Percurso-paisagem

1. Uma produção de filmes sobre o estudo da flora e do património natural das ex-colónias portuguesas, a série No trilho do Naturalistas: missões botânicas em África. Filmar na paisagem o encadear de histórias da ciência, de missões botânicas protagonizadas por naturalistas do século passado que, munidos de interesse científico, genuína curiosidade e vontade de classificar o que lá se encontraria (instrumentos para justificar um direito histórico, ocupação e colonização de territórios, reforçando uma ciência ao serviço do poder), — percorreram terras africanas colhendo plantas, em longas expedições com tendas e pessoas a carregar mantimentos, para depois as analisar e arquivar, em herbários e jardins botânicos da metrópole. Com flexibilidade quanto à presença histórica desses anteriores viajantes, os nossos filmes pretendem divulgar a morfologia e metamorfose das espécies botânicas tropicais características aos locais, apontando também para a relação actual destes países com os seus recursos, a biodiversidade e a ciência.

E tudo isto a partir de viagens, agora nossas, sobrepostas às dos ditos Naturalistas. Primeira rodagem: Moçambique, entre dunas, mangais e floresta aberta, miombo — já concluída. Segunda: um salto a Malange, descer de Luanda, passando pela Huíla, ao Namibe, dos mais antigos desertos do mundo, focados na vegetação semidesértica, vamos averiguar se o vazio pode mesmo existir e admirar a grandiosa Welwitschia Mirabilis, resistente planta nas areias do deserto que chega a ter raízes de 30 metros e longevidade de mil anos. Tudo em excesso. Uns meses mais tarde o destino dos trópicos será o de S. Tomé e Príncipe, seguindo o rasto da quina que deu origem ao quinino, milagre contra a malária, embrenhados na floresta equatorial húmida, repositório de grande biodiversidade, rica em endemismos.

Espécies endémicas, ouvirei muito ao longo destas viagens.

Traduzida para pessoas, qual será essa qualidade de ocorrer apenas num determinado local?



2. Uma viagem pede disponibilidade para a liberdade. Partirmos movidos pelo espírito da eterna aventura, sem retorno à vista, preparados para enviar para os nossos reinos desolados somente os nossos corações embalsamados, quais relíquias

discursou Thoreau em Caminhada (1851)

ou

Agrada-me ver o espaço diminuto que os homens e os seus afazeres, a igreja, o estado e as escolas, o comércio e os negócios, os produtos artesanais e a agricultura, e até mesmo a política de todos o mais alarmante, ocupam na paisagem

desvalorizando as epidérmicas ‘expedições’ que

não passam de breves viagens que terminam ao fim da tarde junto à lareira que nos viu partir.

 Reconheço a crítica, a incapacidade de realmente partir, o difícil desprendimento de patrimónios consolidados, as defesas sobranceiras. Insisto nesse estado receptivo ao momento, ao desentendimento, às subtilezas, um gancho na mão furando o que a rotina não deixa entrever. É isso que espero de uma viagem contra o profissionalismo da viagem.

Porém, nesta viagem há condições: o percurso é ditado pelo que se busca na paisagem, a época deve ser a da floração, ao mesmo tempo que evitamos a estação das chuvas, os improváveis são presumíveis — os do caminho e das pessoas (como não?) — seguimos uma espécie de guião da natureza, e à narrativa composta por materiais diversos se juntará a fluidez, unidade e ritmo que faz o filme acontecer.

 

3. Entre simulações cartográficas desses viajantes e com companheiros do século XXI, contribuo para o lado pragmático desta empreitada. Intimamente tento desenrolar nas paisagens as suas palpitações silenciosas. Vão acontecendo pequenas epifanias ligadas à improbabilidade: estar no litoral norte de Moçambique, a contornar mangais e ilhéus de jibóias, apertada numa canoa firme e ritmicamente impelida por quem comanda o bambu, a nosso gosto, a dançar na água a uma segunda-feira de manhã. E perceber a vida urbana e conturbada, nervosa no desencadear de informação, lá tão longe, a emaranhar-se num pó discretamente instalado acima das árvores que observamos agora.

A ilusão da deslocação: não me ocupar daquilo que faz mover o lugar de onde venho — funções, trocas, acumulação, valor, carências, provas de afecto, ilusão útil que permite a fixação no aqui e agora — a serenidade desta água e um senhor a falar incessante e apaixonadamente do mundo das plantas.

Chega a acontecer ouvir primeiro o nome científico da planta antes de a ver, e haver máquinas a funcionar previamente aos olhos.

 

4. O mangal é uma árvore de incrível resistência a todas as invasivas aquáticas, porque afinal esta água também pode ser violenta. Repetição, fúria das marés, existência gasta da antiguidade do mundo. Para sua defesa, as raízes sobem, reviram-se, erguem-se em palafitas, cospem os xylocarpus  já germinados, protagonizam adaptações como só a natureza consegue.

A natureza, ou seja, nós. E apenas no século XIX se ousou falar em natureza humana.

Procuramos o mangal perfeito para filmar, e isso há-de demorar dias. Antes vamos percorrer vários canais, clareiras na praia que desaparecem e reapareceram conforme as marés, assim como as mulheres apanhando bivalves ritmadas por cantigas macuas. Andaremos muito de barco, por vezes periclitantes, navegados por pescadores menores de caras profundas à proa; caminharemos com dificuldade de material ao ombro, na maré baixa, entre ilhas. E talvez se consiga filmar o mangal quase perfeito.

Dentro do carro o entusiasmo dos biólogos surpreende-me. Só apanho fragmentos — um morcego-raposa com um metro, a acácia da febre amarela que as girafas gostam, 24 mil exemplares de plantas, melancia do deserto da namíbia, melão do deserto do sahara, queimadas para a caça, mulala uma flor branca para fazer escova, a sombra do cajoeiro onde as pessoas se reúnem, a casca da mandioca com cianeto que pode matar maridos. Um ping-pong de informações que, talvez pela ingénua alegria da descoberta, me parecem fundamentais, e quase me arrependo de ter tirado um curso de letras e saber tão pouco sobre aquilo que de material nos rodeia.

De repente o caminho da picada pela qual enveredamos torna-se por demais extenso e a urgência é a luz, que aqui desaparece demasiado cedo para o nosso dia-padrão de hemisfério norte. O guia, com nome de Sabia, afinal não sabia bem o caminho. Voltamos para trás e metemos de novo na povoação, Metuge, para enveredar por outra praia com mangal. Posto de administração, casa da Frelimo à esquerda. Uma mulher diz «a praia é lá», e lá significa «longe». Finalmente chegamos aos coqueiros onde o carro não passa mais, seguimos a pé. Um bando de miúdos garante ajuda na travessia do lodaçal em troca de cem meticais para comprar chinelos. Os caranguejos de uma só pata vão-se escondendo nos buracos do lodo, à medida que disfruto de andar descalça pela lama, enterrar os pés no macio pastoso, logo seco e desconfortável.

Aguardo um momento ao calor enquanto a cena do botânico a explicar as diferentes espécies do mangal é filmada. Perto, uns rapazes constroem um barco com a vitalidade precária de 6 meses, hão-de contar. Chamam-me para a sombra do estaleiro improvisado, oferecem-me o lugar mais confortável, o saco do algodão com o qual isolam a madeira do barco. Partilhamos uns carapaus assados no carvão diretamente em cima da areia da praia. Para eles Nampula é uma cidade longínqua, e o mundo compõe-se de nomes abstractos de lugares tão distantes que custa soletrá-los.

A minha tarefa é confirmar-lhes que esses lugares existem.

5.  Partindo de Pemba, atravessamos parte da reserva natural das Quirimbas, onde babuínos desconfiados viram costas, e o feroz ratel africano parece uma miragem à beira da estrada. A vida selvagem abandona Moçambique e o mundo em geral. O botânico conta que, na missão botânica dos anos 60, havia leões a cercar os acampamentos. 

Dormir lado a lado com o medo fazia parte dessas expedições.

Chegamos a uma das ilhas Quirimbas, o Ibo, grande posto de navegação referenciado nas cartas de piratas, onde mercadores árabes faziam entreposto com Sofala e Kilwa. Pessoas escravizadas, especiarias, tecidos, marfim, jóias e metais preciosos, o Ibo era um centro comercial à medida de Zanzibar, e foi a capital de Cabo Delgado.

O vento agita as folhas esguias das duas imensas mangueiras na fronte do Miti Miwiri, cujo redundante significado é «duas árvores». Trata-se de um hotel do tipo naturista, onde um alemão ex-bancário e um paquistanês simpático assistem os turistas nas dúvidas sobre marés, barcos, passeios pela ilha e destinos seguintes. Para retemperar o calor excessivo logo de manhã, é preciso garantir sombra ou beber uma cerveja 2M. Estendo-me num cadeirão de ébano. É fim-de-semana e ouve-se um grito prolongado, é golo do clube do Ibo que joga contra a equipa de Lichinga. Logo aumenta o volume da música.

O administrador já dissera que, em ganhando, a farra seria tal que iam «amanhecer». Ganharam, e aquele ar lânguido de fim de tarde, mesclado com o chamamento para a oração (Adhan), e os vultos a pairar nas ruínas coloniais — swahilis, portugueses, árabes e indianas, decadentes palácios de pedra com alpendres e pilares do século XIX —, foi temporariamente substituído por uma alegria pública. Risos estridentes de crianças, que hoje não passaram com os peixes gigantes à cabeça porque é dia de partilhar descanso.

Vamos conversar com João Baptista, ancião da ilha. Apresenta-se como conselheiro, historiador e 3º oficial da administração. Conta, com a lucidez possível dos seus 87 anos, a história da Ilha Bem Organizada (o acrónimo e a fama das mulheres bonitas são o piscar d’olho ao turista) e de como trabalhou com 40 e tal administradores entre portugueses e Frelimos, e de como sobreviveu ao «entra vivo, sai morto» da fortaleza. É que esta bonita ilha foi já sede da PIDE para a zona norte de Moçambique, presença sobre a qual o realizador Camilo de Sousa fez o filme «Silêncio de Sangue». Aliás, o primeiro contacto com portugueses seria desde logo trágico, com o massacre de umas quantas dezenas de muçulmanos.

E João Baptista, mergulhado em tempos outros, seis esferográficas no bolso da camisa, ambiguidade quanto à independência e fiel à obediência, passa a tarde numa cadeira da Índia a escrevinhar memórias e a repeti-las aos turistas quando os há, ganhando créditos como figura do ancião africano.


6.  Levam-nos a uma madrassa muito precária. O professor vem entregar-me o nib para eu passar à comunidade muçulmana de Lisboa para doações às obras na Mesquita. Jovens mulheres dançam a Damba com os seus folares para as nossas câmaras, praticada em ocasiões religiosas e sociais, casamentos, feriados ou visitas de políticos. Numa espécie de apatia e automatismo, iniciam a sua prestação com uma canção de boas-vindas ao presidente e ao Partido. Pedimos antes temáticas relacionadas com o mar e a natureza, ouvimos quase com condescendência aquela mistura de música árabe e bantu, frases de 30 segundos repetidas até vinte vezes. Explicam que em cada sequência há variações subtis nos padrões de percussão, ornamentação e movimento do corpo: uma ondulação levemente irrequieta, ao erguer-se parece que vão soltar-se, mas as sereias muçulmanas ficam presas ao chão com os seus lenços amarelos à volta dos rostos negros. 

A assistir estão outras rapariguinhas, até já falam português uma vez na escola, algumas têm na cara a máscara de mussiro. Um creme: do caule de uma árvore perfumada, uma húmida e farinhenta mistura que se fricciona na pedra e seca no rosto. Assinala a passagem da adolescência para a juventude, dá-lhes carisma. Sorriem envergonhadas aos rapazes brancos que descaradamente lhes roubam fotografias que cristalizam aquela fase importante das suas vidas. Elas percebem que há qualquer coisa de misterioso para os forasteiros nesse carismático apontamento de beleza.

Pressente-se o início do turismo, desde que há uns meses chegou a distribuição da rede eléctrica, «Cahora Bassa é nossa», é a piadinha do patrão branco de um restaurante. Certamente haverá em breve edifícios reconstruídos por investimento alemão, sul-africano ou francês, lodges  e eco-turismo com mais gente a comentar os horários das marés e a requisitar barcos.

Não voltarei a ver este lugar como está. É possível voltar aos mesmos lugares?


7. O biólogo Harith apanha uma barata africana, toda achatada, diz que é uma espécie menos frequente e fica contente com a descoberta. Ele pretende fazer os guias de campo dos répteis do seu país e anda sempre com frasquinhos para capturá-los, no outro dia comprou numa aldeia uma cobra enorme que morreu asfixiada na garrafa. O Gabriel, homem do som, figura carismática do cinema moçambicano desde o tempo de Samora, quando moçambicanos andavam a mostrar imagens de Moçambique e o mundo aos moçambicanos, tão diferentes uns dos outros, tão novidade uns para os outros, do sul, norte, interior e litoral a conhecer e a fazer acontecer essa ideia de país.

Gabriel, com apelido de herói independentista, Mondlane todos os dias saca da algibeira mais uma estória mirabolante, surpreendente, que nos deixa boquiabertos com aquilo que cabe dentro de uma vida. Não é só ter vivido os episódios que viveu, mas saber tão bem contá-los, transformar as tragédias em gargalhadas, fazer-nos visualizar cada gesto do acontecimento. O potencial das narrativas biográficas para um imaginário nacional, podem comprová-lo as teses, mas ouvir o Gabriel é mesmo encontrar o fio das narrativas perdidas. 

 

8. Estrada para o interior do país. Entre o pó e o alcatrão, entre o nada e outro nada, há sempre alguém a caminhar durante longas e tórridas distâncias. O tempo é a distância, só assim se fala: «é lá». Para trabalhar, para visitar parentes, para arranjar comida. Espaçados por poucos metros, meninos gesticulam e lançam-se na estrada a exibir a venda da castanha-caju. Um deles corre veloz quando paramos, «a minha vida é perseguir carros», uma corrida desenfreada para fazer 200 meticais.

Seguimos sem alimentar conversas de impossíveis mudanças.

A savana começa a ser interrompida por afloramentos rochosos. São os famosos inselbergs que nos trouxeram aqui, rodeados de líquens, floresta e ilhas de vegetação no cimo. Logo à saída de Nampula um enorme inselberg  de basalto, rosto de perfil do Homem Velho olhando para o céu, lenda local que lembra a morte do velho rei Monomatapa em 1750. Os rapazes correm a ver a equipa de filmagens, perplexos e orgulhosos que se filme e se admire a montanha — na mitiwi  — que é a sua paisagem de todos os dias. «É bonita?» perguntam e confirmam.


9. Malema, uma avenida de terra batida quase grande, mercado assente literalmente nos carris do comboio que vem do Malawi. Na ausência do comboio lá estão vendedores pacientes com as bacias de tomate, cebolas e alho. Quando o comboio estaciona ali, os vendedores começam uma desenfreada agitação: os passageiros temem perder o lugar, em viagens e paragens para lá da demora. Religiosamente sem largar assento, dão resposta ao comércio em redor do comboio, azáfama de mãos estendidas, frutas entregues, notas devolvidas e cacofonia de viajantes também eles pacientes.

Chegamos à zona da administração local onde fomos informar da nossa presença na povoação e da vontade de subir o monte Inago. «Filmar a montanha? Interessante», comenta um representante das autoridades. Manda interromper o feriado muçulmano do director de gabinete para vir aconselhar um técnico, o senhor Bonito, que conhece os montes como a palma da mão e irá subi-los connosco.

 

10. As montanhas insinuam-se em torno da vila, protegem-na dos calores e da desertificação, dão-lhe de comer. Avançamos pelo monte Inago, e é um corredor de acontecimento. Damos passagem a inúmeros camponeses no único caminho feito ao caminhar. Duas horas para ir duas para voltar, todos os dias há quem a suba. As machambas lá ao alto mais férteis: terra escura, micro-clima, perto do rio, muita

vegetação. Crianças calcorreiam a montanha, com pés velozes quase invisíveis, subindo e descendo com carregos de tomate, couves, bananas, cana-de-acúçar. Enormes troncos de árvores andantes desenham com perícia o trilho da montanha.

Aquilo que é rotineiro para esta gente, para nós parece uma experiência próxima de certos limites, ou pelo menos da complicação.

Embirramos com os diferentes ritmos de cada um, e os planos que não se consegue filmar, e a fome e a sede, e os pés cansados. E já só há água do rio se querem beber. Por mim tudo bem, mesmo com sabor a terra e fertilizantes, tenho como papel principal desdramatizar. É de feitio.

Conseguimos contornar a montanha e chegar ao lugar simbólico onde o botânico sénior estivera na missão dos anos 60. Sente-se realizado agora que ali chegámos. Não é muito nostálgico, mas acha graça ter voltado àquele fim do mundo. Mais do que isso, é para ele um luxo existencial voltar a estes lugares. É gente de outra educação, diria a minha mãe, pela resistência física e a espartana disciplina mental.

Mas eu admiro mais quando percebo que as situações de subalternidade o perturbam verdadeiramente. «Afinal ainda é assim?», parece perguntar-se.

 

11. A equipa do filme pernoita no único hotel de Malema, gerido pelo magnata da terra, proprietário de quase tudo: hotel, restaurante, gasolineira, loja, distribuição de cerveja, negócio da madeira e mecenas da igreja universal. Por estes dias há-de ser chamado a Maputo para dar mais um envelope a um pastor muito importante que chega do Brasil.

Eu e os biólogos ficamos numa casinha com telhado de colmo junto a uma aldeia macua. Por uma tarde permito-me o prazer de umas horas sedentárias. A equipa passou de rompão para buscar mais águas e seguir para outra parte da montanha antes que, imperativo maior, a luz desapareça. Entretanto esqueceram a chave dentro do jeep  trancado, múltiplas tentativas de resgatá-la, opiniões e uma certeza: nem pensar em partir o vidro pois não há no país outro igual para substituir.

Dois guardas perambulam pela casa, sempre a tentar garantir o conforto dos brancos a quem chamam de patrão por mais que lhes diga que não somos patrão de ninguém, e estamos de passagem. Negam beber da nossa água ou sentar-se à nossa mesa, inventam motivos para servir, não descolonizaram nenhuma parte do seu ser. Durante o tempo que ninguém frequenta este lugar, grande parte do imenso tempo, guardam afincada e pacientemente o armazém de milho, export marketing, de um argentino qualquer que viram duas vezes na vida, fazendo da propriedade a razão para encaixar o tempo vazio. E é a ideia de propriedade que os explora e que faz com que circundem a casa, no mínimo, 50 vezes por dia.


12. O ritmo da aldeia é animal mutante, como nós. No fresco das quatro da tarde, após um calor abrasador — um momento de letargia no alpendre — mães novas com crianças pela mão, crianças com outras crianças ao colo, rapazes de boné e calças às riscas, capulanas coloridas com t-shirts largas da caridade, fumegantes as casinhas de adobe e palha, agitação de roupas em estendais, folhas de quatro árvores diferentes, soubera eu identificá-las (apesar da companhia dos botânicos, nada sei sobre o mundo vegetal) vão atravessando o meu ângulo de visão. Música de rádio, organização rotineira de águas, permanente abastecimento ida e volta do caminho para o poço. Água peso-pesado, água-deleite. Uma mãe muito jovem dá banho à criança no alguidar, outra menina corta lenha. Divisão social e de género no trabalho, legitimidades ancestrais, dinastias, laços afectivos linguísticos religiosos, propriedade comunitária, equilíbrio certamente bem pensado e estruturado, numa cadeia de vida que acaba e começa aí, impenetrável à descrição.

O burburinho diurno dos aldeões nada tem a ver com o silêncio profundo no qual a noite mergulha cedo, assim como cedo continuam a amanhecer os aldeões. No escuro as crianças choram, serão doenças ou birras, revoltas em pequena escala. À noite os tambores, danças e xinguilamentos tomam de súbito o espaço todo. Estão a velar os mortos celebrando, e isso vai durar o tempo que tiver de durar. Adormeço com esses cânticos, que assim descritos parecem coisa exótica, mas vivê-los é um doce presente da vida. Gritos. Agonias? Deve havê-las, nada sei sobre esta gente macua e a sua hierarquia do mundo invisível, longe das crises financeiras e da play station.

Mas se pudessem escolher, o que prefeririam, onde gostariam de viver? E nós, escolhemos?


13. Aqui, como em todo o lado, naturalizam-se as hierarquias e os preconceitos classistas e raciais, que são muitas vezes a mesma coisa. E vamos percebendo a miséria, as dependências, o grande capital infiltrado, a ilusão de utopias pré-capitalistas das sociedades do sul, as orgulhosas taxas de crescimento económico que colocam a educação e saúde numa agenda oculta, as migalhas desse crescimento súbito, o olho dos mercados ao potencial dos recursos, a distribuição de riqueza para mais tarde. E aplaudimos quando alguma coisa acontece: classes médias emergentes, feridas das guerras quase restabelecidas, juventudes reivindicando liberdades, criatividade e solidariedade respondendo grandiosas a muitos problemas do dia-a-dia.


14. Das cubatas saem matutinos os camponeses para as machambas e as crianças para as suas escolas longínquas. Muitas vezes as crianças ficam sozinhas a reinar nas aldeias, a ter de garantir a vida de si e dos outros, vidas reféns dos ritmos da natureza e da sua capacidade humana. Esta presença saltitante das crianças está em consonância com a paisagem, em nada a perturba, plena nos caminhos de quem a habita atravessa de uma ponta à outra da aldeia, e da aldeia ao campo infinito.1  Mas nada pode cristalizar um tempo de um lugar. Ainda bem.

Os biólogos e cineastas recolhem às cidades para montar um filme sobre expedições aventureiras e plantas em Moçambique. O mundo continua um desafio para ser olhado, experienciado, e afinal nada inteligível.

 

[fotografias de António Gouveia, durante a rodagem do filme sobre Moçambique, em 2012, com realização de João Nicolau, produção Terratreme].

 

publicado originalmente na Revista Intervalo nº 6, dedicada ao tema Mundo 

 

por Marta Lança
Vou lá visitar | 1 Setembro 2016 | África, botânica, expedições, moçambique, No Trilho dos naturalistas, Terratreme