4 cartas e dois bilhetes inéditos de José Luandino Vieira para Mário Pinto de Andrade
As quatro cartas e os dois bilhetes que agora aqui se dão a ler, mais o rascunho de uma carta de resposta de Mário Pinto de Andrade, datados entre «Maio 15, 1973» (quando Luandino, já liberto do Campo de Concentração do Tarrafal, mas com a liberdade cerceada, imposta pela residência fixa em Lisboa, num «exílio forçado», como ele escreve na primeira carta, não lhe sendo «permitido regressar lá para baixo [Luanda, Angola] nos próximos 5 anos»), e «Luanda, 26-6.87», com Angola já independente, são documentos absolutamente notáveis para a História, para além de testemunharem a magna importância da personalidade de Mário Pinto de Andrade (Golungo Alto, 21 de Agosto de 1928 – Londres, 26 de Agosto de 1990) como centro irradiante, não só da luta política e diplomática para a conquista da libertação de Angola e de África das contingências coloniais, como, também, do seu inestimável papel como intelectual e difusor da cultura angolana, mormente no espaço de língua francesa, a partir de Paris ou Argel, ou onde calhasse estar.
Antes, porém, da possibilidade de escrita destas missivas, e a par da criação e escrita da esmagadora maioria da sua obra de ficção (sempre em crescendo qualitativo e estético), houve para José Luandino Vieira (e para tantos outros nacionalistas angolanos e não só) um tempo tenebroso de cadeias, deportações e campos de concentração, que Luandino testemunhou impiedosamente nessa obra magistral e sem paralelo na língua portuguesa, Papéis da Prisão, que, mais que a biografia pessoal e literária de Luandino, é o testemunho implacável e colectivo de um capítulo fulcral da História de Angola: a epopeia maior de um povo lutando pela conquista da liberdade e da sua independência nacional.
Em 1959, pela militância da sua actividade cultural e política, Luandino é preso pela PIDE, no âmbito do chamado Processo dos 50, tendo sido, entretanto, libertado. Na sequência do 4 de Fevereiro de 1961 e do começo da luta armada de libertação nacional, Luandino, então funcionário de uma empresa inglesa, aporta a Lisboa com a esposa e o filho, bebé de 4 meses. Pretextando comprovada transferência de emprego para a sede londrina da empresa, depois de impedido de seguir viagem, por lhe ter sido confiscado o passaporte já dentro do avião, requer ao ministro do Interior de Salazar autorização para sair de Portugal. A resposta não chega, e Luandino dirige-se à sede da PIDE, que o havia intimado através de outro nacionalista angolano, Carlos Ervedosa (Luanda, 1932 – Sabrosa, Portugal, 1992), a lá se deslocar, a fim de tratar de «assunto do seu interesse».
Entretanto, em Luanda, os poetas e nacionalistas António Cardoso (Luanda, 1933 – Lisboa, 2006) e António Jacinto (Luanda, 1924 – Lisboa, 1991) haviam sido presos, facto que Luandino ignorava, e, nos interrogatórios, a PIDE estabelece ligação entre estes e Luandino, na criação de uma rede clandestina de apoio ao MPLA.
É o fatídico dia 20 de Novembro de 1961. Luandino é preso e posteriormente levado para Luanda, onde será julgado, à boa maneira colonial-fascista, pelo Tribunal Militar Territorial de Angola, a 8 de Julho de 1963. Foi condenado a 14 anos de prisão maior e à suspensão de todos os direitos políticos, em sentença de 22 desse mesmo mês. Juntamente com António Cardoso e António Jacinto, embarcam a 31 de Julho, no navio Quanza, deportados para o Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, de onde sairá acompanhado de António Jacinto, a 15 de Junho de 1972, ambos com residência fixa em Lisboa.
Porque «a vida não é o tempo, é a sua memória só», enceta, a 10 de Outubro de 1962 − ofuscando a tenebrosa sombra de esbirros e algozes com a luminosidade da sua certeza na angolanidade por que pugna como uma pedra angular na sua edificação colectiva de Pátria e de Nação −, o registo de tudo quanto ouve, assiste, vê e testemunha, imagina e sonha, em caderninhos de folhas frágeis, cujo papel − que só poderia ter sido feito da seiva da mafumeira mítica onde habitava uma kianda (sereia) e das águas, areias, capins e sangue vivo, inextinguível, da Lagoa do Kinaxixe −, a tudo resistirá, inclusive à tentação luandínica de tudo destruir, queimar.
São esses 17 cadernos de escrita cifrada e telegráfica, contendo inteiros a génese libertadora do povo angolano, esculpida a sangue ao longo de «doze anos da vida de um homem», que tomaram forma de objecto-livro, alentadíssimo de 1086 páginas, sob o título de Papéis da Prisão – apontamentos, diário, correspondência (1962-1971).

As palavras, desenhos, recortes de jornal e manuscritos fac-similados que enformam esta obra avassaladora e avessa a toda e qualquer classificação de género literário − pelo poder de magma para uma epopeia de Povo e de Nação, escrita a peso inteiro de sonho e de certeza e caligrafada com a lucidez do sangue que à Terra dado, da Terra jorra como lava de vulcão em colectiva voz uníssona e furiosamente bela e certa da Liberdade que, ali cerceada a uma potência infinita de inumano, se afirma numa limpidez que nenhum preço a pagar será capaz de a impedir de ser e plena se afirmar –, foram organizados, fixados e editados, com financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian e a inestimável colaboração do autor, pelos investigadores Margarida Calafate Ribeiro e Mónica V. Silva, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e Roberto Vecchi, da Universidade de Bolonha, num trabalho exemplar, devido, naturalmente, à constante e rigorosíssima vigilância do criador de Luuanda.
Papéis da Prisão, mais que uma voz autoral preocupada apenas com a escrita e glória da sua, muito sua e pessoalíssima obra (que, em verdade, se vai literariamente sedimentando em crescendo para a materialização de algumas das obras-primas incontestes desta nossa tão bela, mudável e irreverente língua portuguesa), é, pela pena perscrutadora e implacável de Luandino, a voz de Angola clamando, não já no deserto, mas inteira, indestrutível e inconspurcável na mais íntima linfa de um povo, para uma pátria verdadeiramente angolana, onde o lugar de cada um seja o lugar de todos e para todos, sem distinção de credo, estrato social ou cor de pele. Epopeia do silêncio imposto e transformado em voz, humaníssima voz − activa, límpida, soberana.
Ao seu drama pessoal, familiar e afectivo − afinal a contingência de todos os seus companheiros de cárcere, onde ninguém perguntava a razão por que o outro ali estava, porque «todos nos comportávamos como se todos soubéssemos porque estávamos ali» −, Luandino vai acrescentando uma parte maior da História da resistência angolana. E nisso, há uma ideia muito forte de Pátria e de Nação, que Luandino faz afirmar-se pela Cultura, no seu mais lato sentido. Um país só se poderá erguer e construir o seu rosto mais perene com um povo de onde o analfabetismo se erradique, onde a justeza do Ser seja a serenidade plena da dignidade humana nos seus mais ínfimos sentidos.
Ciente da poderosa força unificadora das culturas ancestrais, vemo-lo a recolher canções, provérbios e contos das oraturas nas línguas vernáculas, a apreendê-las, a trabalhá-las, e a ser depois professor daqueles que ainda não sabiam ler nem escrever; é a ponte na comunicação com o exterior. Mais que solidariedade, é um desmesurado coração de dádiva, carregado de Humanidade e de uma inquebrantável convicção de absoluta conquista da Liberdade e da independência nacional, o que atravessa estas páginas, desde as suas Luanda e pátria sagrada ainda por haver, à prisão flutuante que o deporta para o exílio, e a esse novo registo de tudo, que é o Campo de Concentração do Tarrafal.
Papéis da Prisão é a potenciação máxima da metáfora do indivíduo para essa magistral epopeia que é a sempre dolorosa construção de um país e uma pátria − livre e justa, angolana, de Cabinda ao Cunene: a História de um Povo sendo escrita sobre a matéria viva do instante, que não passou e transbordou para o esquecimento. Nunca!
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Libertado, como já atrás referi, juntamente com o poeta e nacionalista angolano António Jacinto, do Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, a 15 de Junho de 1972, em liberdade condicional, com imposição de residência fixa na «metrópole» (leia-se Portugal continental), durante cinco anos, Luandino permanece ainda quinze dias na Vila do Tarrafal, hospedado em casa da sua grande Amiga e guardadora fiel de todos os manuscritos da sua obra clandestinamente escritos e passados do Campo de Concentração para fora através de balaios de milho e outras imaginosas formas insuspeitas à vistoria dos esbirros de serviço, Senhora Dona Eulália Cândida Fernandes Andrade (nhá Beba), à espera que chegassem de Luanda a esposa Linda e o filho Xexe, para seguirem posteriormente para Lisboa, onde permaneceriam até ao regresso à cidade da infância, já muito depois do 25 de Abril de 1974, a 18 de Janeiro de 1975, após ter estado presente na assinatura dos Acordos de Alvor, a 15 de Janeiro desse ano, que visavam os procedimentos e trâmites entre o governo português e os três movimentos de libertação nacionais (MPLA, FNLA e UNITA) para a formalização da independência nacional de Angola, a 11 de Novembro desse mesmo ano de 1975.
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Um parêntese, para dar notícia do destinatário destas missivas.
Nascido a 21 de Agosto de 1928 no Golungo Alto, Mário Pinto de Andrade descendia de uma das mais antigas e respeitadas famílias de Luanda. Seu pai, Cristino Pinto de Andrade, era funcionário público, tendo sido um dos fundadores da Liga Nacional Africana, facto que influenciou indelevelmente Mário desde muito cedo, advindo daí o seu interesse pelas questões culturais africanas e a sua luta constante pela dignificação humana dos africanos.
Frequentou durante cinco anos o Seminário de Luanda, tendo embarcado em 1948 para Lisboa, onde se matriculou em Filologia Clássica na Faculdade de Letras, curso que não concluiu. Vale recordar que 1948 é o ano da criação do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, sob o lema «Vamos Descobrir Angola!», e da revista Mensagem, publicada pelo Departamento Cultural da Associação dos Naturais de Angola — ANANGOLA, onde Mário Pinto de Andrade colabora ao lado dos angolanos Agnelo Paiva, Agostinho Neto, Alda Lara, Antero Abreu, António Cardoso, António Jacinto, António Neto, A. Leston Martins, Bandeira Duarte, Ermelinda Pereira Xavier, Herberto da Silva Andrade, Humberto da Sylvan, João Jeremias, José Mensurado, Lília da Fonseca, Maria Joana Couto da Silva, Mário António Fernandes de Oliveira, Maurício de Almeida Gomes, Orlando Távora (pseudónimo de António Jacinto), Óscar Ribas, Tomás Ribas e Viriato da Cruz, e, de Moçambique, José Craveirinha e Noémia de Sousa, para além dos portugueses António Mendes Correia e Augusto dos Santos Abranches, ambos radicados há muito em Angola e em Moçambique, respectivamente.
Sublinhe-se ainda, o facto de, através dos bons ofícios do poeta e nacionalista António Jacinto, então membro da direcção da Liga Nacional Africana e da ANANGOLA, Mário Pinto de Andrade ter usufruído de uma bolsa de estudos, paga pela ANANGOLA, conforme carta de António Jacinto para Agostinho Neto, datada de «Luanda, 23 de Dezembro de 1951»1, onde refere «a criação de uma bolsa de estudos de 1.500$00 mensais que continuaria a ser atribuída ao Mário de Andrade».
Já em Lisboa, Mário Pinto de Andrade estabelece relações, não só com os estudantes africanos da Casa dos Estudantes do Império, como também com círculos da oposição portuguesa a Salazar. Ao lado de Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Mondlane e Francisco José Tenreiro, promove e participa em actividades culturais ligadas a África, tendo sido um dos fundadores do Centro de Estudos Africanos, em 1951.
Em 1953, juntamente com Francisco José Tenreiro, organiza e publica Poesia Negra de Expressão Portuguesa[fn]Poesia Negra de Expressão Portuguesa, caderno antológico editado em Lisboa em 1953, sob responsabilidade de Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro. Dedicado ao poeta cubano Nicolás Guillén, conta com colaboração de Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Alda do Espírito Santo, Francisco José Tenreiro, Noémia de Sousa e Viriato da Cruz. Em 2012, a editora Nóssomos publicou uma reedição fac-similar., cuja importância na divulgação e afirmação da poesia nacionalista africana é absolutamente incontestável, devendo sublinhar-se a traço muito forte a coragem e o visionarismo ali implícitos.
Na sequência de um cada vez maior empenhamento cívico e político, e para evitar uma mais que certa prisão pela polícia política salazarista, a PIDE, decide exilar-se em Paris no ano seguinte, onde se torna, a partir de 1955, redactor da prestigiada revista Présence Africaine.
Sempre irrequieto e visionário, é um dos organizadores do I Congresso de Escritores e Artistas Negros, que teve lugar na Sorbonne, entre 19 e 22 de Setembro de 1956. Em 1958, representando Angola juntamente com Viriato da Cruz, participa em Taschkente, URSS, na I Conferência de Escritores Afro-Asiáticos. Forma-se, entretanto, em Sociologia, na École Pratique des Hautes Études, em Paris.
Assume a presidência do MPLA, desde a sua fundação, até 1963. De 1965 a 1969, coordena a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP2), onde teve um papel decisivo na denúncia do colonialismo português e na elaboração de estratégias concertadas por parte dos movimentos nacionalistas FRELIMO, MPLA e PAIGC. Entre 1971 e 1972, integra o Comité de Coordenação Político-Militar do MPLA na Frente Leste.
Ser inquieto por natureza, Mário Pinto de Andrade não deixa nunca de aprofundar os seus estudos e reflexões sociológicos, históricos e políticos, elaborando estudos consistentes sobre as problemáticas socioculturais da formação das nações africanas (de que se destaca a obra recentemente reeditada pela Livraria Letra Livre, de Lisboa, Origens do Nacionalismo Africano – Continuidade e Ruptura nos Movimentos Unitários Emergentes da Luta Contra a Dominação Colonial Portuguesa: 1911-1961), sendo ainda um crítico feroz e documentado às teorias do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre e aos pressupostos ideológicos da negritude.
No Congresso do MPLA realizado em Lusaka, em Junho de 1974, opôs-se, juntamente com seu irmão Joaquim Pinto de Andrade e outros intelectuais e nacionalistas angolanos, naquela que ficou conhecida como “Revolta Activa”, à liderança do Movimento por Agostinho Neto, o que lhe valeu, em 1975, depois do seu regresso a Angola, o exílio na Guiné-Bissau, onde exerceu as funções de coordenador-geral do Conselho Nacional de Cultura (1976-1978) e de ministro da Informação e Cultura, de outubro de 1978 a novembro de 1980.
Simultaneamente, desenvolve actividades de investigação e consultoria, quer em Cabo Verde, quer em Moçambique, tendo sido eleito membro do Conselho Executivo da UNESCO, em 1980.
Não obstante ser cidadão honorário de todos os países que foram colónias portuguesas em África, Mário Pinto de Andrade nunca obteve a documentação de cidadão angolano.
Morreu em Londres, a 26 de Agosto de 1990, quando liderava o grupo de cidadãos cujo objectivo era constituir uma “mediação angolana” para o processo de paz em Angola, e preparava as edições da sua tese sobre a génese do nacionalismo africano e uma nova antologia de poesia africana.
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A correspondência que a seguir se pode ler, revela (de momento) ― excepto a transcrição de um rascunho manuscrito e muito rasurado de carta, sem data e não assinado, em resposta à primeira ―, apenas a parte dela enviada a Mário Pinto de Andrade por José Luandino Vieira, após a libertação do Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. A sua divulgação pública, aqui, deve ser tomada como um pequeníssimo contributo de memória histórica e de retrato fidedigno sobre o que foram, como foram, quem protagonizou e que preços se pagaram nas lutas de libertação pela conquista da independência nacional de Angola, neste ano em que se celebram os seus 50 anos.
Na primeira carta, uma carta de reencontro, de retomada de contactos (obviamente clandestinos) e, de todas, a mais longa, datada de «Maio 15, 1973», Luandino começa por agradecer a Mário e, extensivamente, à sua companheira Sarah Maldoror, «por tudo quanto tem feito pela minha modesta obra: divulgação e interpretação crítica», quando a esmagadora maioria da sua obra estava ainda inédita e proibida de publicação, quer em Portugal, quer no espaço colonial português ― atitudes e actividades essas, de que só pôde tomar conhecimento já fora da prisão, como sejam a publicação “militante” de Vidas Novas pelas Edições Anticolonial, Paris, s/d, e as edições, em português e impressão em stencil, bem como a tradução para francês (assinada por Mário Pinto de Andrade, que a prefacia, e por Chantel Tiberghien), primeiramente publicada na revista argelina Novembre e posteriormente no jornal comunista France Nouvelle, em 1965, antes de ser dada à estampa pela Présence Africaine, em 1971, a partir dos manuscritos clandestinamente enviados ao autor de «Muimbo Ua Sabalu», na sequência da prisão de Luandino em Lisboa, a 20 de Novembro de 1961, de A Vida Verdadeira de Domingos Xavier3, e do conto de Vidas Novas, «O Fato Completo de Lucas Matesso», com o título La Vraie Vie de Domingos Xavier suivi de Le Complet de Mateus (obras que deram origem à longa-metragem Sambizanga ― com adaptação de Maurice Pons e diálogos de Mário Pinto de Andrade ― e à curta-metragem Monangambééé ― com argumento de Sarah Maldoror, Mário Pinto de Andrade e Serge Michel ―, respectivamente de 1972 e 1969, sendo ambos os filmes dirigidos por Sarah Maldoror).

Consultando hoje, com olhos de ler, o espólio de Mário Pinto de Andrade, é verdadeiramente assombroso o trabalho que empreendeu para a divulgação da obra de Luandino, desde a organização de listas exaustivas de nomes onde figuram jornalistas, professores universitários, nacionalistas africanos e exilados políticos de vários países, da França à URSS, da Suécia ao Brasil, da Polónia ao Japão, do Senegal ao Vietname, do Congo Brazzaville à Checoslováquia, do Gabão à Argélia, de Marrocos aos EUA, da Inglaterra à Tanzânia, da Nigéria às duas Alemanhas de então, ao ministro da Cultura da República do Congo e ao vice-ministro da Cultura do Vietname, aos Bureaus do MPLA, PAIGC e FRELIMO, e a poetas e escritores como Aimé Césaire, Marguerite Yourcenar, Michel Leiris, Alioune Diop, Le Roi Jones, Arthur Lundkvist, Roger Bastide, Jorge Semprun, Claude Roy, Ousmane Sembène, Armand Guibert, Jorge Amado, Cheikh Anta Diop, Marguerite Duras, René Depestre e Léopold Sedar Senghor, que, em carta timbrada da presidência da República do Senegal, datada de «DAKAR, le 2 Juillet 1971», agradece o envio do livro, afirmando: «J’ai aimé cette prose poétique qui laisse aux sentiments les plus naturels toute leur puissance d’émotion.4»
Obviamente que o empenho de Mário Pinto de Andrade, quer como ensaísta e pensador crítico, quer como agitador e promotor cultural da poesia, literatura e cultura angolanas e africanas de língua portuguesa, a nível internacional, vai muito para além da ampla divulgação que fez da obra de José Luandino Vieira. Bastará lembrar as várias antologias de poesia africana que organizou, onde se destacam Antologia da Poesia Negra de Expressão Portuguesa, publicada em Paris em 1958, La Poésie Africaine d’Expression Portugaise, em 1969, também em Paris, e, em Portugal, em dois volumes, a Antologia Temática de Poesia Africana: Vol. I: Na Noite Grávida de Punhais, em 1977, Vol. II: O Canto Armado, em 1979. Isto, sem olvidar alguns dos mais importantes ensaios críticos e estético-doutrinários angolanos sobre poesia, literatura e política, onde se contam a biografia Amílcar Cabral: Essai de Biographie Politique, em 1980, e As Origens do Nacionalismo Africano, primeiramente publicado em 1997, e recentemente reeditado, como já foi referido, entre um número vastíssimo de dispersos e inéditos.
Refere Luandino, dadas as suas cerceadas liberdades de movimento, mas ciente da consumação da libertação de Angola e da conquista da sua independência, a impossibilidade da «alegria que teria em o abraçar pessoalmente — e conversarmos, discutirmos, analisarmos nossos problemas culturais (de outros pouco sei e destes é só um pouco de prática) — ter de ficar para um outro dia», acrescentando: «Dia esse que, claro, chegará. E só peço que nós nele também.»
Sem acesso à visualização dos filmes em questão, porque naturalmente proibidos pela censura fascista portuguesa, chegam-lhe algumas «críticas e referências sobretudo ao Sambizanga e só me posso orgulhar por tudo quanto ela [Sarah Maldoror] fez. E do pouco que li das suas declarações a propósito do filme, da matéria que versa, do tom em que o construiu, quero apenas dizer que é reconfortante ler aquela pequena passagem em que refere o “heroísmo quotidiano” numa revolução em marcha, o levar uns quilos de arroz para os guerrilheiros da mata por quilómetros e quilómetros. A profunda compreensão desse fenómeno de “paciência” revolucionária é — sei-o — um pouco difícil para as esquerdas europeias que têm sempre tendência a ver nos revolucionários do dito 3.º mundo essa agitação e acção intempestiva e “heróica” (o herói a morrer de metralhadora na mão é o único que concebem) de que só têm já a nostalgia. Por isso a minha grande alegria por ler as declarações de Sarah, a sua coragem de ir contra o cliché que (ainda) nos querem impor da realidade que nós conhecemos. Etc.»
Esta propositadamente longa citação é bem ilustrativa da profunda alegria que Luandino sente ao ver a sua obra tornar-se, entre a impressão em livro numa outra língua, mas sobretudo através de um outro meio de comunicação e divulgação artística, o cinema, num modo acrescido de eficiência irradiante, no combate social e político em favor da causa comum da libertação de Angola do colonialismo português. Mas também denota a consciência lúcida das idiossincrasias e desfasamentos conceptuais entre colonizados e guerrilheiros, por um lado, e, por outro, as formas como os ocidentais olhavam para as lutas de libertação, não obstante a sua militância de esquerda, e, por consequência, pelo menos em teoria, passe o termo, mais próximos aos ideais independentistas africanos.
Injusto seria não dar aqui nota do trabalho e da personalidade de Sarah Maldoror, ainda que a traço muito rápido, não só como realizadora cinematográfica engajada em todas as lutas de libertação dos colonialismos em África, mas também como cidadã empenhada na construção de uma humanidade mais dignamente viva e liberta de todas as contingências opressoras, fossem elas quais fossem, através da carga metafórica e da poesia que perenemente criou nas imagens dos seus filmes, sempre fiel ao seu pressuposto ético e moral, de que «a miséria não se combate com miséria: a miséria extermina-se com a beleza», tornando-os verdadeiros, poderosíssimos, belos, trágicos e sublimes poemas, não raro epopeicos, de que, quer Monangambééé, quer Sambizanga, são perfeitos exemplos.
Nascida em Gers, no Sudoeste de França, em 1929, filha de mãe francesa e de pai guadalupense, trocou o seu nome de baptismo, Sarah Ducados, pelo nome Sarah Maldoror, buscado, no mais nobre sentido da homenagem, no personagem negro dos Cantos de Maldoror, de Lautréamont, para assinar toda a sua obra. Ligada ao Movimento da Negritude, amiga de Aimé Césaire, Léon G. Damas e Léopold Sédar Senghor, conhece Amílcar Cabral e Mário Pinto de Andrade, que se torna o seu companheiro de toda uma vida. Nos anos de 1950, cofundou em Paris a primeira companhia francesa de teatro composta exclusivamente por actrizes e actores negros, Les Griots.
Numa viagem à Guiné acompanhando Mário nas suas actividades políticas, desponta-lhe o desejo de trabalhar em cinema, de modo a registar in loco as lutas de libertação nacional dos povos africanos e dá-las a ver ao mundo, numa declarada denúncia dos desmandos coloniais, ao mesmo tempo que registava o fabuloso manancial cultural desses mesmos povos.
Surge-lhe, então, a hipótese de ir estudar cinema para a União Soviética, oportunidade que não desperdiça.

Estabelecida, com a família, em Argel, então a meca de todos os revolucionários e libertadores pan-africanos, colabora com vários realizadores, como Gillo Pontecorvo, Ahmed Lallem e William Klein, antes de, em 1969, realizar a sua primeira curta-metragem, rodada na Argélia, Monangambééé, adaptando, como já se referiu, o conto de José Luandino Vieira, «O Fato Completo de Lucas Matesso», contando para isso com uma partitura do Art Ensemble of Chicago, o que transforma o filme numa epopeia musical sobre a liberdade e a denúncia dos crimes perpetrados pela polícia colonial portuguesa em Angola.
Em 1971, Monangambééé conquistou vários prémios, como o de Melhor Filme no Festival de Dinard, tendo sido seleccionado para a Quinzena de Realizadores do Festival de Cinema de Cannes, representando Angola, e para a primeira edição do Fórum do Festival de Cinema de Berlim, tendo no ano seguinte vencido um Tanit d’or no Festival de Cartago.
A profunda amizade que a liga a Amílcar Cabral estará na base da realização da sua primeira longa-metragem, Des Fusils pour Banta, dedicada à guerrilha na Guiné-Bissau, em 1970. Um mal-entendido entre a cineasta e o produtor argelino durante a montagem, levou ao confisco do filme, ainda hoje inacessível, e à expulsão de Sarah Maldoror da Argélia.
Em 1972, a partir da adaptação de A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, de José Luandino Vieira, Sarah realiza a sua segunda longa-metragem, Sambizanga ― primeiro filme de ficção realizado por uma mulher negra em África (a sua rodagem decorreu na República do Congo, onde o MPLA tinha então as suas bases), tornando-se um marco fundamental na obra e na carreira da realizadora, sendo considerado um dos mais importantes filmes africanos de sempre.
Estreado em círculos restritos em França, Sambizanga teve óptimas críticas, e, nos EUA, onde foi posteriormente exibido, teve uma recepção de tal forma entusiástica, que passou a ser um filme estudado nas mais diversas universidades norte-americanas. Outro pormenor nada despiciendo, para além da primazia do papel da mulher na guerrilha e na luta de libertação nacional, é o facto de ambos os filmes terem tido apenas um actor profissional no seu elenco ― Mohamed Zinet em Monangambééé, e Jacques Poitrenaud em Sambizanga ―, cabendo todas as restantes interpretações a militantes do MPLA e figurantes congoleses, o que proporcionou, durante as filmagens de Sambizanga e no seu produto final, uma verdadeira babel linguística, com cada actriz e actor, ou figurante, a falar na sua língua, num caldeamento de português, kimbundu, francês e lingala.
Sarah Maldoror faleceu em Sain-Denis, França, a 13 de Abril de 2020, deixando uma riquíssima obra multifacetada, que conta com 42 filmes e documentários, onde a poesia é a matriz constante, o traço de união entre o sonho e a vida, o combate pela libertação e a liberdade, sem jamais ter feito qualquer tipo de concessão ética ou política na execução do seu trabalho.
Num depoimento escrito recente, justamente sobre Sambizanga, afirma José Luandino Vieira que, «após o 25 de Abril [de 1974], foi com muita emoção que vi os filmes e admirei o belíssimo trabalho de Sarah. […] Hoje continuo feliz por esses camaradas e amigos se terem lembrado de usar os meus textos na luta de libertação nacional.»
Regressando a Luandino e a esta sua missiva, pede nela algumas ajudas a Mário Pinto de Andrade, a primeira das quais é a gentileza de uma cópia do original em português de A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, já que, na sequência da prisão, ficou sem nenhuma, e vê-se «na contingência de ter de traduzir a sua tradução para obter o original que gostaria de publicar em língua portuguesa, talvez no Brasil.» A outra ajuda solicitada, são os bons ofícios de Mário na resolução da questão dos direitos de autor, «que era dinheiro que me vinha resolver muitos dos problemas que enfrento depois de 11 anos inactivo», com várias advertências sobre a forma de lhe fazer chegar essa mesma verba.
Fala depois do seu trabalho de escrita, ou melhor, da organização dos contos em volumes, e das suas inevitáveis revisões estilísticas, «no domínio da exploração de todas as virtualidades da língua em transgressão com os modelos coloniais», bem como das tentativas de publicação em Portugal. Entretanto, através do seu editor Joaquim Soares da Costa, das Edições 70, recebe notícia do pedido de opção editorial por parte das Éditions Gallimard para a publicação da tradução francesa de Luuanda, assinada por Mário Pinto de Andrade. Dada a natural dificuldade da tradução, e trazendo à colação os problemas levantados pela tradutora inglesa da mesma obra, diz Luandino que esse problema e essa preocupação com o rigor do resultado final não se colocam em relação a Mário, dado o seu profundo conhecimento do kimbundu. Mas uma outra questão coloca o autor de Nós, os do Makulusu, que tem, muito de si para consigo mesmo, que Luuanda «não é o tipo de livro que os livros, digo, leitores europeus possam apreciar»: «será que a Gallimard vai distribuir [o livro] para os países de África onde há populações francófonas?» E acrescenta: «De qualquer modo: a minha alegria por o saber interessado na tradução e divulgação desses contos. Em princípio defendo a edição só do Luuanda pelo aspecto “histórico” digamos assim. Mas em caso de necessidade pode-se acrescentar as três estórias que tenho prontas sob título Velhas Estórias.»

Finaliza referindo, codificadamente como «o grande problema», ou seja, a luta de libertação, como algo de que nada pode dizer ao seu interlocutor. «Ou apenas que o dia de nos encontrarmos todos os que perdidos pelo vasto mundo esperam e procuram apressar a esperança e o encontro, há-de chegar. Essa crença fundamental, essa alegria da “paciência” do gumbatete5, é o que lhe peço que aceite de mim e minha família para si e Sarah — a quem muito nos recomendamos.»
Transcreve-se o manuscrito existente, profundamente rasurado e emendado, sem data nem assinatura, mas inquestionavelmente do punho de Mário Pinto de Andrade, contendo o rascunho da resposta de Mário à carta anterior, dando nele conta dos contactos que fizera e do que conseguira apurar sobre as «preocupações imediatas» de Luandino, ou sejam, os direitos de autor e a questão da publicação da tradução de Luuanda pela Gallimard, demonstrando uma disponibilidade, uma camaradagem e solidariedade absolutas.
O bilhete postal que se segue, com o timbre das Edições 70, sem data, mas escrito e enviado já depois da revolução dos cravos em Portugal, refere uma eventual ida a Paris, ou da sua mulher Ermelinda Graça, e então poderá resolver-se pessoalmente a questão do pagamento dos direitos de autor por parte do editor da Présence Africaine, mas, para isso, pede confirmação da presença de alguém na editora que resolva a questão. E, num breve parêntese, diz que «(parece que exibirão cá o Sambizanga!)», acrescentando num post scriptum: «Sobre a tradução [de Luuanda], da Gallimard nunca mais ouvimos nada.»
A carta seguinte, datada de «Outubro 15, 1974», começa por referir a viagem que Luandino fez a Lusaca, «uma longa viagem até África», precisa ele, a pedido do então capitão do Movimento das Forças Armadas portuguesas Ernesto Melo Antunes, com a incumbência de estabelecer uma ponte de contactos com o MPLA e o seu presidente Agostinho Neto, no sentido de se negociar um acordo de cessar-fogo entre o Exército português e o MPLA, com vista a negociações para uma futura independência de Angola. Mas nessa atribulada viagem, cheia de conecções aéreas, de Lisboa a Lusaca, não teve nos seus mapas de voo escala em Paris, de modo a poder «abraçar pessoalmente» o seu camarada de tantas lutas comuns.
Queixa-se depois do «pessoal da Présence», solicitando a intervenção de Mário, que se tem «portado muito mal comigo e não queria arranjar litígio como bem compreenderá» e que desde 1972 lhe não presta contas dos direitos autorais, quer do livro, quer dos direitos relativos à adaptação cinematográfica das suas obras.
A tradução de Luuanda e sua publicação pela Gallimard é outro dos temas abordados, uma vez que Mário Pinto de Andrade, com os seus agora cada vez mais sobrecarregados e urgentes trabalhos, sobretudo na área política com a iminência da conquista definitiva da independência de Angola, não tem a tradução definitivamente terminada, o que leva Luandino a sugerir que Mário delegue em alguém de confiança o termo dessa mesma tradução, ou, «in extremis, eu com a colaboração de alguém, poderia fazê-lo».
Valerá a pena citar na íntegra a terceira alínea da carta, onde Luandino dá conta da censura a que foi submetido, já em democracia, a passagem de Sambizanga em Lisboa:
«c) o filme Sambizanga foi proibido a poucas horas da sua exibição, já quando a casa estava vendida. Razões apresentadas: é um filme do Mov[imento], e o MPLA ainda está em armas, por isso a exibição poderia dar azo a provocações de direita… Já vi o filme, acho-o bastante bom (talvez demasiado chegado à letra do livro o que quanto a mim o espartilhou um pouco) e tentaremos tudo para que seja exibido para o povo português. Uma informação: não há cópias em 16 mm? Para Angola seriam necessárias. Os meus parabéns e sem reserva para o trabalho que realizaram a Sarah e o camarada. […] (se o filme vier a ser libertado, como reagiria ela a um convite para vir à estreia?)»
Na carta de «19/XI/74», a última escrita em Lisboa, responde Luandino a uma carta de Mário Pinto de Andrade, recebida através do editor João Sá da Costa, da Livraria Editora Sá da Costa, que haveria de editar Nós, os do Makulusu, em1975, na Colecção Vozes do Mundo, «esperando ter o prazer de te abraçar cá no 10 do próximo…»
Volta a ser abordada a questão da Présence Africaine e a falta de notícias por parte da Gallimard. E também Sambizanga continua na ordem do dia, após exibição em Lisboa poucos dias antes. A palavra implacável a Luandino:
«c) Sambizanga — Já tive umas pegas aqui em Lisboa com estes “críticos” — cafofos6 de olhos europeus que se julgam ainda e sempre o centro do mundo. Mas sobre tudo isto penso termos em breve ocasião de conversar de viva voz. Aquando da sua passagem por cá (só soube à última hora) ainda tive ocasião de trocar umas palavras ao telefone com a Elisa. O filme fez uma carreira breve, foi para Espanha e irá depois para Moçambique. (Pensa-se exibir, no 10 de Dezembro7, o outro filme, Monangambééé, está o CIDAC [Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral] interessado no caso. Seria, talvez, a altura de virem até cá! Perdoa a insistência.)»
Data de «16/5/86», já de Luanda, o brevíssimo bilhete postal seguinte. E nele está implícita a solidariedade de Luandino para com Mário Pinto de Andrade ― «Penso que um dia destes, nossos rumos se encontrarão: giramos à volta do mesmo Sol.» ―, relativamente à cisão e afastamento deste por parte do Movimento que ajudou a fundar, pelo qual sempre lutou, tendo sido o seu primeiro presidente, a que os acontecimentos subsequentes ao Congresso de Lusaca do MPLA, em Junho de 1974, deram lugar, e cujas feridas, 50 anos depois, ainda não cicatrizaram.
A última carta, datada «Luanda 26-6-87», é bem sintomática dessa posição de admiração, de amizade, «de incorruptível camaradagem dos anos de fogo» e de justiça de Luandino para com Mário, onde as «duas linhas para desfazer equívocos», já que «não dei qualquer incumbência/recado, etc. a ninguém!», revelam bem uma teia de intrigas em que ambos se viram involuntariamente metidos e «caçados no vento da história.» E mais: «De cada um e de nós todos, saberás pelo geral mais que nós. É o que interessa. O resto é o lodo que se deposita no fundo da história.»
Ciente da inestimável valia da presença de Mário Pinto de Andrade, da sua experiência e saber, que tão necessários seriam a Angola na sua construção como país e nação, Luandino desabafa, não sem um profundo desalento, se não mesmo uma terrível impotência no contorno de antigas quezílias internas do próprio MPLA: «Gostaria de te dizer que seria bom vires ver a tua terra e com esses anos de experiência de fora ajudar a percebê-la… Nós, escritores e UEA8 temos feito tentativas para te trazer cá, esbarramos no argumento de que o próprio nunca se mostrou interessado… Isto é apenas uma informação para teu governo.»
No dia seguinte, partia Luandino, juntamente com Pepetela, para São Tomé e Príncipe, «a proclamar a continuação do sonho antigo: MAC, CONCP, etc., etc. É a nossa LEC — Liga dos Escritores dos Cinco de que te mando o cartaz.»
Eis aqui um longo pedaço em carne viva da História de Angola ― a mais verdadeira de todas, porque vivida com o sangue e os sonhos, as utopias e as férreas e pacientes teimosias dos seus protagonistas no tempo em que tudo acontecia e se fazia acontecer ―, e que se não encontra ainda (e quando se encontrará?) nos chamados livros de História. Sejam eles os chamados oficiais, ou oportunistas e aldrabados, tanto faz. É na Poesia e nas literaturas (desde as ancestrais e fabulosas oraturas) dos povos que se pode encontrar a História desses Povos, a mais viva e verdadeira, a mais imune à sempre conveniente manipulação e usurpação de factos, ideias, conceitos e condições de vida, etc., etc., etc. Explicar isto, que é tão básico e tão óbvio, levaria no mínimo um semestre académico numa qualquer Faculdade de Letras. E não tenho a certeza de que não fosse uma irremediável perda de tempo fazê-lo. Mas ler fundo, de olhos livres e perscrutadores, ouvir as vozes antigas do dizer primevo, intuir no horizonte o momento de agarrar o relâmpago e suster o trovão pela raiz no seu voo, sim, isso é absolutamente fundamental. E está ao alcance de qualquer um, como as cartas e os bilhetes postais que a seguir se podem ler.
A CORRESPONDÊNCIA
Maio 15, 1973
Caro camarada,
Aproveito esta oportunidade para umas palavras que lhe devo há muito tempo. Desde que saí do Campo tenho adiado não sei bem porquê o momento de lhe dizer obrigado por tudo quanto tem feito pela minha modesta obra: divulgação e interpretação crítica. Muito me tem ajudado na reflexão sobre os nossos problemas culturais que, como deve imaginar, quase que tenho que meditar a solo. Isso sucedia nos anos de prisão e continua agora nestes de exílio forçado. Não me é permitido regressar lá para baixo nos próximos 5 anos; nem, creio, sair daqui para um salto até Paris. De onde a alegria que teria em o abraçar pessoalmente — e conversarmos, discutirmos, analisarmos nossos problemas culturais (de outros pouco sei e destes é só um pouco de prática) — ter de ficar para um outro dia. Dia esse que, claro, chegará. E só peço que nós nele também.
Toda a minha gratidão vai evidentemente em comum para Sarah Maldoror. Tenho ultimamente tomado contacto com as críticas e referências sobretudo ao Sambizanga e só me posso orgulhar por tudo quanto ela fez. E do pouco que li das suas declarações a propósito do filme, da matéria que versa, do tom em que o construiu, quero apenas dizer que é reconfortante ler aquela pequena passagem em que refere o “heroísmo quotidiano” numa revolução em marcha, o levar uns quilos de arroz para os guerrilheiros da mata por quilómetros e quilómetros. A profunda compreensão desse fenómeno de “paciência” revolucionária é — sei-o — um pouco difícil para as esquerdas europeias que têm sempre tendência a ver nos revolucionários do dito 3.º mundo essa agitação e acção intempestiva e “heróica” (o herói a morrer de metralhadora na mão é o único que concebem) de que só têm já a nostalgia. Por isso a minha grande alegria por ler as declarações de Sarah, a sua coragem de ir contra o cliché que (ainda) nos querem impor da realidade que nós conhecemos. Etc.
Quanto a problemas suscitados pelos meus trabalhos, tenho de lhe pedir que me ajude se puder. É que não tenho a mínima palavra em português do original do Domingos Xavier. Trabalhava nele à data da prisão, “desapareceu” e estou na contingência de ter de traduzir a sua tradução para obter o original que gostaria de publicar em língua portuguesa, talvez no Brasil. Se tivesse (como depreendo que tenha) algum “original” em língua portuguesa e mo fizesse chegar às mãos, era mais uma dívida para consigo.
Outro problema que tenho evitado referir-lhe de algum modo, é o dos direitos. Francamente e sem subterfúgios lhe digo que era dinheiro que me vinha resolver muitos dos problemas que enfrento depois de 11 anos inactivo. Mas não sei se é possível recebê-los ou se está destinado a algo de que não tenha conhecimento. Digo isto porque recebi da Présence [Africaine] uma carta com um extracto da conta corrente. Em face desse envio espontâneo das “contas” pedi a amigo meu que me recebesse os direitos em Paris. Mais tarde escrevi eu mesmo à Sra. Diop indicando o número da conta de minha mulher (que é empregada bancária) para onde poderiam transferir a importância sem quaisquer problemas (assim têm feito editores alemães, por ex.), mas até à data não tenho resposta. Gostaria apenas de saber se posso ou não contar com essa importância. Isto porque inclusivamente minha mulher tentaria ir a Paris em período de férias (se lhe concederem passaporte) e regularizava o caso. Poderá dar-me qualquer informação concreta?
Quanto a obras recentes — vou tentar editar três estórias que sobraram do Luuanda. Tenho outras prontas mais no domínio da exploração de todas as virtualidades da língua em transgressão com os modelos coloniais. Na mesma linha de Domingos Xavier tenho uma noveleta Um Muxiluanda e um conto «O Usuku, Kifumbe» que fazem um novo volume em que trabalho. São as notícias do pouco que consigo fazer do muito que desejava. Sei que pouco mais posso contribuir mas aquilo que estivesse na minha mão fazer não o quero deixar de fazer.
Recebeu o meu editor português pedido de opção da Gallimard para o Luuanda traduzido por si. Foi por isso que concordei logo. Sei os problemas que uma tradução dessas pode levantar porque tenho andado em “luta” com a tradutora inglesa (senhora que esteve em Portugal, sabe português, e ainda passou nove meses em Luanda), mas no seu caso evidentemente que esta minha preocupação não se põe. O meu único problema é pensar que não é o tipo de livro que os livros, digo, leitores europeus possam apreciar. Pois será que a Gallimard vai distribuir para os países de África onde há populações francófonas? De qualquer modo: a minha alegria por o saber interessado na tradução e divulgação destes contos. Em princípio defendo a edição só do Luuanda pelo aspecto “histórico” digamos assim. Mas em caso de necessidade pode-se acrescentar as três estórias que tenho prontas sob título Velhas Estórias.
Vejo afinal que escrevi muito não disse nada e falei apenas de insignificâncias. Em relação ao grande problema que lhe posso dizer que tenha interesse? Nada.
Ou apenas que o dia de nos encontrarmos todos os que perdidos pelo vasto mundo esperam e procuram apressar a esperança e o encontro, há-de chegar. Essa crença fundamental, essa alegria da “paciência” do gumbatete9, é o que lhe peço que aceite de mim e minha família para si e Sarah — a quem muito nos recomendamos.
O abraço camarada do seu admirador e amigo grato
JOSÉ LUANDINO VIEIRA
P.S.: Como entretanto tive notícias s/ o assunto dos direitos, junto um cartão com o endereço de m/ mulher, a quem pode ser dirigido qualquer cheque, s/ problemas.
Não fazer transferências porque exigem cá justificativo dos dinheiros recebidos.
LUANDINO
**
[RASCUNHO MANUSCRITO E MUITO RASURADO, DE CARTA DE MÁRIO PINTO DE ANDRADE PARA JOSÉ LUANDINO VIEIRA, INACABADO, NÃO ASSINADO E SEM DATA, RESPONDENDO À CARTA DE «MAIO 15, 1973»]
Caro Camarada,
Recebi com imenso prazer a sua carta. Teremos certamente oportunidade de abordar os nossos problemas culturais. Por agora, respondo às suas preocupações imediatas:
Acabo de falar com a Mme. Diop que, após verificação junto dos serviços comerciais, me assegurou que lhe irão ser enviados os seus direitos de autor.
Por outro lado, receberá o contrato para assinar tornando caduco o primeiro que me permiti assinar em seu nome na altura da publicação da novela. Assim, estabelecerá directamente relações com a “Présence Africaine”. Evite os intermediários. Se Ermelinda viesse a Paris (de preferência em Outubro) seria aliás uma ocasião para esclarecer com a Mme. Diop qualquer dúvida, em relação aos seus direitos de autor. Não há nenhuma ambiguidade quanto ao destinatário dos benefícios financeiros da sua obra.
Estou pronto a examinar os novos contratos que me queira enviar ― e sugerir eventualmente a composição do volume para a Gallimard. Mas cabe ao seu editor de Lisboa pedir o modelo do contrato para a cessão dos direitos de “Luuanda” e outras estórias ―
S/data
Meu caro camarada,
Saudações — e esperanças!
Duas palavras para lhe dizer que ou eu ou a minha mulher Linda iremos aí a Paris entre 15/20 de Julho. Poderá contactar a Sr.ª Diop (eu não tenho tido resposta às minhas cartas) e saber se aí estará ou se, em caso de ausência, alguém na Présence poderá pagar-nos os direitos indicados no extracto de conta de 10/10/72, i.e. 4.085 francos? Claro que só iríamos se pudéssemos ter a certeza de contar com esses dinheiros.
Nossos cumprimentos para Sarah (parece que exibirão cá o Sambizanga!) e um abraço nosso com a alegria de que a vitória é certa
Seu camarada
LUANDINO
P.S. — Sobre a tradução, da Gallimard nunca mais ouvimos nada.
josé luandino vieira
av. duque de ávila, 69, r/c esq.
lisboa 1
Outubro 15, 1974
Caro camarada,
Nem mesmo uma viagem longa até África — que eu tencionava com escala em Paris e não foi possível — me deu ensejo de o abraçar pessoalmente. Vua diami10! Outro dia será e creio! se aproxima rapidamente.
Escrevo-lhe hoje duas linhas para assuntos pessoais em suspenso:
a) o pessoal da Présence tem-se portado muito mal comigo e não queria arranjar litígio como bem compreenderá. Mas desde 72 que me não enviam, sequer, o resumo dos direitos anuais quer do livro quer da exploração do filme. Além disso todas as tentativas feitas para que me fosse pago o primeiro saldo que me indicaram resultaram em vão. Tentei de todos os modos inclusive anunciando, finalmente, que minha mulher iria a Paris e que aproveitaria para os contactar. Não deram resposta e tive de cancelar a ida. Pode-me dizer qualquer coisa, sugerir qualquer coisa, fazer qualquer coisa? Gostaria de regressar a Luanda com este assunto arrumado, não deixar “rabos europeus”.
- a tradução do Luuanda. Pelo meu editor português, Soares da Costa, soube,
no ano passado que o camarada tinha a tradução praticamente terminada — ou melhor: a tradução estaria feita, faltando apenas a sua revisão, essencial. Assim, sabendo-o para outras paragens, escrevi a Ugné Karvelis, para saber da decisão da Gallimard. Em sua resposta ela me diz não ter ainda em seu poder a tradução sem o que nada pode decidir. Dizia-me que iria tentar contactar consigo novamente mas que, por meu lado, fizesse o mesmo porque «ce serait effectivement le moment de publier vos textes»11. Como também penso que sim, é a altura, pedia-lhe que me dissesse alguma coisa sobre o estado e andamento do caso, sua decisão em relação a ele ou ainda possibilidade (por sua total impossibilidade) de outro alguém que o camarada indique, terminar o trabalho. (Se for o caso, in extremis, eu com a colaboração de alguém, poderia fazê-lo).
c) o filme Sambizanga foi proibido a poucas horas da sua exibição, já quando a casa estava vendida. Razões apresentadas: é um filme do Mov[imento], e o MPLA ainda está em armas, por isso a exibição poderia dar azo a provocações de direita… Já vi o filme, acho-o bastante bom (talvez demasiado chegado à letra do livro o que quanto a mim o espartilhou um pouco) e tentaremos tudo para que seja exibido para o povo português. Uma informação: não há cópias em 16 mm? Para Angola seriam necessárias. Os meus parabéns e sem reserva para o trabalho que realizaram a Sarah e o camarada.
Não lhe roubo mais do seu tão precioso tempo. Pedia-lhe duas linhas de resposta a estes casos que queria arrumar antes de seguir para baixo, para Luanda — depois tudo será mais difícil.
Saudações camaradas para Sarah (se o filme vier a ser libertado, como reagiria ela a um convite para vir à estreia?) e para si um candando do seu sempre ao dispor
LUANDINO VIEIRA **
19/XI/74
Caro Mário:
Recebi a carta pelo João Sá da Costa e passo a responder resumidamente talvez esperando ter o prazer de te abraçar cá no 10 do próximo… Não é possível remover as dificuldades que existam?
a) Présence — Acredito que tenham escrito a carta mas com a greve dos correios ainda a não recebi. Gostaria de arrumar o caso com eles visto regressar a Luanda em definitivo em meados do próximo mês. Mas não sou tão optimista como tu.
b) Luuanda — Ciente. Ugné Karnelis ainda me não deu mais notícias. Manter-te-ei ao corrente do que se for passando.
c) Sambizanga — Já tive umas pegas aqui em Lisboa com estes “críticos” — cafofos12 de olhos europeus que se julgam ainda e sempre o centro do mundo. Mas sobre tudo isto penso termos em breve ocasião de conversar de viva voz. Aquando da sua passagem por cá (só soube à última hora) ainda tive ocasião de trocar umas palavras ao telefone com a Elisa. O filme fez uma carreira breve, foi para Espanha e irá depois para Moçambique. (Pensa-se exibir, no 10 de Dezembro13, o outro filme, Monangambééé14, está o CIDAC interessado no caso. Seria, talvez, a altura de virem até cá! Perdoa a insistência.)
Sempre que possível dá notícias. Escreverei antes de ir para Luanda, logo que saiba o novo endereço.
Um candando15 do LUANDINO
16/5/86
Caro Mário:
Não dá para escrever, dá só para abraçar. As últimas novidades — velhas e novas — aí vão. Penso que um destes dias, nossos rumos se encontrarão: giramos à volta do mesmo Sol.
Um abraço. Votos de saúde, êxito no trabalho.
LUANDINO
**
Luanda
26-6-87
Caro Mário
Duas linhas para desfazer equívocos e sobretudo enviar o candando da amizade: não dei qualquer incumbência/recado, etc. a ninguém! Espero ter a oportunidade de te encontrar no espaço dos 5, dos 7 ou dos muito mais que somos caçados no vento da história.
De cada um e de nós todos, saberás pelo geral mais que nós. É o que interessa. O resto é o lodo que se deposita no fundo da história.
Gostaria de te dizer que seria bom vires ver a tua terra e com esses anos de experiência de fora ajudar a percebê-la… Nós, escritores e UEA temos feito tentativas para te trazer cá, esbarramos no argumento de que o próprio nunca se mostrou interessado… Isto é apenas uma informação para teu governo.
Como não posso dar notícias que não saibas, pergunto de ti e do teu trabalho pois vemos apenas o rasto do cometa pelos “Cinco”, conferências e cursos, o bom trabalho. Votos de que assim continue, assim permaneças nessa tarefa de desmatar as consciências, alertar para as minas na picada da história recente.
Parto amanhã para S[ão] Tomé com o Pepetela, a proclamar a continuação do sonho antigo: MAC, CONCP, etc., etc. É a nossa LEC — Liga dos Escritores dos Cinco de que te mando o cartaz.
Quando e se puderes dá sinais de vida. Aí vai o meu abraço e a admiração e a amizade e a incorruptível camaradagem dos anos de fogo
teu LUANDINO
- 1. António Jacinto, Obra Reunida, organização, introdução e notas de Zetho Cunha Gonçalves, Lisboa, Maldoror, 2025, p. 292.
- 2. Siglas do Movimento Anti-Colonial e da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, respectivamente. (N. do O.)
- 3. José Luandino Vieira refere-se à sua obra A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, primeiramente publicada em francês, acrescida do conto «O Fato Completo de Lucas Matesso» (que deu origem ao filme Monangambé, de Sarah Maldoror), com tradução e prefácio de Mário Pinto de Andrade, com o título La Vraie Vie de Domingos Xavier Suivi de Le Complet de Mateus, Paris, Présence Africaine, 1971. Circulou, em português, clandestinamente, uma edição em stencil de A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, feita por Mário Pinto de Andrade, certamente dessa mesma altura, para acompanhar o filme Sambizanga, de Sarah Maldoror, baseado nesta obra de José Luandino Vieira. (N. do O.)
- 4. «Gostei desta prosa poética que deixa aos sentimentos mais naturais toda a sua força da emoção.» (Trad. do Org.)
- 5. Do kimbundu, em sentido figurado: Oleiro; pedreiro; operário que trabalha em barro ou argamassa. (N. do O.)
- 6. Do Kimbundu: Ceguinhos; que padecem da vista; míopes. (N. do O.)
- 7. Data da fundação do MPLA — Movimento Popular de Libertação de Angola —, em 1956, em Luanda. (N. do O.)
- 8. União dos Escritores Angolanos, de que José Luandino Vieira foi um dos fundadores e o seu primeiro Secretário-Geral. (N. do O.)
- 9. Do kimbundu, em sentido figurado: Oleiro; pedreiro; operário que trabalha em barro ou argamassa. (N. do O.)
- 10. Do kimbundu: Azar meu! (N. do O.)
- 11. Em francês no original. Tradução: «este será efectivamente o momento para publicar os seus textos». (N. do O.)
- 12. Do Kimbundu: Ceguinhos; que padecem da vista; míopes. (N. do O.)
- 13. Data da fundação do MPLA — Movimento Popular de Libertação de Angola —, em 1956, em Luanda. (N. do O.)
- 14. Filme de Sarah Maldoror feito a partir do conto «O Fato Completo de Lucas Matesso», de José Luandino Vieira, posteriormente incluído pelo autor em Vidas Novas, Porto, Afrontamento, 1975. (N. do O.)
- 15. Do kimbundu: Abraço.



