Da introdução tardia do ensino da língua materna no sistema educativo à elaboração de um manual e de uma prova de avaliação problemáticos. Introdução
Apesar de ser um avanço o reconhecimento oficial da língua cabo-verdiana no currículo escolar, a decisão de introduzir o seu ensino apenas a partir do 10.º Ano do ensino secundário revela inconsistência e contradições estratégicas preocupantes no que diz respeito à política linguística em Cabo Verde.
Com efeito, nos termos dos Artigos 6.º e 15.º do Decreto-Lei n.º 28/2022, publicado no Boletim Oficial n.º 68, I Série, de 12 de julho, que cria a Disciplina de Língua e Cultura Cabo-verdiana (LCCV), a «língua materna serve de base para o domínio do português e de outras línguas». Contudo, no Plano Curricular apresentado no mesmo diploma, a introdução da disciplina é relegada para o 10.º Ano de escolaridade, portanto, praticamente no final do subsistema, com caráter optativo e experimental, após 9 anos de ensino e aprendizagem da língua portuguesa.
A fundamentação teórica e contextual apresentada na Introdução do Programa para a disciplina de LCCV não tem respaldo científico que justifique essa introdução tardia da língua materna no sistema educativo. Aliás, esta medida contraria os resultados de estudos que demonstram que o ensino precoce da e na língua materna constitui uma base linguística sólida que também favorece a aquisição de outras línguas, é um fator de inclusão social e de reforço da identidade cultural (Cummins, 2021) e (The World Bank, 2005).
Esta tese é sustentada pelas observações dos professores envolvidos na implementação da disciplina de LCCV: os alunos que iniciaram o estudo da língua materna no quadro do Projeto de Educação Bilingue iniciado em 2013 implementado no ensino básico durante dois anos na Praia e em São Vicente, não enfrentaram as dificuldades nem demonstraram a resistência evidenciada entre os seus colegas que só iniciaram o estudo da língua materna neste nível avançado do ensino secundário.
Maria Cândida Gonçalves
Convém ainda referir que a implementação do ensino da disciplina no ano letivo de 2023–2024 ocorreu de forma apressada, não obedecendo aos princípios básicos de planeamento curricular, como, por exemplo, a coerência e a articulação entre os diferentes ciclos, disciplinas e competências. Acresce que, o ensino da disciplina de LCCV foi implementado em 2023 sem a devida atualização didático-pedagógica dos professores, que se viram confrontados com a proposta do uso da chamada norma pandialetal e sem a criação de instrumentos pedagógicos básicos ̶ o Manual só foi disponibilizado em fevereiro de 2025.
Neste contexto, tendo em vista o caráter ainda experimental da disciplina de LCVCV, descrito no respetivo programa como «uma experiência metodologicamente e pedagogicamente orientada no quadro de um projeto de investigação-ação» (Boletim Oficial n.º 68, 2022), importa considerar que o Manual elaborado para apoiar a sua implementação foi suspenso. Partindo do pressuposto de que disciplina será mantida no Plano de Curricular do Ensino Secundário, com caráter experimental durante o período previsto, e reconhecendo os impactos negativos que uma suspensão imediata poderá causar na gestão curricular no ano letivo recém iniciado, julgo oportuno apresentar algumas propostas de melhoria relativas ao programa, ao Manual e às futuras provas de avaliação.
Essas propostas visam fornecer aos professores materiais didáticos que sirvam de suporte à prática docente durante esta fase experimental. Acredito que as entidades responsáveis ainda dispõem de tempo para promover uma revisão séria tanto do programa como do Manual. Espero, por fim, que as conclusões extraídas desta experiência possam contribuir para reformas mais profundas e eficazes, conduzindo à oficialização plena da língua cabo-verdiana.
O Programa: breve reflexão
As discussões em torno desta matéria, têm-se concentrado, em grande parte, no Manual elaborado para a implementação da disciplina. No entanto, na minha perspetiva, não devemos ignorar o verdadeiro cerne da questão ̶ a introdução tardia da disciplina no plano curricular, o que resultou na elaboração de um programa com objetivos ambiciosos sustentados por premissas frágeis e conteúdos pouco equilibrados.
Entre essas premissas, destaca-se a expectativa de que as competências linguísticas adquiridas pelos alunos em língua portuguesa possam ser transferidas para a aprendizagem da língua e cultura cabo-verdiana (Boletim Oficial n.º 68, 2022). Tal pressuposto inverte a ordem natural de aquisição/aprendizagem linguística em que a língua materna (crioulo) precede a aprendizagem da língua segunda (português), sobretudo no contexto sociolinguístico dos cabo-verdianos residentes no país. Ademais, a realidade educativa em Cabo Verde revela que a maioria dos alunos conclui o 12.º Ano com fragilidades notórias na leitura, escrita e interpretação de textos em português, bem como dificuldades persistentes na comunicação oral. Se essas competências estão aquém do desejável numa língua com presença contínua no sistema desde o ensino básico, torna-se difícil sustentar que possam servir de base eficaz para o desenvolvimento de competências equivalentes noutra língua — que, neste caso, é introduzida apenas na fase final do percurso escolar.
Estes pressupostos influenciaram diretamente a elaboração do Manual que, paradoxalmente, apresenta conteúdos e atividades pedagógicas situados em dois níveis linguísticos distintos: por um lado, ao nível de principiante, dado que o aluno está apenas a iniciar o contacto sistemático com a escrita da sua língua materna; por outro, a um nível mais avançado, partindo do pressuposto de que o aluno já dispõe de competências estruturadas capazes de sustentar reflexões linguísticas e análises literárias mais exigentes.
O Manual
Considerações gerais
Entre os recursos didáticos que deviam complementar o Manual, destaca-se a ausência de um guia do professor, elemento essencial para oferecer orientações metodológicas e suporte à prática pedagógica docente.
Ao aplicarmos apenas dois critérios geralmente utilizados na avaliação de materiais didáticos — i) relevância e adequação dos conteúdos; ii) estratégias metodológicas — (Tomlinson, 2011) fica evidente a fragilidade do Manual em questão. Para os propósitos deste texto, considero que uma análise da Unidade I é suficiente para ilustrar essa limitação.
Relevância e adequação dos conteúdos ao perfil dos alunos
Os objetivos exagerados e pouco realistas do programa refletem-se na Unidade I. Os conteúdos propostos — como a história da evolução da escrita no mundo — revelam-se inadequados para esta etapa inicial. Em vez de facilitar o primeiro contacto dos alunos com a escrita da sua língua e motivá-los, tais conteúdos mostram-se pouco relevantes nesta fase e podem comprometer a aprendizagem.
Não há dúvidas de que o Manual contém aspetos positivos, que podem ser capitalizados, tendo em conta, por um lado, os recursos financeiros investidos na sua execução e, por outro, a urgência imposta pelo tempo para a viabilização do plano curricular. Neste sentido, apresento as seguintes propostas:
- Reorganizar os conteúdos, com um enfoque na história da escrita cabo-verdiana, desde as propostas pioneiras de António de Paula Brito até à institucionalização do Alfabeto Cabo-verdiano e eliminar conteúdos repetitivos sobre o mesmo tema. Esta abordagem tornaria os conteúdos mais acessíveis e significativos para os alunos promovendo uma maior identificação com a matéria estudada.
- Transferir para o guia do professor, que deve ser elaborado, todos os conteúdos excedentes. Estes poderão ser utilizados como informações suplementares, de acordo com o perfil e as necessidades dos alunos em sala de aula.
Estratégia metodológica: interação professor-aluno na modalidade escrita
Um dos aspetos mais controversos e sensíveis no processo da oficialização da língua cabo-verdiana diz respeito à adoção de uma variedade como norma-padrão. Diversas propostas têm sido apresentadas nesse sentido, mas a variação linguística tem sido frequentemente apresentada como um impedimento à oficialização. Esta é uma falsa questão, pois, na verdade, não existe nenhuma língua que não tenha variações. Elas surgem como um fenómeno intrínseco à dinâmica da própria língua e interação entre fatores históricos, sociais, geográficos e culturais.
Esta constatação torna-se ainda mais evidente quando observamos o uso efetivo da língua cabo-verdiana no quotidiano. Com efeito, no plano da oralidade, a língua cabo-verdiana tem vindo a ocupar, oficiosamente, espaços anteriormente reservados à língua portuguesa, sendo utilizada por cada falante na variedade que melhor domina e em situações formais e informais. Na escrita, pode-se citar um exemplo significativo de que a variação linguística não é um problema: as intervenções feitas em crioulo nas sessões parlamentares são registadas em ata na variedade do próprio falante, utilizando o ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-verdiano). As atas constituem mais uma evidência de que o ALUPEC tem cumprido os propósitos para os quais foi criado, ainda que se reconheça a existência de margem para o seu aperfeiçoamento
Portanto, a criação de uma norma-padrão é necessária para a escrita do crioulo, indubitavelmente, mas essa definição deverá ocorrer no momento oportuno, como resultado de estudos sociolinguísticos e outros rigorosos baseados em critérios teórica e contextualmente fundamentados. Tais estudos deverão ser conduzidos por uma equipa multidisciplinar competente. Assim, não há razão para decisões apressadas sobre esta questão, baseadas em argumentos teóricos não ajustados ao contexto sociolinguístico cabo-verdiano.
Proposta da norma pandialetal
Como tentativa de solução para esta situação de não existência de uma norma-padrão da língua cabo-verdiana, as autoras do Manual, ora suspenso, propõem nele a adoção da chamada «norma pandialetal» como variante padrão de escrita na interação professor-aluno, em comandos e instruções. Trata-se de uma proposta que busca criar uma norma linguística neutra, que não favoreça nenhuma das variedades existentes, com o intuito de promover inclusão e equilíbrio.
Embora a intenção das autoras seja louvável, a aplicação prática dessa norma no Manual mostra-se, infelizmente, inconsistente e de eficácia duvidosa. Na verdade, a versão apresentada aproxima-se da variante de Barlavento, oscilando entre esta e realizações da variante de Sotavento. Além disso, trata-se de uma adaptação específica do uso do ALUPEC, que exige aos alunos e professores o domínio de novas regras de escrita e de suas exceções. Cabe destacar ainda que o carater artificial da língua proposta pode comprometer o envolvimento emocional dos alunos — especialmente num momento em que se espera reforçar o vínculo afetivo com a própria língua.
Diante deste cenário de fragilidades e tendo em conta que o uso da norma pandialetal para a escrita da língua cabo-verdiana acaba de ser oficialmente declarado ilegal, propõe-se aqui uma abordagem metodológica alternativa, flexível e inclusiva. Esta proposta visa, por um lado, apoiar os docentes na interação escrita com os alunos, e, por outro, funcionar como uma estratégia pedagógica capaz de gerar subsídios relevantes para futuras decisões sobre a adoção de uma ou mais variedades padrão da língua cabo-verdiana.
Proposta de abordagem alternativa
- Apresentação inicial oral: na sala de aula, cada professor faria a introdução da disciplina e do Manual em língua cabo-verdiana, utilizando a sua variedade nativa, promovendo desde o início o reconhecimento da diversidade linguística como valor pedagógico.
- Introdução gradual do ALUPEC: A partir desta base, seria apresentado o percurso da escrita da língua cabo-verdiana, desde as propostas pioneiras até à oficialização do ALUPEC— conteúdos já existentes no Manual.
- Representatividade das variedades: Ao longo do Manual, os textos selecionados deveriam refletir a diversidade linguística das nove ilhas de Cabo Verde. As instruções, utilizando sempre ALUPEC, também deveriam representar esta diversidade, com cada variedade claramente identificada e usada conforme o(s) texto(s) em questão. Assim, o Manual tornar-se-ia um instrumento de familiarização dos alunos e dos próprios professores com as diferentes variedades da língua, em suas modalidades oral e escrita, sem recorrer a uma “língua artificial”.
Esta imersão linguística contextualizada parte do conhecimento prévio dos alunos, que já terão sido familiarizados com as funcionalidades do ALUPEC na representação escrita das diferentes variedades. Ela promove a compreensão mútua entre as variedades e reforça a perceção da língua cabo-verdiana como um património comum, cuja preservação e desenvolvimento devem respeitar e valorizar a sua diversidade. Essa abordagem está em consonância com os objetivos do programa da disciplina.
Análise da Prova de Avaliação
Como já se referiu anteriormente, a ambição pouco realista dos objetivos traçados para o programa traduziu-se na elaboração de um Manual igualmente ambicioso, marcado por uma sobrecarga de conteúdos — alguns dos quais desajustados ao nível de proficiência esperada dos alunos. Como consequência, a prova de avaliação elaborada no final do 11º Ano revela-se também problemática, apresentando fragilidades significativas que comprometem a sua eficácia enquanto instrumento de avaliação.
Principais debilidades
- Itens pouco exigentes: Muitos itens, especialmente no Grupo I da Prova, apenas exigem a cópia literal de partes do texto, sem avaliar competências reais de compreensão, interpretação e reflexão.
- Inconsistências ortográficas: A presença de formas diferentes como “text” e “test” para a escrita da palavra “texto”. Este e muitos outros exemplos revelam falta de revisão técnica.
- Oscilações na variedade linguística: A norma pandialetal proposta no Manual não se concretiza com clareza na prova de avaliação. Observa-se alternância entre formas regionais sem qualquer contextualização, o que sugere uma provável falta de domínio da norma por parte da equipa produtora.
Propostas para a elaboração de futuras provas
- Colocar o foco na avaliação da compreensão, análise e crítica, de modo a que a prova se constitua como um verdadeiro instrumento de avaliação das competências linguísticas.
- Garantir coerência e consistência linguística através de uma revisão rigorosa por uma equipa técnica especializada e independente.
- Incluir textos representativos de diferentes variedades da língua cabo-verdiana, apresentadas no Manual, com vista a garantir o alinhamento entre os conteúdos da aprendizagem e os da avaliação.
Conclusão
Reitero o que já defendi em outras ocasiões, transcrevendo parte do meu texto publicado em 2022:
“A implementação do programa para a oficialização da língua cabo-verdiana é, sem dúvida, um processo complexo, que não poderá ser desenvolvido em linha reta, mas é necessária, urgente e possível. Os objetivos poderão ser atingidos num horizonte temporal exequível, com uma definição de estratégias e metas e com o planeamento da provisão da assistência técnica e dos recursos humanos e financeiros necessários”.
Esta é uma jornada urgente, que não deve ser adiada sob pretexto de dificuldades ou resistências, nem deve ser iniciada com medidas avulsas e pontuais introduzidas aleatoriamente no sistema educativo. Se o objetivo é alcançar o destino com segurança e legitimidade, é fundamental iniciarmos já a construção dos trilhos. Esta construção exige reformas estruturais no sistema educativo, do pré-escolar ao secundário, sustentadas por políticas linguísticas formuladas ab initio com clareza de propósito e centradas na valorização das nossas duas línguas — a cabo-verdiana e a portuguesa.
Essas reformas devem assentar, seguramente, num princípio fundamental: as medidas de política linguística devem ser alicerçadas numa visão estratégica, tendo em conta o interesse de todos os cabo-verdianos, abarcando toda a complexidade que a oficialização de uma língua materna representa. Essas medidas terão de ser implementadas por uma instituição credível e desenvolvidas não apenas por um pequeno grupo de linguistas, mas sim por uma equipa multidisciplinar, num compromisso continuado.
Afinal, a língua cabo-verdiana não é apenas um meio de comunicação — é um símbolo vivo da nossa identidade coletiva.
Maria Cândida Gonçalves
Mestre em Educação
para a Formação de Professores de Inglês
Especialização em Linguística Aplicada
Professora aposentada da Universidade de Cabo Verde
Bibliografia
Boletim Oficial n.º 68 (Vols. I Série, de 12 de julho de 2022). (2022). Praia.
Cummins, J. (2021). Bilingual Children’s Mother Tongue: Why Is It so Important for Education? Sprogforum , Sprogforum, 7 (19), pp. 15–20.
Ferro, J., & Bergman, J. C. (2013). Produção e Avaliação de Materiais Didáticos em Língua Materna e Estrangeira. Curitiba: Editora Intersaberes Ltda.
The World Bank. (2005). Education Notes: In Their Own Language… Education for All. Obtido em 14 de set. de 2025, de World Bank Group: https://documents1.worldbank.org/curated/en/374241468763515925/pdf/38906...
Tomlinson, B. (2011). Materials Development in Language Teaching (2nd Edition ed.). Cambridge: Cambridge University Press.