“Quando o algodoeiro responde em silêncio”, Rita Rainho
O que significa escutar com todo o corpo? E se a escuta não fosse privilégio dos ouvidos, mas uma habilidade sensorial que toca a pele, os ossos, o tecido das relações humanas e mais que humanas? Nesta exposição, somos convidadas a participar de uma sólida relação construída entre a artista Rita Rainho e o cultivo de algodoeiros, semeado e cuidado a partir da ação do coletivo Neve Insular com a Associação Agropecuária do Calhau e Madeiral. Uma conexão que atravessa limites sensoriais e discursivos, um diálogo íntimo entre arte, vegetação e memória. Por meio do algodão e de suas histórias, a artista nos instiga a perceber o que a escuta atenta do sutil silêncio de uma planta tem a nos revelar. Uma experiência onde o silêncio se revela tão expressivo quanto a palavra, e o invisível se torna tangível, transformando a escuta em um ato de união com os saberes que habitam sob a terra..
O que diriam outras partes do seu corpo se fossem ouvidos? O que comunicaria a pele das suas mãos? E os sinais nas suas costas, um braille tátil? Que segredos guardam os pelos da sua púbis ou o suco gástrico do seu estômago?
Reduzir a escuta à relação entre língua e ouvidos é ignorar tudo que vibra em um corpo ao som de um atabaque. As histórias que lembramos ao sentir cheiro de uma comida da infância. O olhar apaixonado entre duas pessoas que mergulham no vazio da existência por séculos em alguns instantes. Sou toda ouvidos. Imagino que a pele, ampliada muitas vezes em um supermicroscópio, seja composta por centenas de orelhinhas atentas, vibrantes.
Quando criança todo mundo escuta. É no crescer dos ossos que nos fragmentamos. Ouvir com todos os sentidos pode ser doloroso em alguns momentos, constrangedor em outros. Fica difícil ser um adulto funcional e se manter sensível à microescuta dos seres. Tantas vezes em que tivemos que ouvir desaforos e responder entre gritos silenciosos. As vozes que engolimos falam muito mais alto dentro e ensurdecem nossos receptores. É o que dizem as estudiosas da microaudiologia, nove em cada dez mulheres adoecem por tudo que escutam em silêncio.
Por meio das artes e da literatura, a ciência avança a largos passos na compreensão da microaudiologia. Esta exposição, por exemplo, nos mostra como se dá o diálogo entre ação coletiva da artista com e os algodoeiros. Foi necessário estudar cada etapa de cultivo da planta, suas fibras, observar a germinação, o balé voraz dos gafanhotos, a viscosidade das teias emaranhadas de cochonilha, o cultivo do feijão e da mandioca que trocavam recursos pelas raízes. Sabe que “as plantas podem usar o medidor da eternidade”(LeGuin, 2020). Com os anos, lentidão e afeto, o algodão passou a contar mais sobre si, sobre seus ancestrais, as viagens que fez, as terras onde viveu, sobre as mulheres que vieram antes dela, que teceram panos com desenhos de histórias da terra, histórias que contavam juntas, as tecelãs, as plantas o solo.
O silêncio do algodão para mim é diferente do que será para você ou para qualquer outro ser, ele se mescla com a sinfonia que carrega o seu silêncio, em uma composição única, performance inédita e em única apresentação, o instante-já que agora já passou e é outro, como diria Clarice Lispector.
O desejo humano por manipular o imensurável, de controlar o desconhecido é o que nos dá uma falsa ideia de que há um silêncio, uma linguagem que se manifesta em palavras, compreensível na sua totalidade. A tentativa de colonizar o mundo e as coisas do mundo, de categorizar, de nomear, de tornar reconhecível, são manifestações céticas e limitadas a um maniqueísmo dominador que se crê capaz de compreender tudo o que existe, mas que, na maioria das vezes, mal consegue ouvir com seus próprios sentidos. O que o algodão teria para nos contar sobre a monocultura das Plantations? E sobre a cultura dos povos antes da História? Quão imensa seria uma ciência botânica escrita pela poesia dos floemas?
Aqui, a prensa que seca amostras de plantas, utilizada na tentativa de categorizar a botânica, emite sons capturados em uma ilha, no meio do Atlântico, em um disco de vinil, dentro de uma caixa. Vã tentativa de compreender os sons de um instante manipulado, traduzido, aberto, recluso, transposto, reproduzido em uma miríade de novos sons, novas cores, novas paisagens, outras vegetações — você viu o medronheiro lá fora? Tentamos criar caixas onde guardar aquilo que sabemos do mundo, mas tudo que é vivo morre e se transforma a cada instante-já. Esse som, aquela árvore, eu e você, já não somos exemplares do que éramos há minutos atrás.
A terra de Cabo Verde na pintura de Júlio Resende é ainda terra de Cabo Verde décadas depois? E a que acabou de chegar? É daqui, agora? Esses escassos centímetros de solo, esse vestígio, esse passado, a bagagem que guarda em seu silêncio, os fantasmas que revela entre as sombras, o que te dizem? O que você responde quando o algodão te pergunta entre histórias e ruídos?
A exposição nos convoca à escuta como um ato de resistência, um gesto político e poético de reconexão com aquilo que nos constitui enquanto humanos — e mais do que humanos. As obras convidam-nos a ultrapassar a superficialidade do som para ouvir além dos ouvidos: o que diz o algodão, o que sussurra a terra, o que grita o silêncio. Nesta exposição, somos chamadas a redescobrir uma sensibilidade constantemente anestesiada, a perceber que tudo ao nosso redor vibra em narrativas únicas e diversas e a dialogar com o inefável.
Gabriela Carvalho, curadora da exposição Quando o algodoeiro responde em silêncio de Rita Rainho.
**
Rita Rainho, Lições de resistência, 2025 Série Fotográfica (42 x 50,4 cm) Acervo Herbarium da Universidade da Coimbra, Portugal (COI), COI00107946, COI00107948, Coletor João António Cardoso Júnior, 1887, Santo Antão, Cabo Verde.
Rita Rainho, Sou toda ouvidos, 2025, Escultura, 80x240x165cm, Áudio Vasco Martins
Rita Rainho, Escassos cm de solo, 2025 Instalação, dimensões diversas, Vídeo Nha Antónia, coletivo Neve Insular, 2020-23
Rita Rainho, Quando o algodoeiro te responde em silêncio, 2025. Instalação, dimensões diversas, Algodoeiros coletivo Neve Insular, Cabo Verde
Vista geral
Registos Fotografia de Carlos Campos
A mostra integra o programa EM LIBERDADE, inscrito no ‘Programa de Apoio a Projetos – RPAC / dgARTES’, desenvolvido por MIRA, AIR351, Colégio das Artes da Universidade de Coimbra e Lugar do Desenho – Fundação Júlio Resende. No seu âmbito, o Lugar do Desenho e o i2ADS promoveram o ciclo O PRAZER DA RELAÇÃO – O DESENHO EM LIBERDADE, comissariado por José Paiva e Paulo Luís Almeida, que reuniu exposições e performances de Maria Catarina, Letícia Maia e Rita Rainho.
A exposição “Quando o algodoeiro responde em silêncio” surge a partir do projeto de investigação AR.CV. “O algodão e a resistência a partir de Cabo Verde – cultivo do pensamento e práticas artísticas para uma história do presente” inserido no i2ADS/ FBAUP. Este projeto tem por base essencial o trabalho do coletivo Neve Insular, juntamente com Vanessa Monteiro em Cabo Verde.
Ficha técnica
Exposição “Quando o algodoeiro te responde em silêncio”
Rita Rainho
Curadoria
Gabriela Carvalho
Exposição germinado em cumplicidade
Vanessa Monteiro (coletivo Neve Insular)
Associação Agropecuária do Calhau e Madeiral
Gabriela Carvalho, José Paiva, Miguel Costa (projeto semente AR.CV “O algodão e a resistência a partir de Cabo Verde – cultivo do pensamento e práticas artísticas para uma história do presente”)
— “Sou toda ouvidos”
Desenho técnico
Ângelo Lopes
Pedro Tavares
Produção e Montagem
Pedro Tavares
Apoio à Produção e Montagem
Leonor Talefe
Música
Vasco Martins