Não-lugar

Toda a vida habitei um não-lugar. O não-lugar tem paredes, mas não tem porta; tem telhado, mas não tem teto; tem quadros, mas não tem janelas. No não lugar a luz entra através de frestas e o barulho intensifica-se nas arestas. O não lugar é vago, mas sufoca, transparente por dentro e baço por fora, como as embalagens.

Aos cincos anos comecei a reconhecer esse não-lugar. Comecei por perceber a falta de janelas, mais tarde descobri que não tinha porta e, recentemente, percebi a ausência de teto. 

Mas como todas as histórias, com ou sem final feliz, têm um início, vou começar por aí até porque, sinceramente, não sou disruptiva o suficiente para narrar em prolepse. Assim sendo, numa fatídica quinta-feira nasci, já a chorar com a intensidade demandada pelo simples, mas poderoso, ato de o ar deste mundo respirar. Aí a casa que eu nem conseguia ver tinha tudo: paredes, teto, porta, janela e até mobília.

E assim foi, até aos cinco anos, quando comecei a notar a ausência de uma ou outra cadeira. O meu lugar tão firmemente estabelecido começava a perder a firmeza. A principal culpada? – a minha barbie favorita, de cabelos escandalosamente lisos e loiros. Lembro-me de olhar para o meu cabelo e de o desprezar, passar horas ao espelho numa tentativa fracassada de o pentear. Usá-lo solto? Jamais! Não o via (nem me via) nem na Barbie, nem na televisão, nem nos jogos, nem nas imediações. E assim fui vivendo com uma cadeira a menos, que substitui por quadros, com que ornamentei as paredes do meu não-tão-lugar.

Lara GuimarãesLara Guimarães

E se aos cinco anos os meus cabelos constituíam a minha maior arrelia, aos onze anos a culpa da usurpação da mobília passou a ser dividida. Começando pela queratina e terminando na melanina, a diferença que eu sentia, permanecia. Fui para uma escola nova e, sendo das poucas pessoas negras que lá havia, já seria de esperar que a minha alienização ia começar. E uma dúvida se abatia – eu não devia estar feliz pela excessiva surpresa demonstrada pela professora, quando eu mostrava que sabia a resposta do problema? Ou ainda, não me devia sentir lisonjeada, quando o meu cabelo era motivo de conversa, quando os meus colegas com as suas mãos sebosas tocavam nas suas mechas, com a admiração inocente de criança que descobre uma nova substância em matéria já conhecida. Talvez devesse sim, mas não sentia. E o não lugar continuava a perder mobília.

Aos treze anos descobri que não era bonita e encontrar culpados deixou de ser importante. Dos rapazes não era a favorita o que não me chateava assim tanto, desde que a pauta se mantivesse exímia, afinal, era o único poder que eu ali tinha. Não tinha O cabelo, nem O nariz, nem A pele, mas tinha o “nunca esperei que fosses tão boa aluna” e isso a melanina não podia apagar. Mais um quadro era colocado no lugar para disfarçar a janela que, entretanto, de tinha desintegrado.

Aos quinze anos, ouvi a frase que me reestruturou “descobri-me bonita quando parei de olhar para os lados”, e descobri o que era representatividade, o que se revelou sagrado para mim naquela idade.

Aos dezoito, entrei na universidade e descobri, uma vez mais, que tinha o poder da invisibilidade. Novas questões começaram a ser por mim colocadas. Entrei numa faculdade com cerca de duzentos alunos, dos quais apenas cerca de uma décima parte eram pessoas racializadas. Onde será que aconteceu a rutura da minha utopia idealizada? Perdoem-me a anterior redundância, mas a diferença entre o que tinha sido na minha mente criado e a realidade era de tal modo flagrante, que não tive outra saída senão tornar-me redundante.

Não serão as pessoas racializadas boas o suficiente para ocupar também este lugar? Ou será que sou uma privilegiada? O meu não lugar materializou-se numa instituição em que nunca fui vista como igual, talvez porque tudo o que quisessem era ver-me lá, mas a limpar o chão.

Querido professor, será que naquela aula eu merecia aquela humilhação? Ou, professora, será que a qualidade daquele meu trabalho de meia tigela merecia tal ar de estupefação? Talvez seja só a minha tendência crónica para a reclamação, mas entre a sensação de constante subestimação e a síndrome do impostor porque, vá lá, “o meu trabalho não era assim tão bom, ela fez aquela avaliação com medo de uma qualquer repudiação”, a certeza que eu mantinha era a que, de facto, não era e não sou (somos) tratada como igual. A academia tem um dos braços abertos para nos receber e o outro, está escondido atrás das costas pronto para nos apunhalar, e mostrar com micro-manifestações que aquele não é o nosso lugar. Tão pequenas que de micro se fazem nano, até que qualquer contestação passa a ser vista como vitimização, porque vá lá, onde estão as provas dessa tal segregação?

Mais tarde, outra palavra se cruzou no meu caminho “interseccionalidade”, que se revelou para mim apenas como um conceito bonito, porque o feminismo ainda é sobre a mulher branca que gere uma qualquer empresa e muito pouco sobre a racializada imigrante que lhe limpa o escritório por um salário degradante.

E nesta dança em que é motor a inquietação, novas partes do não lugar que um dia achei meu, desaparecem, cada uma delas deixando comigo uma lição: é preciso continuar a luta, e é preciso ter consciência porque só com ela se desmantela a ilusão. Ainda tenho esperança de remodelar o meu não-lugar.

por Lara Guimarães
A ler | 22 Outubro 2025 | beleza, cabelo, formação, identidade, racismo