Haverá um nós «mulheres»?

No movimento feminista e por direitos civis, desde a luta sufragista passando pelos anos 70, as mulheres negras encontraram-se numa encruzilhada: não podiam falar sobre questões de género para não desviar do importante combate à opressão racial, tampouco era oportuno trazer à baila as questões raciais para não secundarizar a denúncia ao machismo. Apesar das apregoadas alianças e da almejada «sororidade», as famílias que foram compondo o feminismo entreolhavam-se sem se verem, ou não querendo entender as diferenças e as urgências de cada qual. A visibilidade e liderança penderam, porém, para as feministas brancas de classe média que tendencialmente dissociam e hierarquizam as preocupações raciais das de género.

Não encontrando lugar numa emancipação feminina que não incluísse dois elementos determinantes na sua vida — «ter nascido negra e ter nascido mulher» (p.33) —, a americana bell hooks escreveu, em modo interrogativo, à procura dessa identidade intersecionada. A experiência pessoal seria o ponto de parte para a experiência social: «antes de exigir aos outros que me ouvissem, tinha de me ouvir a mim» (p.10).

O racismo e sexismo de que foram alvo desde a escravatura, contribuíram para as deploráveis condições e estatuto das mulheres negras. A autora assegura que «nenhum outro grupo na América teve a sua identidade tão rasurada da sociedade quanto as negras. Raramente nos reconhecem como grupo autónomo e distinto dos negros, ou como parte integrante, nesta cultura, do grupo alargado de mulheres. Quando se fala de gentes negras, o sexismo opõe-se ao reconhecimento dos interesses das mulheres negras; quando se fala de mulheres, o racismo opõe-se ao reconhecimento dos interesses das mulheres negras.» (p. 26)

bell hooksbell hooks

Assim, a «jovem negra destemida do Kentucky rural» (p.11) que, durante os tempos da sua politização na faculdade, se ambicionou mulher livre e independente, escreve em 1981 este livro-manifesto que só viria a ser publicado próximo dos seus trinta anos. Não serei eu mulher tornou-se um clássico sobre a exigente disputa das mulheres negras para encontrar o seu modo de viver o feminismo. Se ainda hoje a defesa de um feminismo interseccional, que relacione questões raciais e de género, é desprezada, a discussão emancipadora e nada fácil de apreender socialmente, foi aqui  antecipada e alertada. 

Num estilo muito coloquial, não raramente circular em termos argumentativos, o livro revisita — na história, na literatura (ensaio e jornalismo) e nos desafios da sociedade americana — o impacto do sexismo durante a escravatura, a desvalorização da feminilidade negra, o sexismo tanto de homens negros como brancos, as ligações entre imperialismo e sexismo, o racismo camuflado no feminismo e a participação (resistência) da mulher negra no feminismo. À laiva de conclusão, a autora defende que o racismo e o sexismo institucionalizado, enquanto patriarcado, estão na base da estrutura social, neste caso norte-americana, mas extrapolável para tantas outras, e é ainda neste padrão que a maior parte das pessoas são sociabilizadas. 

Criticando os vários feminismos que deixaram de lado as experiências e lugares sociais das mulheres negras, envidencia como as mesmas tiveram de desbravar o seu próprio caminho de resistência. A identidade mulher (que Judith Buttler viria a desconstruir problematizando a construção de género) já tinha sido contestada por hooks. Da realidade da exclusão sistemática de um imenso grupo de mulheres, racial e sexualmente oprimidas ao longo da História, «sempre percepcionadas como o Outro, [como] seres desumanizados» (p.222) descredibilizada a universalidade do termo “mulher”.

A autora lembra como o movimento feminista americano foi inicialmente incapaz de pensar a branquitude como categoria privilegiada, ignorando e estereotipando mulheres negras, chegando a capitalizar sob a subalternidade a que estas foram relegadas. «Não era oportuno chamar atenção para o calvário das mulheres pobres ou para o calvário específico das mulheres negras» (p.227), reforçando assim o sexismo, o racismo e o classismo.

hooks aponta aos movimentos feministas os seus constrangimentos de classe, sendo que as mulheres brancas estiveram sempre em vantagem: com mais acesso à informação, instrução e capacidade de liderança. Refere ainda que o movimento feminista dificilmente soube denunciar o capitalismo, fazendo corresponder uma ideia de emancipação (nos termos do patriarca capitalista branco) à aquisição de estatuto económico e poder financeiro. «A tónica no trabalho era mais um sinal de como a percepção da realidade pelas brancas que lutam pela emancipação feminina era totalmente narcisista, classista e racista» (p.231). Um aspecto interessante da sua argumentação é recordar que o trabalho muitas vezes significa, sobretudo para as mulheres negras, quase sempre, o oposto da libertação.

Lamentando as dificuldades das mulheres negras em organizar-se e os momentos em que, por hierarquização das lutas ou por interiorização de preconceitos, foram refreando desejos emancipatórios, hooks revisita algumas vozes progressistas do século XIX. Ain’t I a Woman? , como ficou conhecido o discurso de Sojourner Truth (1797–1883) na Convenção de Mulheres em Ohio em 1852. Perante uma assembleia de brancas e brancos Truth repetiu o lema abolicionista apelando à humanidade perdida das pessoas escravizadas (e, segundo a autora, chegou a mostrar os peitos para provar que era mulher). Apesar de ter nascido escrava no estado de Nova Iorque, Truth conquistou a sua liberdade e foi uma das primeiras negras a aventurar-se ao discurso público anti-escravatura e pelos direitos das mulheres. São muitas outras as vozes às quais hook recorre para demonstrar que sempre existiu resistência da parte das mulheres negras. 

Mergulhamos nas experiências traumáticas da escrava negra, a bordo dos navios negreiros, depois «explorada como trabalhadora agrícola, trabalhadora doméstica, reprodutora e objecto de abuso sexual do homem branco» (p.49) e negro, pois o sistema legitimava a exploração sexual das negras. A autora avança que a violação das escravas seria um método institucionalizado de terrorismo com o propósito de desmoralizar e desumanizar as negras, com impactos nos nossos dias. Se se vivia num universo genericamente misógino, o desvio da doutrina cristã no século XIX alterou a percepção sobre as mulheres: a passagem «da imagem da branca pecadora e sexual para a de uma donzela virtuosa» (p.63), ocorria simultaneamente à exploração sexual das negras cativas, reforçada por mitos da sua promiscuidade e imoralidade. A feminidade negra foi constantemente desvalorizada, nomeadamente através da falsa ideia da matriarca — mulher forte que tudo aguenta —, estereótipos que ainda hoje afectam as negras, descriminadas no trabalho, na sociedade e, não pouco, atacadas pela moralidade. 

bell hooks refere ainda que os movimentos anti-racistas e nacionalismos negros também se revelaram misóginos e pouco interessados em sair da redoma patriarcal. Se apelavam ao fim das divisões raciais, fortaleciam as sexistas. Ou seja, no seio das suas comunidades, as negras sempre viveram um dominante machismo. 

Este livro, traduzido para português pela Orfeu Negro (existindo uma tradução livre da Plataforma Guetto), é uma importante aquisição para Estudos de Género, Estudos da Negritude e filosofia. Leitura fundamental num contexto onde o processo de combate à discriminação étnico-racial e de género tem ainda longo caminho pela frente. A associação FEMAFRO, conduzida por mulheres e jovens negras, africanas e afrodescendentes, e a INMUNE, entidade «feminista interseccional e anti-racista», vêm contrapor o silenciamento histórico e actual das mulheres negras na sociedade portuguesa. 

Enquadrado no debate sobre a urgência de pôr termos à negação enviesada do racismo, bell hooks é assertiva na defesa da necessidade das lutas contra o patriarcado e contra o racismo virem a par, sendo aliás, esse o fundamento político que dá amplitude e sinceridade ao movimento feminista enquanto um todo (com as suas singularidades). Este alerta de 1981 para não instrumentalizar o feminismo segundo interesses de certas mulheres, mas por todas e para todas as mulheres, continua muito atual. O movimento ganharia muito mais significado ao representar as experiências de várias mulheres, com a vulnerabilidade e força que daí advêm, construindo a sororidade sem vestígios de competição ou negligência. 

 

[Bell Hooks, Não serei eu mulher?, tradução de Nuno Quintas, Lisboa: Orfeu Negro, 2018.]


Artigo originalmente publicado na revista Electra nº 5, 2019.

por Marta Lança
Corpo | 7 Julho 2019 | Bell Hooks, feminismo negro, intersectionalidade, racismo