O cansaço do esclarecimento: notas sobre a razão, a crise e a possibilidade

Le nihilisme n’est pas une fin, mais une clairière — un espace où l’homme se découvre sans masque.

Célestin Monga, Nihilisme et Négritude (2009)

The citizen and the subject are both creatures of the state — and to transcend them is to imagine a political community yet to be born.
Mahmood Mamdani, Citizen and Subject (1996)

A razão exausta

O projecto do Iluminismo nasceu sob o signo da libertação: dissipar as trevas, iluminar o espírito, substituir o mito pelo método. Contudo, como advertiram Adorno e Horkheimer na Dialéctica do Esclarecimento (1947), o fogo que prometia claridade acabou por incendiar o próprio abrigo da humanidade. A razão — instrumento de emancipação — tornou-se maquinaria de controlo. Décadas mais tarde, Allan Bloom, em The Closing of the American Mind (1987), soaria um alarme semelhante, mas de outro registo: o colapso da cultura humanista e a mutilação da experiência intelectual.
Bloom via na universidade americana a metáfora de um tempo em que tudo é permitido pensar, mas nada é realmente compreendido. O pluralismo, transformado em indiferença, dissolveu a ideia de verdade; a educação, antes via de formação do espírito, tornou-se instrumento de entretenimento.
Ambos — Adorno e Bloom — convergem num diagnóstico inquietante: a modernidade é uma civilização esgotada pela sua própria vitória. A crítica foi absorvida pela indústria cultural; o pensamento substituído pela opinião; e o esclarecimento, longe de libertar, tornou-se instrumento de administração do espírito. A luz do século XVIII ardeu tanto que deixou o mundo cego.

A crise vista do sul

Mas o colapso da razão não é privilégio europeu. Do outro lado do mapa, intelectuais africanos têm revelado que a crise é, também, uma geografia — consequência de uma universalização desigual da modernidade.
Em Nihilisme et Négritude (2009), o camaronês Célestin Monga descreve a condição pós-colonial como uma forma de niilismo activo: o vazio não como ausência, mas como saturação de sentidos impostos de fora. “O africano moderno”, escreve, “não é aquele que perdeu a fé, mas aquele que foi impedido de crer em si”. O niilismo africano nasce da expropriação simbólica: a história pensada em francês, a ciência em inglês, a economia em tabelas do FMI.
Para Monga, o verdadeiro esclarecimento não é o retorno à Grécia nem à Europa, mas a invenção de uma nova gramática de sentido — um humanismo mestiço, plural e trágico, que reconheça a beleza do fragmento e o poder da oralidade. A sua proposta é uma “razão encarnada”, capaz de conviver com o paradoxo, o mito e o silêncio.
O ugandês Mahmood Mamdani, por sua vez, desloca o debate para o terreno político. Em Citizen and Subject (1996), demonstra que o Estado pós-colonial africano herdou da dominação europeia uma arquitectura bifurcada: de um lado, o cidadão urbano e moderno; do outro, o sujeito rural, governado por leis “tradicionais”. O resultado é uma cidadania partida, um corpo político atravessado por linhas coloniais invisíveis.
Mamdani mostra que a modernidade, em vez de destruir o tribalismo, o institucionalizou. A racionalidade iluminista, transplantada para a África, não libertou — apenas sofisticou o poder. O que Bloom via como “crise da alma” e Adorno como “reificação da consciência”, Mamdani revela como estrutura de exclusão: o esclarecimento sempre foi selectivo, e o universal, uma ficção construída a partir do centro.

O Brasil como metáfora

O Brasil é o espelho mestiço desse dilema. Entre o mito da democracia racial e a realidade da desigualdade, entre a euforia modernista e a persistência colonial, o país encarna o paradoxo da modernidade incompleta.
A esquerda, que um dia se acreditou portadora de redenção social, hoje arrasta-se entre o pragmatismo e a nostalgia. O governo de Lula — com toda a sua densidade simbólica — vive o drama da promessa cumprida e, ao mesmo tempo, exaurida: incluiu milhões, mas já não inspira.
As palavras “povo” e “projecto” perderam a aura. O poder, agora, é apenas gestão. A cultura, outrora espaço de invenção colectiva, tornou-se ruído identitário. As figuras tutelares — Caetano, Chico, Gil — são remanescentes de uma utopia estética que acreditava que a arte podia mudar o país. Hoje, restam-lhes a reverência e o anacronismo: brilham, mas já não iluminam.

O espírito colonizado

A verdadeira catástrofe do nosso tempo é a colonização do espírito. A indústria cultural, agora digital, não apenas molda os gostos — fabrica o próprio sujeito que deseja. A linguagem empobrece, a imaginação administra-se, e a crítica converte-se em algoritmo.
O que Bloom chamava de “morte da alma” é hoje uma condição planetária: o sujeito globalizado é um híbrido de consumidor, militante e espectador, preso à ilusão de autonomia que o mercado lhe vende. E o que Adorno via como “regressão da razão” manifesta-se agora em escala planetária, sob a forma de um consenso histérico e vazio: a crença de que tudo é opinião e nada é verdade.

Entre ruínas e possibilidades

No entanto, a ruína também é uma morada. Adorno dizia que a tarefa da arte é fazer falar o sofrimento mudo. Monga acrescentaria: é fazer rir o silêncio imposto. E Mamdani lembraria: é transformar o sujeito em cidadão — não o cidadão abstracto do liberalismo, mas o cidadão concreto das ruas, das aldeias, da memória.
Talvez o que o nosso tempo exija seja menos um retorno ao esclarecimento e mais a invenção de outro: um esclarecimento mestiço, plural, capaz de incluir a sombra e a dor. Uma razão que saiba chorar — e também cantar. Uma crítica que recuse a arrogância da pureza e abrace a complexidade da vida.

Referências

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max — Dialéctica do Esclarecimento. Lisboa: Edições 70, 1985 [1947].
BLOOM, Allan — The Closing of the American Mind. Nova Iorque: Simon & Schuster, 1987.
MONGA, Célestin — Nihilisme et Négritude. Paris: L’Harmattan, 2009.
MAMDANI, Mahmood — Citizen and Subject: Contemporary Africa and the Legacy of Late Colonialism. Princeton: Princeton University Press, 1996.
FANON, Frantz — Os Condenados da Terra. Lisboa: Plátano Editora, 1975 [1961].
MBEMBE, Achille — Crítica da Razão Negra. Lisboa: Atígona, 2014.

por Eugénio Matusse
A ler | 5 Outubro 2025 | cansaço, indústria cultural