A Negra
Ela gosta da ideia de velocidade de rebentação, de Paul Virilio. Diz ela que tudo na vida se submete ao princípio de rebentação. Desde a flor ou a larva, passando pelo mar ou útero, até ao sexo ou à bomba atómica. Por isso, diz, a sua difícil relação com a poesia. Ela diz que a poesia é a vagina da Linguagem, e que são muito poucos os verdadeiros e puros magos da fornicação de uma vagina. Di-lo a partir da sua própria experiência. A poesia requer a rebentação de Baudelaire, de Whitman, de Trakl. Deve cauterizar a alma, boicotar o fôlego, explodir na mente como um aneurisma gnosiológico. Dilatação e rebentação, eis o orgasmo da poesia que rareia. A sua acerbidade sexual, capaz de implodir um corpo feminino numa poça de sangue férvido, num desejo radical de transcendência, de cronometrar uma eclosão assassina da estética. Diz ela que a grande poesia rasteja e serpeia como uma víbora, explode em rebentação como o seu veneno, e engole o mundo como um rato. Esse mundo que a tecnologia mirrou de tamanho e em distância, e que cabe à poesia agigantar ao infinito. Este mundo em que a poesia precisa de transcender-se a si própria em nome da Filosofia, e a pornografia exceder-se a si própria em nome da Semiologia. Dessa quadratura do círculo, em que a Tecnologia circunda os restantes quatro domínios da Linguagem e do Corpo, emerge uma das suas mais ferazes e inconfundíveis divisas. O Hipornorealismo. Dizia ela tratar-se mais de um teorema do que de um conceito, em que um objecto sexual potencialmente mais frágil accionava um jogo de sexualidade hiperreal, que exponenciava ilimitadamente o seu poder sobre o agente sexual potencialmente mais forte. O dramatismo do jogo assentava numa lógica hiperreal-psicológica radicada no princípio fundador do jogo de vídeo. Essa dimensão simulacral do ‘vídeo game’ era por ela levada aos limites carnais do ‘vídeo pornográfico’. O hipornorealismo concretizava-se pela activação dupla do seu sexo abissal e da sua mente letal, num jogo de inspiração virtual executado por corpos reais. O resultado era, por norma, trágico para o seu parceiro de jogo, que nunca sabia que o era. Mais do que uma cultora da dimensão virtual do paradigma digital, ela era uma prosélita da dimensão marcial do vídeo. Em seu entender a melhor tecnologia de poder alguma vez engendrada. Dizia ela que o vídeo permitia o congelamento do real, o adiamento do real, e a conveniência do real. Ela experimentava tal poder filmando algumas das suas sessões de hipornorealismo. A câmara oculta no quarto era colocada de modo a que, tendencialmente, não captasse a cabeça do parceiro sexual, mas os instantes em que tal sucedia por acidente, eram suprimidos, a posteriori, no seu ‘software’ de edição, ‘Final Cut’. Nessas filmagens importava-lhe, é certo, o registo do acto sexual em si, mas sobretudo a sua própria dramaturgia Corporal e, acima de tudo, Verbal. Ela sentia-se detentora de um poder incomparável pela posse desse poder inabalável da Memória. Esta, como dispositivo, convocava em permanência o reatamento do jogo enquanto forma de auto-examinação, registo de progressão, e desejo de auto-superação performática no exercício de humilhação do poder masculino. Não lhe interessava o vídeo como mera documentação, mas como factor de Evolução, não como memória dos parceiros, mas como mecanismo de Auto-Avaliação. Não como pura pornografia, mas como Auto-Biografia. E como possibilidade futura de Video-Arte Documental. O vídeo é o instrumento da Relatividade. Da relatividade do Tempo, da relatividade da Realidade, e da relatividade do Poder, dependendo de quem o manuseia. Tal é o seu Poder, argumentava ela. Tendo estudado em Viena, ela sabia que o grande trauma Nazi não é proveniente da memória das vítimas, mas da memória dos arquivos, das imagens documentais, das imagens reais, fotográficas e fílmicas. E Trauma era o propósito último do seu Hipornorealismo. Ela escrevia sobre o que não via.
Excerto do novo livro de Brassalano Graça «Úlcera, útero».
