Desmontando a montanha de mentiras do governo, construindo os pilares do futuro linguístico
1. Desmontando a montanha de mentiras
Após a clamorosa derrota social e legal, o governo pariu um comunicado acerca da suspensão do manual que é uma intrujice total, uma monumental e descarada (ainda que pouco sofisticada) mentira para ludibriar os muitos incautos, ou municiar as descabrestadas hostes, que não sendo a celebérrima «boiada», por eles próprios crismada, é, contudo, para nos mantermos no reino da zoologia, uma espécie de carneirada acéfala, ki ta djobe so pa un ladu.
O ministro Amadeu apostou na cegueira partidária para consumar um golpe linguístico, impondo as variedades minoritárias de barlavento como padrão da língua cabo-verdiana, dado saber que nenhum membro do governo, fosse de que ilha fosse, iria pôr os interesses linguísticos do povo soberano das ilhas e suas diásporas à frente da necessidade de o defender a qualquer custo, mesmo naquilo que é a destruição do pilar mais importante da identidade do povo das ilhas e, por lei da Assembleia Nacional, também fundamento da soberania nacional. Mesmo assim, não tinha razão certo santantonense (a prova disso está aqui escancarada) que disse que a sua quarta classe valia mais do que o sétimo ano do badio, porque há sempre um que não se vende, um que não se rende, sobretudo se se trata da alma do seu povo, filho da ignominiosa noite de escravidão, da nação territorializada, ainda que por necessidade também tanto dela espalhada pelo mapa.
Os factos são estes: depois do nosso processo de pedido de intervenção urgente à Procuradoria-Geral da República em relação ao manual de língua e cultura cabo-verdiana contendo a ilegal (anti)norma pandialetal, o ofício do Senhor Procurador- Geral da República de 12 de setembro de 2025 ao ministro Amadeu reza a dado passo: «foi entregue ao Departamento Central do Contencioso do Estado e Interesses Difusos da Procuradoria-Geral da República (DCCEID) a análise do pedido e atuação em conformidade (…). Há mais de um mês, o DCCEID solicitou esclarecimentos ao Ministério da Educação, sem resposta.
O DCCEID emitiu o parecer onde conclui haver elementos suficientes para a interposição de uma providência cautelar, destinada a obter a suspensão do manual de língua e cultura cabo-verdiana, até subsequente decisão da sua interdição a título definitivo,( grifos do próprio Procurador-Geral da República), por, no presente estádio da oficialização da língua, a decisão da sua publicação extrapolar o âmbito de exercício de poderes discricionários de que a administração dispõe para implementar a disciplina».
Onde está a dúvida de que foi a Procuradoria-Geral da República, a solicitação do cidadão José Luiz Tavares, a obrigar o ministério da educação a retirar o manual? Aliás, o que aqui avulta são duas insofismáveis certezas: a contundência e clareza do Procurador-Geral da Republica e as retorcidas mentiras do Amadeu, do diretor nacional de educação Adriano Moreno (na televisão), e quem mais por eles, que sabiam desde o dia 12 de setembro que o manual estava interditado, como se prova por esta comunicação do ministro Amadeu ao diretor nacional de educação: «sobre o processo judicial que está a decorrer recebi comunicação do senhor Procurador-Geral da República, pelo que se ordena a suspensão da distribuição desse manual», que não é apenas o manual físico, que sequer existia quando iniciamos o processo, mas também a sua remoção de quaisquer plataformas onde esteja disponível. Mais uma vez: onde está a dúvida de que o ministro e o governo mentiram miseravelmente?
Para terminar em grande, no reino da manha e da mentira descarada, só mais um naco do ministro Amadeu ao diretor nacional da educação: «tendo em consideração processo judicial intentado por um cidadão nacional, suspender a colocação do manual de língua e cultura cabo-verdiana na rede de distribuição».
Porquê é que o Amadeu teria que vir com as suas desastrosas e reprováveis mentiras meter a sua cabeça no cepo, debaixo da pena do poeta, que não tem a quarta classe nem o sétimo ano, mas toda a convicção do mundo, o apoio esmagador da população de todas as ilhas e suas diásporas, e a poderosa força da lei e do direito do seu lado?
O particípio passado colocado pelo asninho que obrou o comunicado é que lixou o intrépido Amadeu. Este cidadão, que também é poeta, rotundamente poeta, e para sempre poeta, aprendeu a utilizá-lo muitíssimo bem desde a antiga quarta classe, muito do gosto de certo santantonense. O que devia chamá-lo, e com toda a propriedade, era radical. Isso, sim, assentava ao poeta verdadeiramente bem. Que é a poesia senão radicalidade de linguagem subtraída ao uso funcionário normativo-pragmático? Que é um poeta senão um radical ético, um visionário construtor de mundos reais, para além de toda a utopia de fraternidade, mundos esses erigidos sobre os escombros do nosso permanente e inumano habitar?
Agora chamá-lo de «cidadão radicalizado» é chamar a lei que lhe deu razão de radicalizada, é ofender os bravos magistrados do DCCEID, que agiram decidida e tempestivamente; é ofender o digníssimo Procurador-Geral da República que avocou a si o processo diante da procrastinação do manhoso ministro Amadeu.
Falando ainda de bravura, nunca é de mais realçar a competentíssima e elevada preparação técnico-jurídica do Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. Júlio Martins Júnior, da sua notável sensibilidade humana e cultural, que lhe permitiu apreender rapidamente, na sua complexidade, uma questão que é desconhecida de quase todos os juristas, tendo-nos aconselhado nas ações a desencadear e elaborado as peças processuais que levaram ao presente resultado. Bem-haja senhor Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. Júlio Martins Júnior, bem-haja senhores magistrados do Ministério Público, neles incluído o Senhor Procurador-Geral da República que teve um papel decisivo neste desfecho.
Em sentido contrário, e para finalizar, quanto ao pestilento rol de mentiras, parido sabe-se lá por que sabuja mão, eu não o utilizaria nem como simples papel higiénico, pois a indecorosa quantidade de porcaria que traz é tão avultada que iria conspurcar-me em vez de limpar. De mais a mais eu sou adepto do washlet.
José Luiz Tavares, pro Bruno Portela
2. Construindo os pilares do futuro
Como disse em texto anterior, a celebrar a vitória da língua do povo também na sua língua natural, há que manter a vigilância, pois o perigo não passou ainda, apenas o esconjuramos no imediato. Este projeto supremacista-bairrista continua vivo, agora financiado com dinheiro estrangeiro, integrado pelas mesmas derrotadas que tentaram o golpe linguístico, sediado na mesma instituição que forneceu a tropa, ainda que risivelmente fandanga, para nos desapossar da nossa alma e da nossa identidade linguística.
Se alguma instituição oficial continuar a experimentar algo que a lei determinou como o ilegal – o pandialeto (fazê-lo a título individual ou coletivo está na sua liberdade pessoal e científica) – seguiremos o mesmo caminho que tomamos em relação ao manual contendo o famigerado e bastamente monstruoso nado-morto: cerco científico e social, terminando em processo judicial para a sua interdição e responsabilização cível daqueles que nas instituições oficiais acobertarem ou acolherem tais projetos. Como ficaram a saber da pior forma aquilo que pode um poeta (lembras-te, A.?), nós não vacilaremos, e, como no presente caso, a língua cabo-verdiana na sua feição natural e variedade plural de Santo Antão a Brava sairá vencedora.
Depois desta árdua e entusiasmante batalha, não é, porém, ainda tempo de repouso. É preciso construir um novo paradigma político para a língua cabo-verdiana. Como tenho escrito, desde há muito, a política governamental para a língua cabo-verdiana deverá ser incumbência de uma unidade de missão a funcionar junto do conselho de ministros, atuando também como provedoria da língua, seguindo e coordenando, com força legal, todos os desenvolvimentos nesta matéria até à oficialização plena.
Ao mesmo tempo deverá ser implementada uma política de formação alargada em linguística e ensino, com incidência no estudo da língua cabo-verdiana e estudos comparados com outras línguas crioulas, através da concessão de bolsas pelo estado e pela Universidade de Cabo Verde, e o incentivo à criação de cursos de âmbito linguístico, nomeadamente crioulística, pelas universidades privadas.
No âmbito das ações a desencadear, sugeri a uma universidade privada a realização de uma grande conferência internacional, em que apenas não terão lugar as madres parturientes do monstruoso pandialeto, as capitãs e soldados da tentativa do golpe linguístico diatópico, ou, por outro: desejamos ardentemente a sua presença, mais a prateada aparição, para receberem um banho de ética científica e lição de fecundidade criadora e interventiva, para nunca presumirem saber aquilo que pode um poeta, dado a verdadeira poesia ser coisa arredada dos monturos da sua mecanizada pesporrência gargantuda, que as levou à presente humilhação, que ainda não acabou, nem acabará nunca, pois vou imortalizá-las, através da sátira, nos portais da ignomínia. E rezo a todos os deuses para que ousem falar em tribunal, onde vão lidar com tal montanha de processos que acabarão por tirar um canudo em leis. Que aprendessem com este dito do poeta latino Catulo: «em Roma nasce um imperador todos os dias; um poeta nasce de mil em mil anos».
Outra vertente desse mesmo propósito deverá ser a sugestão a todas as câmaras municipais no sentido da criação de prémios literários nas respetivas variedades locais e regionais, que, além de robustecer a literatura feita em língua cabo-verdiana, terão o condão de fixar essas variedades na forma escrita, obstando assim a qualquer tentativa de mudança da feição natural da língua ou a subversão da sua forma de representação gráfica por estrangeiras ou nacionais, representação essa que é regida legal e cientificamente pelo alfabeto cabo-verdiano (AK), que deverá ser objeto de reelaboração, nunca inovação, naqueles aspetos que o uso demonstrou haver essa necessidade, e tal é o caso do uso de diacríticos, assim como estudos nas áreas mais críticas, como é a da morfologia, onde se nota um processo galopante de descrioulização, e ainda a publicação de um vocabulário básico da língua cabo-verdiana, num prazo máximo de cinco anos. Essas ações de política linguística deverão ser competência dessa tal unidade de missão, em coordenação, primacialmente, com o ministério da cultura, cuja competência terá que ficar estabelecida claramente na orgânica do próximo governo, seja ele de cor for.
O Ministério da Cultura deverá reativar o prémio Pedro Cardoso, cujo júri deverá ser composto por escritores ou utilizadores de mérito em língua cabo-verdiana e não por técnicos da língua, com pouco conhecimento ou apetência por questões literárias: estes decidirão sobre aspetos técnicos, tendo sempre em vista que quem faz a língua escrita são os escritores, e não nenhuma trupe linguicida, ainda que basta ou bestialmente canudada.
O parlamento deverá legislar no sentido de transformar o dia nacional da cultura em dia da cultura nacional (que na verdade o é, sem qualquer nacionalismo bacoco limitador), das comunidades e da língua cabo-verdiana, sendo que para o dia da língua cabo-verdiana a minha preferência vai para o dia 13 de setembro, dia de nascimento de Pedro Monteiro, o Afro, dado o grande Eugénio Tavares já estar consagrado como patrono do dia nacional da cultura.
Falando em parlamento, que se desobrigou gravemente dos seus deveres, negando-se a exercer o seu papel em todo esse nefando processo, ainda que por mim informado, e depois fortemente invetivado na sua totalidade em anterior artigo, não deixo de exigir-lhe a responsabilidade de não só chamar o ministro amadeu, como instalar uma comissão parlamentar de inquérito, porquanto há ainda muitos aspetos nebulosos nesse processo do manual. Não é para beneficiar ou prejudicar ninguém, mas esclarecer o povo soberano das ilhas e suas diásporas, esse que sustenta as mordomias dos integrantes da casa parlamentar.
Tem que se escrutinar a conformidade do concurso desde a conceção do caderno de encargos, os termos de referência, valores, etc, e se o produto apresentado é o aquele que os caderno de encargo determina, sobretudo se em algum lado se pede a criação de uma norma padrão para a língua cabo-verdiana(se não, terá que haver consequências), até ao ato administrativo, cuja existência se desconhece, que introduziu o manual contendo a famigerada, monstruosa e ilegal (anti)norma pandialetal sub-repticiamente e eivada de extrema má-fé a meio do ano letivo (fevereiro/março) de 2024/25.
Uma das coisas mais estranhas nesse concurso é que a equipa que perdeu o concurso acabou por ser aquela que (mal) concebeu o manual: não é razão para grande, enorme estranheza? Temos nulo interesse na tranquibérnia política instalada em vésperas de eleições legislativas, pois os dois donos disto tudo (DDDT) estão sumamente desgovernados: um vislumbrando a mirificamente farta mesa do poder; o outro, ainda que extenuado e moribundo, agarrando com todos os dentes as tetas do poder (tudo isto à custa dos padecimentos do pobre povo soberano destas ilhas do meio mar), mas este negócio tem que ser esclarecido.
Voltaremos.
José Luiz Tavares, poeta e cidadão cabo-verdiano, único descendente intelectual de Eugénio Tavares, martelador-mor da República.
Sintra, paisagem cultural da humanidade,19 de setembro de 2025, terceiro dia da morte legal do monstruoso pandialeto