Das razões de Angola - identidade e pertença e novas formas de nomear o mundo

(Nos 50 anos da Independência)

A partir da formulação de Ruy Duarte de Carvalho (Jornal de Angola 1997/Buala, 2000) e de uma experiência vivida, procura-se identificar marcadores culturais que individualizam o ser angolano e a sua pertença a uma ideia de nação geográfica e política no contexto africano e político. A ideia de angolanidade, construção literária tributária de vários movimentos, entre os quais se destacam o “Vamos descobrir angola” e da resistência como movimento essencial para a construção de uma identidade nacional por oposição ao regime colonial. É assim literário o primeiro esforço de imaginar uma nação conjugando a vários tempos a noção da utopia enquanto pacto com o tempo e então olhar a história com todas as palavras que a contam. Na poesia, nos jornais possíveis, nos contos, iluminaram-se conceitos de lugar, pertença, sujeito histórico, que antecipam a nação como comunidade representada e mediada pela palavra. A utopia literária encheu as páginas das narrativas de vida levadas para a ficção para dizer a nação. A partir dos anos sessenta do século XX, a luta armada de libertação nacional instituiu uma nova cartografia da nação, a ideia de Zona Libertada com a sua escola, as suas lavras e o investimento na criação de um imaginário para o futuro da Nação. Durou catorze anos essa primeira guerra e só muito recentemente começamos a saber dos seus contornos ao ouvirmos as vozes dos prisioneiros do Tarrafal, S. Nicolau e outros lugares de prisão ao juntarmos memórias de alguns sobreviventes (as vozes das mulheres são importantes) e recuperarmos aspectos da história que teimam em permanecer em silêncio e assim recuperarmos noções de comprometimento e identidade que não sejam excludentes em si mesmos.

Luanda 2023, fotografia de Marta Lança Luanda 2023, fotografia de Marta Lança

Angola foi a última das antigas colónias portuguesas a proclamar a independência: 11 de Novembro de 1975, depois de um processo longo de negociações difíceis como Alvor (Janeiro de 1975), Nakuru (Junho de 1975), Governo de transição com a participação de Portugal e do MPLA, da FNLA e da UNITA, e do país se ter transformado em território de guerra, violência estrutural. O dia da Independência Nacional transformou-se para muitos angolanos numa movimentação apressada em fuga da guerra. Para muitos, o que sobra desse momento é o esforço de elaboração que lhe permita dar conta de uma teoria da compreensão para o caos, o avesso, a morte. Necessário se torna o mundo do texto como proposição do mundo, um mundo que se possa habitar.

A independência Nacional trouxe de imediato a urgência de livros novos para a escola e da necessidade do recurso às múltiplas disciplinas para as tarefas do ensino, largo espectro de exigências a que havia que atender. Uma nova ideia de África começou a circular com o conhecimento da História do Mundo Negro (de todos os lados do Atlântico, Camera Laye, Sundiata e a importância da oralidade, novas dialéticas de sentido entre discurso e acção e abertura da recepção a um continente que não conhecíamos e de que queríamos ser parte. A leitura permitia espaço para outros discursos e para enfrentar o ocidente numa lógica de absoluta alteridade.

A realidade escapava à ideologia com as suas marcas de alinhamento e sujeição à ordem do mundo então vigente. A literatura (brigada jovens, projecto Ohandanji), o cinema e a música colaboram para a criação de uma ideia de nação. Articulam-se falas para o campo pluridisciplinar do conhecimento. O tecido da nação começa a ser urdido a partir do compromisso de alguns com os actos de lembrar e conhecer. Os primeiros sinais da heterotopia surgem ao lado das primeiras crises de identidade e hiperidentidade. As questões de identidade discutiam-se e foram temas de trabalho aprovados na Unesco. Um projecto intitulado “A questão nacional” agrega especialistas angolanos (história, antropologia, museologia, linguística) e cubanos para um primeiro estudo multidisciplinar sobre a contribuição dos vários saberes para a compreensão da questão de Angola. Os resultados nunca foram publicados. A noção de crise, violenta e estrutural, estabelece-se num quotidiano duro que se presta à reescrita da história e à anestesia da memória.

O presente é desmesurado e apela ao cuidado com a história única. Angola é o resultado de muitas histórias de vida e resistência de participação e dissidência. Os livros não param de aumentar. A moderna biblioteca permite hoje um levantamento e uma cronologia de diferentes momentos desde os antigos movimentos de libertação aos “révus” do século XXI.

A ideia de uma república popular foi anunciada nos primórdios da independência e praticada por grupos de jovens que muito perturbaram a ideia do homem novo saído da guerrilha e pronto para mudar o mundo. As novas configurações políticas surgidas nos principais centros urbanos acirram desigualdades e precipitam extremismos. Há feridas que ficam abertas para sempre. O presente não pode matar a necessidade da utopia.

 

Intervenção no contexto do Seminário “Como se Constrói um País: Diálogos Interdisciplinares”22 a 25 maio de 2025, organização BUALA

por Ana Paula Tavares
A ler | 9 Outubro 2025 | angola, Independência, Literatura, presente