Resistência e inconformidade à violência policial, entrevista a Welket Bungué

O que têm em comum Eu Não Sou Pilatus e Intervenção Jah?

São filmes de resistência e vêm perpetuar um registo de inconformidade face à violência estrutural, institucional e racial reproduzida pelas forças policiais, ou militares no caso do Brasil, quando essas mesmas forças deveriam zelar pela segurança e integridade de todos os cidadãos a quem prestam serviço, independentemente da classe, origem ou cor de pele.

Tanto o caso de violência policial ocorrido no bairro Jamaica (margem Sul, Lisboa) em janeiro de 2019, como aqueles que acontecem diariamente nas periferias de cidades brasileiras, são um espelho da violência regular contra corpos negros. Como isto o afecta?

Enquanto cidadão global, a resposta deveria ser consonante para toda a gente. Havendo injustiças sociais movidas por comportamentos anti-éticos e de alienação praticados por um grupo, ou parte da população em detrimento de outra, devem ser enfrentados, se possível parados e discutidos de modo a encontrar uma resolução verdadeiramente justa para com os vitimizados. Isto é, antes do corpo negro ou negra, está uma pessoa diante de nós. Isso significa que há toda uma trajetória histórica e  uma rede familiar e de parentesco que não se resume ao facto de a pessoa ser negra, que diz sobretudo respeito a uma complexidade de relações e de pessoas que interagem com aquele indivíduo. Exercer violência sobre alguém, seja quem for, é um ato que está fadado a repercutir represálias, não só por aqueles que foram diretamente violentados mas possivelmente pelos seus pares, como manifestação de justiça reprimida.

É muito impressionante o relato daquela portuguesa anónima em Eu Não Sou Pilatus, com considerações profundamente racistas. Um discurso de ódio e preconceito é pronunciado com uma voz doce, ou beata, como se estivesse na igreja. Afirmando as coisas mais bárbaras e contrárias à realidade que vivemos, inclusive que os empregos bons são para os negros, que tiram tudo, etc, ainda assim consegue iludir-se na sua própria dissimulação do racismo. Pretendeu enfatizar esta linha meio demencial e perigosa em certas mentalidades portuguesas?

Estamos a falar de Eu Não Sou Pilatus. Há uma lacónica contrariedade entre essa figura clássica (Pilatus) e aquilo que o discurso dessa mulher relata no filme, mas deixo ao entendimento do público. O discurso demencial e perigoso da senhora do filme é deveras alarmante - vejamos que estamos num período no qual nos sentimos investidos a proferir discursos de ódio, ainda que altamente equívocados, mas não obstante ainda os destilamos nas redes sociais digitais e, pior, tudo isso pode tornar-se viral e daí que me vieram parar às mãos os dois vídeos que compõem o filme.

Ainda em Pilatus, há uma heroicização da polícia no discurso da mulher que alterna com as imagens de brutalidade no Jamaica. Como explica as percepções da polícia tão diferenciadas de acordo com as realidades sociais e raciais?

O filme tem especificamente a missão de trazer duas perspectivas distintas sobre a situação de violência policial no bairro da Jamaica (periferia), e como a senhora regista o aparato policial a partir da Av. da Liberdade (centro) para legitimar o seu discurso racista, fascista e xenófobo. Vemos em aparente simultaneidade as imagens da brutalidade na agressão física dos polícias no bairro da Jamaica e a brutalidade simbólica representada no aparato policial na Av. da Liberdade - quando pretendem deter uma manifestação de jovens levemente obstinados pela temática em questão. E temos ainda como fundo o discurso de alguém que provavelmente reflete a inequívoca confusão e desconhecimento que paira em muitas cabeças de portugueses em geral, que ainda não entenderam as implicações da colonização portuguesa em África e como os seus resquícios perduram na nossa sociedade até hoje.

'Eu não sou Pilatus', passa na Mostra Internacional de Cinema na Cova'19 inserido na programação do  VIII Kova M Festival 'Eu não sou Pilatus', passa na Mostra Internacional de Cinema na Cova'19 inserido na programação do VIII Kova M Festival

A manifestação pacífica e espontânea na Av. da Liberdade foi conotada (por alguns media e polícias) como desacato, etc. É como se estivessem desde logo a dizer aos jovens negros que aquele lugar (nobre) da cidadenao lhes pertence. O que pensa da segregação geográfica em Lisboa, tendo em conta Berlim e outros contextos europeus que conhece?

O centro histórico de Lisboa, sem falar do centro económico lisboeta, é um lugar ainda por ocupar pelas comunidades da diáspora africana. Embora a cidade se apresente cada vez mais como sendo cosmopolita, há uma reserva em relação às pessoas que incorporam os retratos do seu passado histórico de colonização, e por assim dizer estamos a falar da negritude africana-portuguesa. Essas comunidades africanas-portuguesas que habitam sobretudo as regiões limítrofes da cidade continuam a ser estigmatizadas sobretudo pela sua limitada mobilidade, assim como pela dependente ou reduzida condição financeira. Neste sentido, havendo uma insurgência do género da manifestação pacífica e espontânea na Av. da Liberdade, abre-se uma possibilidade de mascarar as verdadeiras intenções do corpo policial e dos seus mandatários, tal como já se viu anteriormente em relação aos jovens agredidos brutalmente por polícias de Segurança Pública na Buraca. Cria-se um clima teatralizado para que essa comunidade jovem, maioritariamente composta por afrodescendentes, em pleno ato de manifestação democrática, demonstrando a sua discordância com a impunidade e abuso de poder do Estado sobre eles, subverte-se o motivo pelo qual as pessoas estão ali, criando uma falsa situação. Isto serve para justificar aquele aparato exagerado de artilharia e recursos policiais na Av. da Liberdade, dignos de passeata de um chefe de Estado estrangeiro.

A sua performance no Morro dos Prazeres (Rio de Janeiro) alude a toda a necropolítica que se agudiza no Brasil. É um ritual de endurance, um corpo que fica exausto mas que se vai reenergizando com a ajuda dos ancestrais (referência à máscara guineense). como pensou esta composição no Intervenção Jah?

Intervenção Jah é uma ação performática com origem no caso da cidadã Cláudia da Silva Ferreira, moradora do morro de Congonhas na zona norte do Rio de Janeiro, que foi mortalmente baleada pela Polícia Militar na manhã de 16 de Março de 2014. Na tentativa de prestar socorro ao corpo da cidadã em desfalecimento, ela foi levada na bagageira do carro da polícia militar que inesperadamente acabou por abrir-se e fazer com que o corpo dela tombasse sobre o asfalto e fosse arrastada por cerca de 250 metros.

Foi uma tentativa de reviver esse acto de horror? 

Esta performance revive esse acontecimento de forma simbólica, mas propõe-se a sensibilizar sobre a desumanização e o isolamento perversos aos quais as comunidades periféricas e os seus moradores (maioritariamente afrobrasileiros) têm sido destinadas. Nestas circunstâncias, depois do caso Marielle Franco, depois do caso do senhor baleado 80 vezes acidentalmente pela PM do Rio de Janeiro porque confundiram o seu carro, é preciso enchermo-nos de coragem e continuar a provocar discussão para que emocional e psicologicamente as pessoas se questionem de que lado estão face a este extermínio, de que lado é que as pessoas querem estar quando nos lembrarmos destas pessoas, deste género de filme: Mensagem (2016), Eu Não Sou Pilatus, Bastien (2016), Arriaga e sobretudo acerca de como nos manifestamos presentemente, ou seja, como a nossa passividade é conivente com a perpetuação desta violência que impregna todos os setores e estruturas da nossa sociedade que se vem normalizando e resiste a assumir as suas responsabilidades.

Por quê o título Intervenção Jah?

Jah, para quem não sabe é uma forma de referência a Deus, segundo as culturas clássicas que reinterpretaram citações de nomes referentes a Deus em escrituras africanas e do Médio Oriente no dito Mundo Antigo. O meu trabalho passa por também resgatar a identidade espiritual dos meus ancestrais africanos, e os orixás que são a referência simbólica traduzida no uso do amarelo (Oxum) , branco (Oxalá) e vermelho (Xangô) no filme, são os motivos que me levaram a assumir este nome como título para a intervenção que fizemos.

O que sentiu durante aquela filmagem? Foi um plano de sequência?

A performance Intervenção Jah foi realmente executada no Morro dos Prazeres, e durou cerca de 45 minutos. O objetivo foi filmar a intervenção com duas câmaras em simultâneo. A câmara do realizador Daniel Santos ocupava-se em registar-me em sequência durante toda a performance, e a câmara da Jéssica Senra registava toda a performance incluindo os seus intervenientes que atuavam ao mesmo tempo que eu, ou seja, a Kristin Bethge fotografava tudo o que estava a acontecer e o Walter Reis criava a música espontaneamente no decorrer da intervenção.

 

Como coloca a questão da violência na sua cinematografia?

A violência é um espinho, ela não escolhe a quem tocar mas também não é qualquer pessoa que se aproxima dela, tem que estar de alguma maneira convencida, se certo ou errado, isso não sei. Nos meus filmes, sobretudo de realidade social, tento não desvirtuar a violência daquilo que é a sua génese, a meu ver, o sentido de justiça. E a grande questão é que o nosso sentido de justiça está maioritariamente errado, porque justamente somos tendenciosos nas nossas apreciações e cremos nunca estar errados. E quando isso acontece, se não há diálogo profundo connosco próprios ou com outros, acabamos por trazer a devastação da violência em todas as suas formas com as nossas atitudes. Sendo as personagens uma representação de atitudes, desejos e interpretações meramente humanas é altamente susceptível que a violência funcione como força impulsionadora para as narrativas dramáticas, mas é importante entender que quando fazemos filmes estamos a reproduzir leituras sobre diversos factos e isso incute-nos uma responsabilidade acrescida acerca do tema.

 

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FilmsReleased | BASTIEN | ARRIAGABUÔN AGINAL | VÃ ALMA  Projects On Going | NESSA CIDADE (doc-fiction) | SONHOS DE COR (feature film) Acquiring Funds |CANTANHEZ (documentary)| LEBSI & PRIMA (short film) 

por Marta Lança
Afroscreen | 26 Julho 2019 | Jamaica, periferia, polícia, Rio de Janeiro, violência, Welket Bungué