Lá vai ele e a sua solidão por aquele caminho serpenteante outra vez

Os poemas de Tiago Gomes sobreviveram ao 11 de setembro de 2001, ao Tsunami de 2004, ao Katrina em Nova Orleães de 2005, ao aquecimento global do Algore e ao encerramento do Bairro Alto às 2 da manhã. Aqui estão reunidos como testemunho de uma espécie rara do fazer poético: despretensioso e atento ao que por aqui, na nossa vidinha de sempre, se move (e o que lhe falta também). 

A poesia de Tiago Gomes nada deve aos muito recorrentes barroquismos da nova poesia portuguesa, às palavras caras como umbrais, freixo, baldios, escopro, urdir, fímbria, sulco, pináculo, degelo, dédalo. Encontrou uma voz singular, próxima da perspicácia e paixão adolescentes, e esta poesia reunida - necessário gesto de dar visibilidade a uma escrita que se foi construindo - não se esgota como livro de ‘auto-ajuda’ para todos que possamos andar perdidos, com dificuldades em aceitar certos códigos de vida. 

O registo coloquial permeia a desordem dessa mesma vida: entre o trocadilho e a ousadia do dizer directo, sem rodeios, permite que a sedução-solidão, as incompreensões, o conflito, a alegria ou o espanto ganhem mais expressão. 

O homem que corre o país de lés a lés com a salvação numa Bíblia debaixo do braço escreve por impulso e com sofreguidão. Vislumbramos aqui o que se persegue da noite — o que se pode pedir à noite? — o regresso a casa dos bêbados errantes e as juras de mudança sempre reformuladas. Na procura de si próprio desvia-se a medo, quase se enlouquece, mas é a exigente lucidez da escrita que o impele a fixar o fulgor do instante, a dar sentido à mais opaca experiência. Não deixa de criticar esta observação de poeta, às vezes de grande insolência, que o condiciona a um papel de parvo, de quem “sofre após o acto”. 

A voz confidencial nestes poemas é muitas vezes dirigida a um tu amante, alguém que o espia na sua deriva, a companhia idealizada e perfeita, sempre sexy, mas afinal imbecil quando as expectativas saem goradas. Depois das raízes buscarem água, e o amor é um alimento forte, não se encontra o estímulo seguinte para crescer. 

Nos poemas de Tiago Gomes encontra-se, isso sim, a geografia afectiva da cidade onde não só habita como nela respira, e da qual consegue arrancar camadas de vivência. Do trindade que é uns caos, do bairro alto que é um poema, do Tejo que é um vazio. Lisboémia, uma cidade linda, barata, segura, luminosa, cheia de entretenimento, sem dramas. Só a vil tristeza. 

Da Lisboa conhece os podres, os esquemas, o pessoal: músicos, bêbados, jornalistas, noiteabundos e lunáticos. E há a cidade sem solidariedade, povoada de sacanas, onde os cigarros arranham mais mas, por outro lado, o fado, o bitoque, a tasca, o rissol e o tremoço sabem mais familiares. O poeta diagnostica a superficialidade — “essa capa fina e invisível” — das pessoas giras, a cultura de plástico, o espectáculo e fetichismo do mercado que nos toldam como animais inofensivos e desejantes, atravessando-lhe o sarcasmo pós-moderno que se auto-satiriza.  As estrelas caem de cadentes, roucas de tanto gritar.

Mas há um lado militante, que não se perde a relativizar tudo, enfurecendo-se contra a injustiça, na fome de justiça. Critica a luta desigual que opõe homens a máquinas de repressão. Descreve a dura e aborrecida luta do quotidiano, o ócio disfarçado de ocupação, a anedótica burocracia, o mundo tecnocrata e a modernidade necessária. 

O que é desarmante na escrita do Tiago Gomes, é que o retrato da ambiguidade portuguesa, do nacional-porreirismo ignorante, o jogo de cintura que nos dá tanta ‘graça’ e cria personagens dignas de relato, é muitas vezes feito nos mesmos termos.  No país com a maior concentração de opinião por m2, também ele contribui para a estatística. Uma poesia com gíria popular e referências a Gogol e Maiakovsky, onde a vida própria se implica e se impõe como medida, não se poupando em juízos de valor. O olhar de réptil que contorna, perspectiva os outros e seus desesperos para depois retornar à esperança, ao assobio melódico do pássaro. Ao regresso serpenteante para carborar de novo, no dia seguinte. Nos poemas de sobrevivência e auto-ajuda que reflectem muito uma geração resistente, herdeira-bisneta dos surrealismos portugueses, a adaptar-se e a rir-se destes anos 00 com a bomba poética como remédio, melhor arma de sempre além do cianeto. 

 

Prefácio a Auto-Ajuda, de Tiago Gomes, Mariposa Azual, 2009

por Marta Lança
A ler | 6 Abril 2020 | independente, Lisboa, poesia, Tiago Gomes