaneidade, colocando as pessoas filmadas na sua vivência actual e nas expectativas (e impasses) do momento. 

Ainda que assumindo-se como cinema etnográfico, preocupações da mesma natureza seriam desenvolvidas por Jean Rouch, nomeadamente no filme Jaguar [1967] que fazia uma implícita repreensão aos retratos unidimensionais  feitos por europeus sobre a vida em África. Igualmente afloradas no cinema de Judith & David MacDougalls, que se afastava da narração ao encontro do cinema observacional e participativo. Destes autores, veja-se por exemplo, The Wedding Camels [1980], que examina as negociações e práticas culturais e tradicionais preparatórias para um casamento do povo Turkana, no Quénia.

Desprezando as “sobrevivências culturais e sua subestimação”8, enquanto postura dominante dos cineastas-etnógrafos ocidentais, a crítica à mercantilização das diferenças aparece também no livro Desmedida – a propósito dos “pacotes locais do turismo e do zelo institucional, e de uma solicitude meio militante, meio ecologista e meio mundana” (aquando da visita à casa-museu de Guimarães Rosa no Brasil) (Carvalho 2010a, 101). Também na intervenção sobre os vários “Outros” do Outro (no programa Distância e Proximidade, da Fundação Gulbenkian, em 2008), RDC manifesta preocupação ao “ver populações assediadas antes por agentes da ocidentalização impondo-lhes assumir os sinais e as maneiras do modelo ocidental e do progresso tecnológico e que são assediadas hoje pelos mesmos agentes ou equivalentes que agora pretendem impor-lhes a preservação dos sinais e as maneiras dos seus modelos arcaicos e não-ocidentais porque isso passou a insinuar-se como o mais rentável, tanto para uns como para os outros, desde que se deixem integrar em menus de programas turísticos e se deixem representar como expressões de um exótico ecológico e redentor ao lado de outras atrações bizarras como manadas de zebras, de elefantes e de gazelas.” (Carvalho 2008) 

Fábula sobre a modernidade e o animismo

Deste modo, não seria pretensão do autor preservar determinado mundo em desaparecimento, cristalizado em nostalgia, como etnográfico ou kitsch no filme Nelisita, mas antes inscrevê-lo no presente, documentar o que se transforma e resiste para lá das conjugações históricas e das agendas antropológicas – procurando o tal “equilíbrio entre dois dinamismos: o de um tempo mumuíla e o de um presente angolano” (Carvalho 1997, 11).

O filme, que articulava uma chamada de atenção para os tais “outros” não contemplados no projeto nacional, estruturava o seu argumento a partir de duas peças da literatura oral das populações Nyaneka do sudoeste de Angola, segundo narrações de Constantino Tykwa e Valentim (fixadas por Carlos Estermann no livro Cinquenta contos bantu do Sudoeste de Angola, de 1971), encenando as mitologias com elementos da comunidade. 

Entram em jogo duas linhas narrativas: a do Nelisita/Nambalisita, que parte à procura da mãe e se apresenta ao rei dos espíritos para reclamá-la; e a dos homens que vão ao armazém dos espíritos. O rei dos espíritos aliciá-lo-á a passar para o lado daqueles que monopolizam a comida, este resiste e afugenta os espíritos, socorrendo-se dos seus aliados animais. Montado no carro dos espíritos, Nambalisita transporta o que se encontra no armazém e regressa a casa. 

O filme aborda, assim, as tentações e as hesitações perante uma ideia de “modernidade”, não sendo irrelevante o gesto de convocar os animais para colaborar no conflito: “contra o mal e os maus e os desconcertos do mundo, Nambalisita faz apelo aos animais todos da criação, seus irmãos, os seus rapazes, e até mesmo à criação inteira” (Carvalho 2008). Antevemos já o resgate positivo de alguns valores e modos de organização das sociedades animistas que, mais tarde, RDC iria postular num Decálogo Neo-Animista (2010b), cujos traços centrais seriam a defesa da economia de equilíbrio versus uma economia de acumulação, a problematização do padrão humanista e suas hierarquias – deus, homens (e, um pouco mais abaixo, as mulheres), natureza –, e a valorização de narrativas resistentes à expansão ocidental e invisibilizadas pela história dominante. 

O povo Mumuíla singularizava-se desde logo, diz o autor, enquanto “quadros sociais e culturais” menos afetados pelo colonialismo (mais premente nas zonas urbanas) e menos permeáveis às mudanças dos vários regimes, no sentido de serem mais resistentes à “aculturação” (com a salvaguarda de que a teoria da “aculturação”, proveniente da escola americana da etnicidade, está desacreditada entre os antropólogos há bastante tempo) e “domesticação”. O nomadismo terá fortemente contribuído para este pendor indomesticável. Se atendermos à relação entre nomadismo e Estado avançada por Deleuze e Guattari (1980), reveja-se estes pontos: o Estado não se desenvolveu progressiva ou evolutivamente; em sintonia com as teses de Clastres (La Société contre l’État, Recherches d’anthropologie politique, 1974) que colocam o problema do poder político nas sociedades primitivas, os filósofos franceses afirmam que “houve Estado sempre e por toda a parte” (1980, 535), do mesmo modo que os nómadas não precedem os sedentários, sempre existiram: “o nomadismo é um movimento, um devir que afeta os sedentários” (1980, 119). No sentido de impor um movimento constante, ameaça a estabilidade das formas fixas e entra em guerra contra os aparelhos de captura estatal. “É nessas condições que os nómadas inventam a máquina de guerra.” (1980, 120), não tendo o intuito de formar outro Estado, nem o deseja. “A máquina de guerra, nesse sentido, é a invenção de uma organização nómada original que se volta contra o Estado” (1980, 559).

Tendo este enquadramento filosófico em mente, podemos estabelecer um certo paralelismo. O grupo Mumuíla foi sempre negociando com os elementos do seu tempo sem se vergar ao seu poder, inclusive na sua sobrevivência de hoje em dia. O filme Nelisita tanto aborda a contemporaneidade – no momento da rodagem e como sinal de tempos posteriores de Angola –, como faz uma crítica ao modelo de desenvolvimento (e de crescimento económico), evidentemente mais massificado no nosso século, da globalização e do capitalismo. Neste sentido, o filme pensa os problemas da “atualidade” do grupo filmado, tendo em conta os fatores que o afectavam (saídos de colonização e independência recente), e a urgência da ação política9, mas confere um sentido mais vasto a uma “atualidade” que a todos diz respeito. Por outras palavras, nesta visão de mundo, alertava-se para o agravamento das consequências nefastas de tal modelo de crescimento económico, cumulativo e arrasador de modos de vida “diferenciados”, antagónico ao modelo sócio-económico-cultural do povo mucubal e mumuíla, que equilibrava os seus recursos com a subsistência e teria um propósito mais “comunitário”, para simplificar. Nambalisita seria um mediador entre ambos os mundos, um cultural broker, alguém que atravessa a fronteira de um grupo, de uma cultura para outra (Jezewski e Sotnik, 2001).

Este filme manifesta a atenção, expressa em toda a obra do autor, pelos que ficam de fora da equação do progresso arrumados como “tradicionais”, constantemente esquecidos ou na mira da uniformização (captura do Estado). Extrapolando para pensar a escrita da História que conte a construção da nação narrando as suas resistências, colocamos essa atenção em diálogo com a proposta descolonial de Walter Mignolo (2005), quando refere a necessidade de se inventar um percurso coletivo capaz de recontar as histórias invisibilizadas e, assim, trilhar um futuro alternativo. Ou de se reconhecer outras modernidades e epistemologias, como a “modernidade vernacular” assinalada por Stuart Hall, que seria aquela10 protagonizada por povos modernos não inscritos na modernidade capitalista11.

 

Contingências da produção do filme

Um realizador de filmes em Angola “coloca-se inevitavelmente perante um quadro complexo de interferências cuja necessidade de conjugar harmoniosamente há-de determinar o aparecimento de uma resposta pessoal de que só a sua obra poderá e deverá dar resposta” (RDC, 1984: 57).

No curso na casa das Áfricas em São Paulo (2004), Ruy Duarte tece vários comentários acerca do processo de produção do filme Nelisita, pautado por um sem fim de incidentes que ajudam a redimensionar as condições da produção de filmes, ou seja, pensar em como os filmes, e este é um caso evidente, são prejudicados pela inadequação das estruturas produtivas. Salientamos alguns aspetos da produção que consideramos pertinentes para a compreensão das particularidades de fazer cinema nestes contextos fora da indústria (ou numa outra muito minoritária) e das estratégias de RDC, uma vez que defende uma coerência entre o seu programa de cinema e os modos de produção. 

Um deles diz respeito à legitimidade de fixar em argumento um conto concebido para a oralidade. O autor confrontou-se com a hesitação de que o processo poderia levar a uma dupla traição, tanto na vocação do conto como no manuseamento e organização das referências que comporta. Foi preciso pensar no tal “tempo angolano” e assumir-se o espírito da literatura oral, articulando duas estórias Nyaneka de modo a obter uma peça sustentável capaz de suscitar a tal leitura fiel às questões atuais. Ajudou a esse efeito a introdução de sinais materiais da atualidade tais como o automóvel, uma motorizada, um camião e o próprio vestuário. RDC reforça uma linha de continuidade no seu “fazer”: este projeto de ficção nunca representou uma rotura com o documentário anterior. Há situações em que a ação é narrada aos atores e passa-se de uma ideia de encenação para a total espontaneidade. O filme termina em quase cinema direto, com o regozijo final verídico com a posse dos produtos.

Em termos de remuneração, todas as pessoas que participaram no filme foram pagas segundo a média dos salários de funcionários públicos da TPA, embora na série anterior se tenha dispensado a remuneração monetária das pessoas filmadas para não interferir no desenrolar da sua vida filmada. Como os bens disponíveis no mercado não satisfaziam as necessidades das populações, produtos como o açúcar e os tecidos eram uma demanda constante. Assim, esse tipo de bens de consumo, adereços e roupas ficaram para as pessoas que participaram no filme. A comida era distribuída por todos, equipa e atores, e como vinha de Luanda e num contexto de grande escassez, era bastante melhor do que o habitual. Havia a guerra, tinham de reforçar a atenção ao movimento das tropas, fazendo turnos para garantir a vigilância.

Inicialmente os Mumuílas tinham uma equivocada perceção da equipa de rodagem que era vista como enviada do governo, uma vez que, no regime colonial, apareciam esporadicamente naquelas zonas fotógrafos e cineastas a recolher imagens folclóricas. Obviamente as situações diferiam, desde logo, pela abordagem: no caso colonial o enfoque dos registos era apenas os corpos e os objetos, neste, ganhava importância a palavra e o testemunho dos observados. (RDC, 1997 [1983]: 55)

Em termos de direção de atores, estes revelaram algum talento e sobretudo muito à vontade, participando nas filmagens com alegria e uma certa entrega. Mas era preciso jogar com o acaso, assinalando-se a desobediência e a improvisação de acordo com a imprevisibilidade. Por exemplo: Nelisita é todo falado em Lumuíla (do Nyaneca, uma língua banto) - e este é um elemento de relevo: o primeiro filme de ficção numa língua africana -, era então recorrente os tradutores confessarem que os atores não tinham dito nada do que fora pedido. Já no decurso do filme o realizador teve de alterar o argumento “devido à nulidade daquele da barba que nunca fazia o que era suposto”. (RDC, 2004). Nas grandes fomes, houve carros do boers que vieram ter a Angola. Tendo encontrado um deles, usaram-no e assim foi incluído no filme o carro de boers e o camião. Alguns aspetos etnográficos vão povoando também o filme, como os planos das meninas preparadas para a festa da puberdade.

É interessante refletir sobre o efeito de reconhecimento, devolução da imagem, que o cinema exerce em comunidades sem familiaridade com a cultura visual, e a aprendizagem que tal processo exige. Sobre o visionamento das filmagens pela população que entrou no filme, o autor refere que em Nelisita os participantes nyaneka já tinham aprendido a ver cinema com os documentários anteriores. Apesar disso, o olhar não alcança a inteligibilidade do filme em si: “as pessoas veem a galinha, o cão e o vizinho mas o sentido do filme desaparece” concluindo que “têm de ser alfabetizadas para ver filmes” (RDC, 2004). 

O formato escolhido foi de 16 mm, preto-e-branco, em continuidade com os documentários anteriores e porque havia laboratórios em Angola para revelar esta película. A película a cor estava reservada para momentos mais oficiosos, como os congressos do MPLA. Em termos técnicos, tratava-se de cinema artesanal, com meios muito precários: as baterias tinham de ser carregadas no Lubango, fazia-se travellings longos ao ombro, mas com uma câmara ligeira. A equipa era reduzida: realizador, assistente de produção, operador de câmara e operador de som. Uma equipa numerosa seria um fator desestabilizador e de difícil manutenção. O ambiente entre a equipa era, no entanto, de grande colaboração e espírito de militância. Era no tempo do som e cinema direto que, no filme, é perturbado por deficiência técnica. As misturas seriam feitas mais tarde pelo  inventor do som direto em À bout de souffle, de Godard (1960). 

Este filme passou por vários incidentes. Além dos problemas de som, com partes impossíveis de decifrar, ficariam inutilizados metros da fita. Enquanto o negativo estava a ser revelado, faltou a luz e o material ficou 12 horas no banho revelador. O autor foi ao Cinecitá para tentar recuperar o filme, deixou o negativo, quando lá voltou todas as colagens do negativo se haviam desfeito. Uma técnica francesa remontou o negativo. Nisto perdeu-se um pouco a ordem do filme: “estava desesperado, o filme não acaba assim, onde foi cortado também não sei. Quando o Nelisita põe os óculos escuros a mãe vem e tira-lhe os óculos” (RDC, 2004). 

Na soma de todas estas peripécias fica um filme que não é necessariamente o filme pretendido mas o filme possível. Apesar do papel crucial que a montagem tem enquanto inteligência do filme: “a montagem intensifica a imagem e a dá à experiencia visual uma força que as nossas certezas ou hábitos visíveis tem por efeito pacificar, velar” (Didi-Huberman 2003: 170), neste caso terá havido uma arbitrariedade involuntária que condiciona muito o resultado final. E, para o autor, essa também uma razão para que o Filme Etnográfico não se justifique no contexto do cinema africano.  

 

Antropologia e cinema, complementariedades 

Para Carvalho, a arte do cinema e da poesia podiam manter uma correlação interessante com a ciência da antropologia.

A crítica a esta positividade da câmara e o linguistic turn afastaram o cinema e a fotografia da antropologia em meados do século passado e talvez só tenha regressado em força nos anos 1970/1980, nomeadamente devido ao 16mm e vídeo. Ou seja, estas linguagens, e “paixões”, complementavam-se conduzindo umas às outras. “Foi de alguma forma a poesia que me fez passar pelo cinema e foi a partir do cinema que me tornei antropólogo” (Carvalho 1997, 109-114). 

Nas problemáticas sociais contemporâneas, a imagem, inicialmente instrumentalizada para propósitos positivistas da antropologia, vem ganhando centralidade no trabalho antropológico a partir dos anos 70 (veja-se a proliferação de cursos em Antropologia Visual, Antropologia da Imagem ou Antropologia Audiovisual). A mútua contaminação de imagem e antropologia complementa objetivos, funções e metodologias: a antropologia possibilita ao cinema o confronto com códigos e exigências de uma arte e de uma ciência (Carvalho 1997, 25) e o cinema permite um espaço experimental e de relação com o objeto, que a antropologia não alcança por si.

De acordo com Jean Rouch, ao filme etnográfico exigia-se “o rigor do inquérito científico e a arte de exposição cinematográfica” (1968, 432). “Quando o cineasta sabe o que é uma cultura e o cientista sabe o que é uma encenação, aí então começa o filme etnográfico” (Carvalho 1997 citando McCarty 1975, 50). No entanto, em alguns filmes etnográficos, a imagem é apenas demonstrativa, surgindo menos como instrumento do que complemento. RDC defendia que a imagem devia emergir ativa e criadora de novos dados, uma vez que a palavra impõe à antropologia limites que o cinema facilmente contorna12. Assim, na perspectiva cinematográfica o filme deve valer por si mas, no interesse antropológico, o filme seria um instrumento de descoberta progressiva, possibilitando a leitura de factos indistintos à observação. Por exemplo, se se aventura a abordar elementos culturais complexos, a antropologia contribui, enquanto suporte para o filme, para mergulhar na realidade filmada, isto é, nos interesses de determinado grupo, o contexto social, económico, cultural e político, ajudando a posicionar determinado gesto, tempo e espaço, preferencialmente sem adotar discursos explicativos ou fixar comportamentos. Segundo RDC, a antropologia interage na análise das situações e na busca de soluções.

A antropologia reforça a importância do tempo no registo audiovisual e etnográfico: as mutações e continuidades apresentam-se apenas percetíveis num vasto arco temporal, e em estreita cumplicidade com quem é filmado. Já o cinema “é ação”, relaciona-se com o imediato, pelo forte pendor ritualístico e emocional.

A ideia de cine-transe de Rouch estava na base do processo de desvelar o real pelo cinema, o estabelecer a presença da câmara como desordem intolerável no mundo habitual para nele se revelar verdades mais profundas, dependeria de um instante quase religioso de possessão: o cine-transe, o instante no qual cineasta, equipa, elenco, se tornariam “cavalos” do espírito do cinema, passariam a pensar/sentir o filme, permitindo que seus sentidos sejam mediados pelos dispositivos cinematográficos (Feld 2003, 87-101).

“A paixão de fazer cinema está muito ligada a essa situação existencial incomum que se gera, por vezes, e durante a qual não medeia qualquer tempo entre a reflexão e a ação. Coexistem num mesmo impulso em que o tempo é abolido e se transmuda em movimento, dimensão muito vizinha do que se pressente ser o absoluto. […] O cinema é, na verdade, um sistema de representação, expressão tão comum e tão cara ao mundo da análise antropológica. O cinema representa e ritualiza aquilo que representa através do seu próprio rito, e era aqui que eu queria chegar, diz-se do cinema que é um universo mítico. Eu direi que é um universo fortemente ritualizado e ritualizante. (Carvalho 1997, 111) 

A impossibilidade de um cinema etnográfico no contexto angolano

Ruy Duarte acompanhou, com as devidas reservas, a suspeição que alguns realizadores africanos nutriam sobre o filme etnográfico. Próximo do tópico sobejamente discutido em torno da legitimidade de quem conta e da defesa de que aquilo que hoje denominamos “lugar de fala” (Ribeiro 2017) seja coerente com o objeto produzido, RDC alerta para se pensar no posicionamento e condição de quem produz as imagens – problemáticos, se produzidas por europeus. Mas, se feitas por pessoas pertencentes à cultura retratada, ofereceriam certamente abordagens distintas do olhar estrangeiro. Deixariam de ser etnográficas? O texto que acompanha a série Presente angolano, tempo mumuíla, “Cinema e Antropologia para além do filme etnográfico”, escrito em 1983, questiona veementemente a adaptação do cinema etnográfico a certos contextos.

“Cinema etnográfico? Sê-lo-á também aquele cinema que, ocupado com situações atuais e problemas pontuais, não pode por isso dispensar a referência, a fixação e o tratamento de elementos ou dados culturais afectos aos domínios da antropologia, mas vivos e portanto atuantes no terreno do confronto (cultural, social e político) entre um passado cujas fórmulas se mantiveram para além e apesar da acção colonial (de memória ainda recente) e as propostas de futuro (actualização, modernização, progresso) que o tempo, os tempos, inexoravelmente impõe, impõem?” (Carvalho 1997, 11)

Como corresponder à especificidade do contexto em que o filme se insere? Partindo de elementos culturais singulares, não ceder a traduções simplificadoras, nem a interpretações etnocêntricas e didáticas de dados culturais viáveis nos seus contextos de origem, que o seguinte exemplo explicará: 

“Se em Nelisita se mata um boi por asfixia (planos 145 a 148), não nos sentimos minimamente obrigados a esclarecer que, naquelas circunstâncias, se procede assim – isso é evidente na projecção – (nem tão pouco o porquê de uma tal prática.) Desde que para o desenvolvimento da narrativa fílmica, o importante seja a morte do boi, e não a forma como ele é morto, não vemos por que haveríamos de nos deter neste segundo aspecto”. (ibid., 63) 

Ruy Duarte faz ainda um longo relato das peripécias da produção de Nelisita, dando a entender que o filme resultante não é necessariamente o filme pretendido mas o filme possível. Apesar do papel crucial da montagem enquanto inteligência do filme13, neste caso teria havido uma arbitrariedade demasiado involuntária devido à imprevisibilidade que condicionou muito o resultado final. E, para o autor, essa fragilidade e impossível controlo do processo de “fazer um filme” em Angola, seria também uma razão para que o filme etnográfico não se justifique no contexto do cinema africano. Angola não dispunha de recursos cinematográficos, técnicos e humanos para, no momento em que Ruy Duarte escrevia, ser efetiva a articulação entre o rigor antropológico e a expressão cinematográfica confrontando-se, assim, com a impossibilidade de um cinema etnográfico vir a desenvolver-se neste contexto.  

“O cinema que temos feito quer-se, antes de mais, cinema tal qual e de forma alguma cinema etnográfico. O cinema etnográfico tem a sua oportunidade, o seu lugar, o direito de recorrer a tudo quanto o define, e mesmo em Angola chegará o tempo em que assume a posição e o papel interventivo que lhe cabem.” (Carvalho 1997, 63)

Não há olhar neutro

Uma prática rigorosa, cinematográfica e antropológica, exigiria “filmes cientificamente correctos, socialmente operantes, cinematograficamente válidos, eticamente honestos e publicamente viáveis” (ibid., 69). A partir das questões que se colocam aos etnólogos-cineastas, RDC refuta o mito da objetividade da câmara e de um registo dominado pela objetividade. 

“Surge então a tendência generalizada – inspirada em velhos sonhos e em teorias como as de Dziga Vertov14, do neo-realismo italiano e do cinema-verdade – para fazer cinema como se a câmara “não estivesse lá” […] Por detrás de uma câmara está sempre quem filma e escolhe, não apenas o que filma, mas também a maneira como o faz.” (ibid., 22)

Também no filme etnográfico existirá sempre uma interferência autoral pois, como refere MacDougall (1992, 134), que desde sempre se afastou de um cinema objetivador e desligado da realidade, não se trata de um mero retrato de outra sociedade, mas de um encontro entre o realizador e a sociedade que o terá interessado, no equilíbrio de não projetar a sua realidade, conceitos, valores e gostos aos objetos de pesquisa. “A boa consciência [da etnologia/antropologia] transformou-se hoje em consciência infeliz” escreve M.M. Giraud (1979) que é referenciado por Ruy Duarte de Carvalho quando faz a problematização de uma antropologia “que duvida de si mesma”, o que poderia reverter as relações de força entre observador e observado, no momento revolucionário que se vivia. 

“Com o impacto colonial das sociedades industriais, as sociedades ‘tradicionais’ já não são de forma alguma aquilo que aliás elas não eram já quando se começou a estudá-las, quer dizer, tradicionais, puras das marcas da sociedade capitalista. A acção colonial e neocolonial à qual a Etnologia se acha historicamente associada é combatida por toda a parte e vencida por vezes pelas lutas de libertação nacional e pelos movimentos anti-imperialistas dos povos dominados, e a neutralidade da antropologia bem como a cientificidade das suas análises são violentamente postas em causa, a começar por aqueles que são o objecto do seu estudo.” (Giraud 1979, 269, cit. em Carvalho 1997, 397)

Além da inexistência de uma neutralidade antropológica, Carvalho insiste nos papéis de dominação que a antropologia sempre promoveu e na sua eventual e difícil subversão precisamente através dessa inversão de papéis. 

“Angola é um país do Terceiro Mundo. Em relação à antropologia clássica situa-se francamente no hemisfério do observado. Que revolução, porém, estará em curso para a própria antropologia quando o observado se transforma em observador e que dificuldade teórica maior em relação ao ser e ao modo da disciplina, se observa a si mesmo? Que acontece quando o observado assume a palavra? Talvez ocorra aí a oportunidade de ver a antropologia aproximar-se do cinema para beneficiar, por sua vez, dos recursos e dos métodos cinematográficos. Recusamos entretanto, no contexto de Angola, a hipótese do filme etnográfico. Colocamo-nos assim ao lado da grande maioria dos cineastas africanos, embora não exatamente pelas mesmas razões.” (Carvalho 1997, 68)

Neste eterno repensar da dicotómica convenção antropológica de “nós e os outros” que problematicamente inventa e fixa sujeitos, encontra-se ressonância com vários tópicos do debate auto-reflexivo da disciplina e da objetivação que pressupõe, por exemplo a antropologia reversa (termo de Roy Wagner em A invenção da cultura, 1975) que, apesar da inversão  de papéis, não se liberta ainda de “os outros e nós”, ou com a endoantropologia defendida por Viveiros de Castro em Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural (2015) como “uma antropologia de nós mesmos”, que a antropologia urbana também já praticava. Poder-se-ia articular algumas das questões levantadas por Carvalho com as que atravessam as “epistemologias do Sul”, descritas por Boaventura Sousa Santos e Maria Paula Meneses, que valorizam saberes e modos de vida de resistência ao aniquilamento cultural, económico e político promovido pelo Norte15.

As reservas de Carvalho sobre determinada prática da antropologia eram partilhadas por alguns realizadores africanos da época, nomeadamente por Sembéne Ousmane e Paulin Vieyra que nutriam uma certa antipatia pelo cinema etnográfico. Além de muito ciosos da sua imagem perante o Ocidente, e tentando manter a independência em todas as áreas, havia uma saturação, precedida de décadas de filmes produzidos por um olhar exterior e desconhecedor. Sentiam um atentado à intimidade e à capacidade de falar por si. Guy Hennebelle, citado por Carvalho (1997, 30): “o cinema etnográfico só poderá assumir um valor indiscutível desde que saiba reunir várias condições, nomeadamente a de evitar o passeísmo e as imagens truncadas”, detectando nos filmes de Jean Rouch o culto de um primitivismo reacionário, “passível de ser aproveitado pelo jogo do racismo” (ibid.). Esta era também a crítica a uma certa ausência de reflexão política essencial para sustentar as realidades filmadas, e ao perigo de se ceder ao culturalismo desligado de contextos sócio-culturais. O realizador senegalês Paulin Vieyra descreve um famoso encontro entre Sembéne Ousmane com Rouch, em 1965, no qual este lhe terá escrito: 

“tu dizes ver, mas no domínio do cinema não basta ver, é preciso analisar. O que me interessa é o que está antes e o que está depois do que se vê. O que me desagrada na etnografia é que não basta dizer que o homem que se está a ver caminha, é preciso saber donde ele vem, para onde vai.” (Predal 1982, 77 cit. em Enwezor 2001, 449)16 

Distinguindo os modos de trabalho e não partilhando “do ponto de vista da escola de Rouch” e dizendo-se não muito bem acolhido nesses circuitos, Carvalho voltaria, ainda em 2004, a recusar a categoria de filme etnográfico: 

“Nunca gostei de chamar cinema etnográfico. É um filme sobre a vida de concidadãos meus, o tipo de pessoas que normalmente aparecem em filmes etnográficos. Não foi feito com a intenção de fixar aspetos culturais. É gente que vive num determinado contexto e basta.” (Carvalho 2004)

As reservas a um cinema etnográfico feito por africanos tinham como impedimento (tal como já mencionado no caso de Angola), o facto de não haver condições para o realizar, nem formação, e a própria abordagem, ou seja, se o realizador africano utiliza como tema uma realidade sua, essa mesma realidade não será por si considerada um “caso”, mas uma “situação”. As relações entre realizador e objeto filmado seriam sempre assimétricas, tal como distintas as abordagens de realizadores “ocidentais” e africanos e o olhar de um estrangeiro à determinada cultura seria a base da própria etnologia como dizia Rouch17. No entanto, os filmes em geral, mesmo os de ficção, dão sempre a conhecer aspectos culturais, do tempo, modos de vida, etc. 

Outro aspeto a ter em conta nestes confrontos é a relação próxima entre o cinema africano e a tradição oral, como lembra Manthia Diawara (1988). Além dos coincidentes modos de narrar na tradição oral popular e no cinema africano, este cinema incorporava conscientemente elementos da cultura popular, nomeadamente a figura do griot. Este homem (ou mulher, griotte) contador de histórias (bardo ou cantor-orador), recordava o passado, honrava o presente e imaginava o futuro, como uma espécie de historiador e genealogista da sua comunidade. Numa viva relação entre palavra, música e expressão corporal, o griot contribui para a coesão e estabilidade social e cultural.

A indústria do cinema etnográfico: os festivais e o mundo em desaparecimento

Mais tarde Diawara critica também o lugar circunscrito que os realizadores africanos podem ocupar e a ideia de que este tipo de cinema tem pouca liberdade, obrigação de documentar a sua realidade. 

”[…] os cineastas africanos, ao tomarem parte das estruturas multiculturais da Europa e dos Estados Unidos, entram no nicho de filmes antropológicos tanto na televisão quanto nos cinemas. As pessoas vão assistir aos filmes africanos como se eles retratassem a realidade da África, em vez de vê-los como filmes.” (Manthia Diawara, 2011)

Ruy Duarte de Carvalho também negava esse lugar e manifestou desde logo um desencanto quanto a festivais de género etnográfico ou antropológico, aos quais deixou de ir porque percebia que prejudicava o filme. “Entretanto deixei de fazer cinema e aliviei essa angústia”, dirá ele, irónico, nos já referidos comentários a Nelisita numa sessão da Casa das Áfricas em São Paulo em 2004. O autor refere ainda os factores de se ficar refém dos interesses de quem financiava os filmes que, não raro, tinham o peso de um Estado de partido único, e a obrigação de gerir interesses dos consumidores de determinado cinema, cedendo a uma certa adaptação aos públicos. 

A experiência no Festival Internacional do Filme Etnográfico, em Manchester (edição de 1989), chegaria a ser um pouco traumatizante, como conta no artigo intitulado “Pensava eu, ao deixar Manchester”, de 1990. Neste festival, o programa intitulado “Disappearing World” evidenciava a desadequação de posturas face ao cinema e à antropologia, sobressaindo essa tal sedução dirigida a um público que legitimasse a natureza científica dos filmes e garantisse a viabilidade de um projeto tanto para cineastas como antropólogos. Neste artigo não poupa a crítica à instrumentalização comercial dos objetos de trabalho e ao etnocentrismo. 

“Para os antropólogos activos e determinantes, o seu objecto de observação se lhes apresenta como um mundo em desaparecimento? Que etnocentrismo, que imobilismo prevaleceria ainda nas fileiras da sua ciência que lhes impedisse a constatação basilar de que os processos que testemunham e analisam nos seus terrenos de pesquisa não são sinais de um mundo que desaparece, mas sim de um mundo que se transforma, de um mundo que emerge, carga positiva, de um Changing World?” (Carvalho 1997, 116)

A atualidade do pensamento de RDC manifesta-se também na crítica à recorrente hierarquização cultural e à indústria da nostalgia promovidas por estes e outros circuitos, dessintonizados com o vigor e os códigos sócio-culturais das realidades descritas: 

“elite de zeladores do passado, de sobrevivências culturais, guardiães de uma nostalgia de todo estranha aos actores dos seus filmes, aos agentes sociais que os povoam, prospectores e divulgadores da diferença não para integrá-la num mundo de todos, mas para situá-la num mundo culturalmente hierarquizado?” (Ibid.)

Conclusão 

Os problemas colocados por Ruy Duarte de Carvalho nas décadas de 1970 e 80, aquando a realização dos seus filmes e da execução da tese em Antropologia, no contexto da Escola Francesa, desenhavam um método de trabalho que viria a atravessar a sua obra na íntegra: “uma lucidez inquietante, uma amargura a raiar o cepticismo radical – mas não será esta condição da primeira? –, um constante auto-questionamento e autoreflexividade” (Sanches 2008). 

Do trabalho de Ruy Duarte de Carvalho, faz parte a composição poética (e nisto incluo o cinema) e científica de narrativas ignoradas, pouco historiografadas, desafiadoras de poderes e percepções. Ao encontro da vontade de que finalmente o “hemisfério do observado assumisse a palavra”, sincronizado com os mais interessantes exercícios de uma antropologia auto-reflexiva, o seu programa passou por ouvir e ver o outro, antes que se tornasse apenas o “outro” ou meramente pensado. Percebendo mundividências particulares e vozes dissonantes, atendeu a sociedades que o mundo ainda comporta. Nas suas contradições e coexistências em contextos específicos, contribuiu para traduzi-las e acautelar a sua relevância, não aceitando a subalternização ou interpretações redutoras ao passado, ao “tradicional” ou à mera inexistência.

Nesse sentido, o cinema etnográfico, se posicionado no presente e com uma abordagem descolonizante, poderia até ser um instrumento muito capacitado. Porém, naquele momento, Nelisita apontava outros caminhos ou simplesmente recusava um olhar ainda comprometido com vícios da etnologia colonial. A pesquisa e o modo como descreveu os objetos dos seus interesses teve sempre em conta as relações de poder da produção de conhecimento, no ato de fazer filmes, romances ou teses, e os limites e dificuldades de contorná-las, mas foi delimitando a sua “determinada zona de compromisso”.

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in Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho (2019), Marta Lança et all (org), Lisboa: BUALA - Associação Cultural I Centro de Estudos Comparatistas (FL-UL). ISBN: 978-989-20-8194-6  

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  • 1. “Sobretudoquandoasuaaçãosesituanopresentequeéocasodagrandemaioriadocinemaafricano”(Carvalho 1997, 26).
  • 2. Expressão com que Ruy Duarte de Carvalho descreveu esta fase do cinema angolano (Carvalho 1997, 9).
  • 3. Embora nalguns casos se pretendesse a versão oficial, filmes sobre Congressos do Partido, etc., como conta o realizador Jean Rouch no seu regresso de Moçambique sobre uma certa desilusão de expectativas (Rouch 1978).
  • 4. O espólio de artes visuais encontra‐se também digitalizado na Casa Comum http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_11121
  • 5. Os documentários deste período teriam, assim, uma óbvia influência do cinema direto de Jean Rouch, que traduzia tanto as conturbações políticas como a mobilização popular da época.
  • 6. “A mestiçagem traduzida em planos”, escreve o autor na sinopse deste filme.
  • 7. Palavras do autor em e­mail para amigos em 2010.
  • 8. O texto “Cinema e antropologia para além do filme etnográfico” é a versão em português da sua dissertação de 1983, Cinéma et antropologie au­delà du film ethnographique, hipothèse d’une pratique apliquée à l’Angola. Paris, École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), mémoire de D.E.A.
  • 9. Em termos de uma conotação de crítica ao poder político, como o próprio autor explica, Nelisita “levava ali a sua mensagem, muita gente só agora entendeu o que aquilo queria dizer. Alguns de nós pensávamos que ia chegar o tempo do ‘toca a dividir’” (Carvalho 2004).
  • 10. O livro Principles of Visual Anthropology (org. de Paul Hockings) é de 1975.
  • 11. “É verdadeiramente a desarticulação deste longo aproveitamento histórico que me interessa como projeto político” (Hall, 1999).
  • 12. O cineasta e estudioso do cinema etnográfico David MacDougall (2006) defendeu o conceito do Cinema Transcultural que estaria ligado ao modo das imagens criarem conhecimento no mundo, no qual ver é menos valorizado do que a palavra.
  • 13. “A montagem intensifica a imagem e a dá à experiência visual uma força que as nossas certezas ou hábitos visíveis tem por efeito pacificar, velar” (Didi‐Huberman 2003, 170).
  • 14. Por exemplo a teoria do cine-verdade de Vertov sobre as possibilidades do cinema desvelar uma verdade da vida e quotidiano das pessoas, impossível de aceder senão pelo olho mecânico da câmara e pela montagem cinematográfica, uma vez que a imobilidade humana não alcança por si. Sendo a câmara exactamente uma personagem de O Homem da Câmara do Dziga Vertov, 1929.
  • 15. “Uma epistemologia do Sul assenta em três orientações: aprender que existe o Sul; aprender a ir para o Sul; aprender a partir do Sul e com o Sul.” Boaventura de Sousa Santos (1995), Toward a New Common Sense: Law, Science and Politics in the Paradigmatic Transition. New York: Routledge, citado em Meneses (2008).
  • 16. “Ousmane Sembène: Há um filme seu que eu adoro, que eu defendi e continuarei a defender. É Moi, un noir. Em princípio, um africano poderia tê-lo feito, mas nenhum de nós, na época, tinha as condições necessárias para produzi-lo. Acredito que é necessária uma continuação para Eu, um negro, de Rouch – penso nisso o tempo todo – a história desse jovem que, após a Indochina, não tem emprego e acaba na cadeia.” (Enwezor 2001, 449).
  • 17. “Uma vantagem e uma desvantagem ao mesmo tempo. Eu trago o olhar do estranho. A própria noção de etnologia está baseada na seguinte idéia: alguém confrontado com uma cultura que é estranha a ele vê certas coisas que as pessoas de dentro dessa mesma cultura não veem” (ibid.).

por Marta Lança
Ruy Duarte de Carvalho | 20 Janeiro 2020 | antropologia, cinema, Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho, etnografia, Jean Rouch, Nelisita