Uma falsa maka: o português, língua nacional angolana
Não sendo eu um especialista em linguística em geral e, em particular, no estudo técnico-científico da língua portuguesa, mas apenas um dos seus 270 milhões de usuários, apenas a poesia pode explicar a irresponsabilidade com que aceitei o inesperado convite da Universidade Católica de Angola para proferir logologo uma das duas conferências magistrais deste V Fórum Internacional de Língua portuguesa, depois de um dos maiores autores angolanos, o qual, como eu e a a maioria – para não dizer a totalidade - dos escritores angolanos, caboverdeanos, bissau-guineenses, moçambicanos e são-tomenses, escreve na referida língua. Começo, pois, com um poema:
Pessoa, Caetano e eu
a minha pátria não é
a língua portuguesa
mas a minha pátria eu canto-a
na língua portuguesa
(a língua portuguesa
da minha pátria)
pessoa que descanse em paz
e caetano faça outra canção
O poema que acabei de ler está incluído no meu mais recente livro de poesia – “Os sonhos nunca são velhos” -, publicado no Brasil pela Inmensa Editorial. Sabe-se, a propósito, que toda a boa poesia precisa não apenas de cantar a beleza da vida e do mundo ou, quando a mesma estiver oculta, de descobri-la e redimi-la, por mais opaca que seja ou pareça, mas também de sublimar a fealdade ou a tristeza, componentes da nossa humanidade total e complexa. Entretanto, e como poeta, reivindico igualmente o direito da poesia à provocação.
Assim, na presente comunicação, ao declarar que a língua portuguesa – esse idioma “neto do latim e filho do galego” – é igualmente propriedade nacional de Angola e dos angolanos, farei deliberada e conscientemente uma dupla provocação, quer aos que se julgam proprietários exclusivos da referida língua, de tal modo que acreditam que a mesma não só tem uma história e uma geografia únicas (um certo “jardim à beira mar plantado”), como apenas pode ter uma única expressão, dita “lusófona”, quer aos saudosos de uma qualquer autenticidade bantu, supostamente “pura”, que não apenas apaga os únicos povos originários do território hoje chamado Angola – os san -, mas que, na realidade, é pré-angolana e, como tal, não existe mais, tendo-se transformado, por força dos múltiplos contactos e misturas ocorridas durante o longo processo de construção do nosso país, numa outra realidade.
Alguns factos históricos
A fim de explicar como é que a língua portuguesa se transformou igualmente numa língua nacional angolana, manda o senso comum destacar alguns factos históricos. O primeiro é o tipo de colonização portuguesa. Para o tema desta conferência, vou referir-me apenas a uma das suas políticas, que a distingue profundamente da colonização britânica e mesmo francesa de África: a política de assimilacionismo (e a sua outra face, a política do indigenato).
Essa dupla política, estruturalmente divisionista e racista, visava não apenas separar os angolanos, criando entre eles várias diferenças (formação, cor, classe, grupos étnicos), mas tinha como objetivo fulcral o apagamento das manifestações culturais originárias dos diferentes grupos, a começar pelas línguas. Para viver nos centros urbanos e, sobretudo, ter acesso às melhores ocupações, em especial na administração, os angolanos eram forçados a “europeizar-se” (vestir como os portugueses, falar a sua língua e outros requisitos). Os colonizadores, entretanto, tinham as suas cautelas e, por motivos que parecem óbvios, não “assimilaram” a maioria dos angolanos, que foram mantidos sob um regime de marginalização quase absoluto. No que interessa particularmente ao tema deste fórum, o regime colonial-fascista português não tinha qualquer interesse em alfabetizar a população angolana, mesmo na língua colonial. À altura da independência de Angola, há 50 anos, a taxa de analfabetismo no país era de 85%.
Além da deliberada política do regime colonial no sentido de desvalorizar as diferentes manifestações culturais dos angolanos, um segundo facto histórico deve, quanto a mim, ser lembrado para explicar por que razão nenhuma língua de origem africana falada no que é hoje o território angolano se converteu numa língua de comunicação nacional: dos vários grupos étnico-culturais existentes no país, nenhum deles se tornou dominante, nem demográfica nem politicamente.
O terceiro facto histórico a destacar é que a expansão da língua portuguesa em Angola deve-se muito mais aos nacionalistas angolanos do que aos colonizadores portugueses. Esse processo começou mesmo antes do início da luta armada de libertação nacional, em 1961, sabendo-se que a alfabetização das classes populares, em especial nas cidades, era uma das atividades das organizações nacionalistas então criadas. Mais tarde, durante a guerrilha, a expansão da língua portuguesa tornou-se fundamental para a própria guerra, pois era crucial que os combatentes, originários de várias regiões do país e pertencentes a diferentes grupos étnico-linguísticos, pudessem comunicar-se mutuamente.
Após a independência, em 1975, as novas autoridades transformaram a decisão política dos movimentos nacionalistas angolanos - em particular o MPLA, que assumiu o poder na altura - de fazer do português a língua de comunicação e unidade nacional em política de Estado. Esse é o quarto facto histórico que explica a expansão da referida língua no país. Assim, cinquenta anos depois, e apesar dos inegáveis problemas existentes na área da educação, a taxa de analfabetismo no país diminuiu de 85% para 24%. Ao menos nesse tema, parece correto afirmar que a Angola independente fez mais em 50 anos do que os colonizadores portugueses em cinco séculos.
Luanda, 2023, fotografia de Marta Lança
Por fim, e além dos esforços das autoridades pós-independência para a difusão da língua portuguesa, um quinto facto histórico – paradoxal, mas altamente efetivo – deve ser evocado para explicar esse resultado: a guerra civil que se prolongou durante anos, após a independência, durante os quais milhões de angolanos se deslocaram por todo o território nacional, para combater ou fugir dos confrontos, misturando-se e comunicando-se uns com os outros, na única língua comum que possuíam.
Hoje, cinco décadas depois da ascensão de Angola à independência, os números falam por si: segundo o censo populacional de 2014, a língua portuguesa é a primeira língua falada em casa por mais de 70% dos angolanos (onze anos depois, esse percentual certamente aumentou). Ou seja, discutir se a referida língua é ou não uma língua nacional, tal e qual as demais línguas faladas no território angolano, é, nesta altura do campeonato, uma falsa maka.
Esse facto confirma que o caráter “nacional” em geral não tem uma só fonte. As principais são: origem, opção ou as circunstâncias históricas. As duas últimas explicam a legítima apropriação da língua portuguesa por parte dos angolanos. Assim, a língua portuguesa foi devidamente nacionalizada pelo nosso povo, tal como, antes, já havíamos nacionalizado a mandioca ou o milho e, hoje, o fato e gravata, o computador e o smartphone.
“A língua portuguesa da minha pátria”
Além da pertença histórica e da opção política, o alcance explica igualmente o caráter nacional da língua portuguesa em Angola. Assim, o português exerce em Angola três papeis fundamentais: primeiro, é a única língua de comunicação nacional do país e substrato da unidade dos angolanos; segundo, é a língua oficial e da administração; e, terceiro, é o primeiro veículo de comunicação internacional dos angolanos, permitindo-lhes comunicar com os cidadãos de outros sete países e de várias comunidades onde o referido idioma é utilizado.
Não é possível, entretanto, esquecermos que - ao contrário do que ufanisticamente diz Pessoa ou que Caetano, equivocado, replica - a referida língua não é, para nós, ao menos na sua variedade lusitana, sinónimo da pátria pela qual lutámos contra a colonização portuguesa. A nossa pátria – escrevi eu no poema lido a abrir esta comunicação - nós cantamo-la na língua portuguesa da nossa pátria, isto é, na língua portuguesa que nós, angolanos, estamos a construir. Com efeito, os angolanos há muito têm contribuído para a sua formatação, expressão e diversificação.
Para ilustrar algumas dessas mudanças já em curso – e patentes, por exemplo, na obra literária de alguns dos nossos maiores autores, como Luandino, Pepetela, Manuel Rui e Boaventura Cardoso - recorro a um extrato de uma entrevista da professora Inocência Mata à CNN Portugal, que, com a devida vénia, reproduzo aqui. Disse ela, em reposta a uma pergunta sobre a possível “descolonização” da língua portuguesa:
- O português já está descolonizado há muito tempo. As pessoas falam a língua portuguesa como a sentem. Não me refiro aos que falam mal português e para quem o português é a segunda ou terceira língua. Refiro-me aos que falam português como língua materna e que é um português diferente do português europeu.
E seguidamente concretizou:
- Ensinar que o verbo ´ir´ pede sempre uma preposição de movimento é inglório. Nenhum menino vai dizer: vou a casa da minha avó. Todos vão dizer: vou na casa da minha avó. Ninguém diz: eu vi-o no mercado. Toda a gente diz: eu lhe vi no mercado.
Esse processo de “descolonização” (a expressão é da jornalista que entrevistou a professora Inocência Mata, refletindo, possivelmente, um estranho complexo de culpa; eu chamo-lhe simplesmente “transformação”, “adaptação” ou, como ensinam os especialistas, construção de uma variedade angolana da língua portuguesa) da língua portuguesa em Angola, facilitado – é justo dizê-lo – pela plasticidade da referida língua, é, como todos concordaremos ser inevitável, grandemente influenciado pelas línguas nacionais angolanas de origem africana.
Não posso, a propósito, deixar de evocar que algumas dessas línguas há muito têm dialogado e contribuído para modificar e enriquecer a língua portuguesa. Como aludo num outro poema – “Crónica verdadeira da língua portuguesa” - que escrevi em 2009, a referida língua é influenciada pelas línguas bantas africanas, particularmente angolanas (com destaque para o kimbundu, kikongo e umbundu), há muitos séculos.
Isso é mais visível na variante brasileira da língua portuguesa, o que a História, mais concretamente, o tráfico de escravos, explica. Os angolanos não só foram os primeiros africanos a ser levados para o Brasil como escravos, como também foram os mais numerosos.
A influência das línguas africanas de Angola no idioma português é, desde logo, de natureza lexical. Centenas de palavras originárias das referidas línguas foram incorporadas pela língua portuguesa, como, só para dar meia dúzia de exemplos, quitanda, quizomba, quitute, cafuné, muamba, carimbo e a celebérrima bunda. O Museu da Língua Portuguesa em São Paulo tem uma secção apenas sobre essa herança.
Contemporaneamente, e numa espécie de segunda vaga dessa influência, várias palavras e expressões da gíria angolana, em especial luandense – como kota (os portugueses escrevem cota), garina, bazar, malaico e outras -, foram igualmente incorporadas por todos os falantes da língua.
Além dessa influência lexical, as línguas angolanas de origem banta também influenciaram de maneira clara a variante brasileira do português, em termos de pronúncia, da abertura das vogais à própria tendência para a vogalização, que consiste em colocar sempre uma vogal entre duas consoantes (por exemplo, “pineu” em vez de “pneu”), assim como para omitir o “s” no plural (as línguas bantas também não usam “s” para o fazerem). Os dois últimos casos são percetíveis, sobretudo, na linguagem oral.
Por fim, podem ser identificadas influências das línguas africanas na estrutura do português falado e escrito no Brasil. O exemplo mais comum será, talvez, a forma de conjugação dos verbos reflexos.
É preciso meter a mão na massa, salvo seja
A pergunta que nos pomos, muitas vezes, é que língua portuguesa é essa que os angolanos falam? Quando “mais” virou “mas” e “sou” é substituído por “só”, por exemplo, a resposta pode ser perturbadora.
Acredito, pessoalmente, que o processo de construção da variedade angolana da língua portuguesa seguirá (está a seguir) alguns caminhos similares aos que já percorreu a variedade brasileira da nossa língua comum, sem deixar de incorporar e refletir outras mutações, todas elas admitidas naturalmente, repito, pela plasticidade intrínseca da língua em questão. Como se sabe, além disso, as línguas são feitas por todos os seus utentes e, muitas vezes, aquilo que em determinado momento é considerado “erro” transforma-se em prática aceitável e mesmo em norma.
Esse processo, entretanto, não deve ser resolvido pela “criatividade popular”, mas pela escola. Esta precisa de ter balizas (normas ortográficas, gramática, vocabulário, etc.), para ensinar a língua portuguesa de acordo com as transformações que a mesma vem sofrendo entre nós. O que – espero – não passará pela “normalização” de erros grotescos, como “mais” virar “mas” e outros.
É mais do que urgente, por isso, estabelecer e fixar a norma angolana (culta) da língua portuguesa, a qual deve passar a ser ensinada nas escolas. Com o tempo, a mesma passará a ser usada naturalmente pelo jornalismo e pela literatura, duas áreas e atividades críticas para a expansão das línguas. Além disso, urge elaborar o vocabulário ortográfico angolano e trabalhar igualmente no sentido da dicionarização constante dos novos vocábulos criados pelos falantes angolanos da língua portuguesa, sempre que isso for justificável.
Há uma medida que creio fundamental não apenas para a contínua expansão da língua portuguesa em Angola, mas também para a sua fixação: o acordo ortográfico de 1990. A persistente ambiguidade e hesitação em tomar uma posição definitiva em relação ao referido acordo é, para mim, muito difícil de entender.
A verdade é que, do ponto de vista interno, Angola tem todos os motivos para ratificá-lo, desde logo, pela seguinte razão de base: o acordo prioriza a fonética em detrimento da etimologia (ou seja, tende a grafar as palavras tal como elas são pronunciadas), o que facilita enormemente a sua difusão junto de uma população para a qual, originariamente, a língua portuguesa é uma língua segunda. Em termos de grafia, essa é a tendência da maioria das línguas contemporâneas: quanto mais simples, melhor.
Acresce a isso uma razão adicional: a grafia com “k”, “w” e “y”, no contexto da língua portuguesa, das palavras angolanas de origem africana, defendida por alguns como condição para a ratificação do acordo em questão, só é possível, precisamente, se Angola o implementar, pois o mesmo voltou a incorporá-las. A norma antiga, que continua a vigorar em Angola, não prevê o uso de tais letras.
Além da ausência, no acordo ortográfico de 1990, de qualquer previsão de inclusão das palavras de origem africana, costumam ser utilizados mais dois argumentos principais para questionar a ratificação desse acordo por parte de Angola: o risco de uma “colonização linguística” por parte do Brasil e a ameaça da dependência de Angola em relação à indústria gráfica estrangeira (portuguesa e brasileira). Com todo o respeito pelos seus defensores, nenhum desses argumentos faz sentido.
Começando pela alegada necessidade de o acordo ortográfico incluir a questão das palavras angolanas de origem africana (processo que, na verdade, já ocorre há séculos), tal argumento é, quanto a mim, um falso problema. De facto, esse não é um tema do referido acordo, mas do vocabulário ortográfico comum. Segundo sei, este deverá ser elaborado com base nos vocabulários ortográficos nacionais, pelo que, em princípio, a bola está do nosso lado. É preciso elaborar primeiro o vocabulário ortográfico nacional e, depois disso, negociar a sua inclusão no vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa.
Quanto à hipotética “colonização linguística” brasileira, os números mostram, desde logo, que o Brasil fez mais concessões do que Portugal, em termos do novo acordo ortográfico. Por outro lado, este é apenas um acordo sobre o modo de grafar as palavras, não tem nada a ver com o vocabulário, a fonética ou a sintaxe, ou seja, é falso que seremos todos obrigados a falar ou escrever “como os brasileiros”. Por fim, no nosso caso, angolanos, não deixa de ser esquisito recear uma hipotética “colonização linguística” do Brasil. A variante brasileira da língua portuguesa foi fortemente influenciada, em termos fonéticos, lexicais e sintáticos, pelas línguas angolanas de origem africana e não se vê ninguém, nesse caso, a falar em “colonização linguística” por parte de Angola.
Finalmente, o que dizer da alegada ameaça da dependência de Angola, se ratificar o acordo ortográfico, relativamente à indústria gráfica portuguesa e brasileira? Mais do que um falso problema, tal argumento é um autêntico mito. Com efeito, o que o nosso país precisa, com ou sem acordo ortográfico, é de desenvolver a sua própria indústria gráfica. O resto é confundir os assuntos.
Angola tem igualmente responsabilidades externas em relação à língua portuguesa, o que inclui, entre outros, as seguintes questões: uso efetivo do português nos organismos regionais e internacionais, assim como na Internet; ensino da língua portuguesa no estrangeiro, desde logo no continente africano, onde vários países anglófonos e francófonos têm demonstrado interesse nisso; e internacionalização das literaturas em língua portuguesa, começando por promover os autores nacionais.
A propósito, aliás, não posso deixar de evocar a relação entre alguns desses processos e o acordo ortográfico: a existência de uma grafia única facilitará, quanto a mim, o uso do português nos organismos internacionais e na Internet, bem como o seu ensino em países estrangeiros.
O que fazer com esta(s) língua(s)
Como todos sabemos, Angola é um país multilingue. Tal como muitos outros, eu também defendo que, quanto mais línguas sabemos, melhor. Para mim, portanto, o multilinguismo é uma coisa boa. Mas não basta reconhecê-lo. São necessárias, quanto a mim, políticas e ações que tornem o multilinguismo efetivo e produtivo.
O primeiro passo é colocar em pé de igualdade todas as línguas faladas comummente num determinado país, por serem sua pertença, originária ou historicamente adquirida. Por isso defendo, há muito tempo, que o português deve ser igualmente considerado uma língua nacional angolana.
Não reivindico, entretanto, qualquer originalidade, quando assumo essa posição. A mesma coisa foi dita pela primeira vez pelo antigo presidente José Eduardo dos Santos em 2006, quando falava no Colóquio Internacional de Cultura, em Luanda. Essa definição precisa de ser assumida tranquila e descomplexadamente por todos, tal como, a partir de um tubérculo originário da América do Sul (a mandioca), fizemos do funje de bombó um dos nossos pratos nacionais.
Alguns confundem “nacionalidade” com “origem” e, por isso, relutam em aceitar esse facto histórico. Relembro, pois, que a nacionalidade pode ser “originária” ou “adquirida”. O que se passou, historicamente, com a língua portuguesa é que a mesma foi apropriada e nacionalizada por outros povos, passando, assim, a ser também sua pertença, com todos os direitos daí decorrentes. Para usar a metáfora de Luandino, a língua portuguesa constitui um “troféu de guerra” dos povos outrora colonizados por Portugal.
Outros mostram-se chocados com a afirmação de que, em termos de origem, a maioria das línguas bantas faladas em Angola não é exclusivamente nacional (é transnacional) e, sobretudo, com a afirmação de que os portugueses chegaram ao que é hoje o território angolano antes de alguns grupos bantos. A esses, recordo em primeiro lugar que, antes da chegada dos bantos, já os khoi e os san o habitavam (eles próprios originários de outras paragens); e, em segundo lugar, aconselho-os a estudarem a história das migrações bantas, para aprenderem que alguns grupos que hoje fazem parte da população angolana chegaram ao território nacional apenas no século XIX.
Além de colocar em pé de igualdade, em termos de pertença, as várias línguas usadas comummente pelos angolanos (definindo todas elas como “nacionais”), o segundo passo, num país multilingue, como é o caso do nosso, é adotar políticas de colaboração e harmonização linguística científicas, racionais, lógicas e pragmáticas. Não sendo eu um especialista, atrevo-me a indicar três planos onde tal cooperação e harmonização julgo ser imperiosa: alfabeto ortográfico; regras de importação linguística mútua; e políticas de ensino linguístico.
A primeira questão, portanto, é: que alfabeto ou alfabetos ortográficos adotar, num país multilingue, para as diferentes línguas utilizadas pelos seus cidadãos? A minha opinião é que, num país multilingue, as diferentes línguas existentes deveriam utilizar o mesmo alfabeto ortográfico, justamente para facilitar o aprendizado de todas elas e, assim, promover o multilinguismo.
Duas perguntas, a propósito: por que razão há vários alfabetos ortográficos para as principais línguas angolanas de origem africana, se todas são línguas bantas? E, sendo os alfabetos das línguas bantas tão ocidentais, em termos de origem, como o da língua portuguesa (tais línguas, recordo, eram ágrafas), o facto de termos de usar uma grafia para o português e outra(s) para as línguas africanas “não complica o sistema”, para usar esta saborosa expressão popular?
A segunda questão tem a ver com a forma de redigir, em cada uma das línguas, os termos importados das demais. Como se sabe, as várias línguas angolanas influenciam-se mutuamente há séculos, desde logo no plano lexical, o que acontece quer entre o português e as línguas bantas quer entre estas últimas. Como grafar, pois, as palavras importadas?
A minha posição é que, salvo os nomes próprios e outras exceções pontuais, as palavras importadas devem, sempre que possível, ser ajustadas (não só fonética, mas graficamente) pelas línguas que as importarem, como, aliás, é tendência universal. Assim, e por exemplo, as palavras de origem africana, se usadas no contexto da língua portuguesa, deverão ser aportuguesadas e vice-versa.
Por fim, a terceira questão é como ensinar as várias línguas existentes, por definição, num país multilingue. Isso tem a ver com algumas questões de base, como o estatuto, número de falantes, alcance geográfico e papel político-administrativo de cada uma delas.
No caso de Angola, defendo, pessoalmente, que a língua portuguesa, que já é o idioma mais falado pela população, deve ser ensinada a nível nacional, pelas seguintes razões: em termos de alcance, é a única língua verdadeiramente nacional do país; política e administrativamente, é a língua da unidade; é a primeira língua de comunicação internacional e de acesso ao conhecimento científico dos angolanos.
As línguas angolanas de origem africana devem ser ensinadas regionalmente, de acordo com a sua origem. Em alguns casos, como nas áreas rurais, a alfabetização deverá, inclusive, ser feita na língua local, pois está provado que isso facilita a aprendizagem das crianças. Certas vozes vão mais longe e defendem que todo o ensino deveria ser feito, nas diferentes regiões, na língua africana local. O efeito centrífugo de uma opção desse tipo dispensa – acredito – maiores elaborações.
Uma nota final para lembrar que o ensino, quer do português quer das línguas angolanas de origem africana, deve ser feito rigorosamente de acordo com a norma de cada uma delas. É que, para alguns, a língua portuguesa deveria ser ensinada em Angola conforme ela se fala nas ruas, confundindo isso com uma possível variante angolana do idioma. Erro crasso. Outros defendem ardorosamente as línguas africanas, pois, para eles, “português é língua do colono”, mas a verdade é que também não dominam com propriedade as referidas línguas. Tais confusões não têm nada a ver com o multilinguismo.
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE ANGOLA - V FÓRUM INTERNACIONAL DE LÍNGUA PORTUGUESA- 22 E 23 DE OUTUBRO DE 2025