Xana, um cidadão de mão cheia

Aquando da retirada dos sul-africanos da nossa Banda, no fim da guerra, acompanhei como intérprete uma delegação de jornalistas escandinavos para cobertura da dita retirada. Do Lubango, partimos para o paralelo 13 num Ural descomunal e infernal camion, onde vi embondeiros feitos meras bananas abertas ao meio e crateras das bombas onde nossa máquina de guerra enorme entrava como uma formiga. Ainda cheirava a pólvora, tudo ocre ouro velho a lua Prenha gigantesca e tudo mas tudo escangalhado, rasgado, arrasado… o semblante da tropa era da cor da exaustão, quando do nada, da parada militar que nos recebeu, se destacou um jovem para me cumprimentar como irmã do Camarada Paciência… ofereceu-me seu bivaque, chamava se Óscar, um menino imberbe que me disse que meu irmão havia reposto por 3 vezes a ponte de Xangongo destruída pela aviação sul africana. Enorme e refeita! De aço verde militar! Linda!! Ohhh abraçámo-nos e fiquei então sabendo da proeza e competência de meu mano Xana o engenheiro civil, formado em Angola e mero militar da Empresa Nacional de Pontes. Enchi meu peito de orgulho, respirei, chorei porque choro fácil eu sei, emocionada e quando já em Luanda, lhe contei, ele sorriu, doce, dizendo ter sido apenas seu trabalho. Nada mais. 

Xana Xana

Sempre se destacou mesmo na sua vida académica habituando-nos a seus louros e sobretudo à sua modéstia e simplicidade traços de sua personalidade. Carácter! Entretanto, atravessou algumas calemas pela vida, sempre vingando com a maior bravura possível… 

A vida mudou, chegaram os tempos difíceis que duram até hoje e aí já como cidadão civil viu - se enfrentado o desemprego logo ele, Homem que “só sabe trabalhar! Virou pescador de lagostas, vendeu peixe para sobreviver lembrou a quem de direito que era capaz ainda de trabalhar… que queria, teria … senão iria sucumbir… nadava de 3 a 5 horas diárias no mar grosso e gelado do Namibe, lutando contra uma depressão e tristeza profundas por não conseguir um lugar, um trabalho na reconstrução dessa Nação. 

Hoje, tantos anos passados, apresentou, sim ele mesmo, ao Sr. João Lourenço uma obra que é uma Obra grandiosa como o Terminal de carga do Porto do Namibe e que na África Austral é destaque. Sempre com seu jeito simples próprio de gente brilhante… e fiquei a pensar nos seus silêncios solitários magoados nos seus desafios, nos seus propósitos nobres, no seu trabalho de excepção, no perdão que concedeu a quem tantíssimo o prejudicou quando lidou com a indiferença… na sua farda larga quando magrinho um Miúdo paisão de Minhas sobrinhas, hoje biólogas que se destacam na sua área pelo trabalho que fazem… e de quando trabalhava como tanquista no regimento presidencial em que recebia 900 kzs que pedia para ser em moedas para parecer muito… ahahaha, de como ríamos por causa disso, de quando tirou 20 numa oral e os cubanos aplaudiram de pé, aluno de nosso querido Professor engenheiro Guerra Marques, de quando pescador de Lagostas mergulhava sozinho de solidão no mar … tentando com Humildes pescadores no Namibe não perder sua dignidade, de como foi ignorado e posto de escanteio não compactuando com Mixas… das vezes que tivemos que lidar com sua tristeza profunda, sua razão maior tratada com Indiferença … de como foi íntegro, leal, companheiro e fã desta Nação e nos lembrava que não podíamos parar, ignorar, procurar outro lugar para viver… sempre aqui tratando o desrespeito e a cruel doença por tu… a injustiça frente ele na sua total arrogância. A empáfia. 

Hoje já de cabelo branco com sua camisa de riscas e o velho boné que tanto o enfeita, e é sua imagem de marca, eloquentemente e competente num sorriso de perdão, para que chegue até todos … foi agraciado com largos elogios de seus trabalhadores funcionários trabalhadores de base gente que o escolhe para padrinho de seus filhos porque nele habita a generosidade… a transparência …a lealdade e essa beleza extrema de um Homem que lutou e não desistiu e se entregou ao desafio e depois glória dessa obra grandiosa como se de uma coisa normal se tratasse. 

Apeteceu-me falar dele, um cidadão de mão cheia com tantas mas tantas vitórias caladas processadas algumas com extremo sacrifício e que não sabe nada disso de protagonismo, vaidade, e podia, que continua firme atrás de seus peixes grandes na pesca seu vício maior, no bem longe quando nem a costa não se vê, nos amigos pastores do deserto do Namibe, na sua companheira Raquel, no seu maravilhoso jardim de rosas singulares, nos cães seus fidelíssimos amigos, na nossa Mãe com seus 94 anos que é a nossa baixinha Rainha ouvindo Maria Callas, descalça, nas memórias e estórias Intermináveis próprias de quem esteve quase 20 anos de serviço militar no activo, com as obras de guerra, sem nunca ter sido patenteado… na sua enorme capacidade de entendimento perante a perda de tantos mas tantos amigos na guerra … na sua alegria de viver e ensinar que amanhã é hoje… e ontem já passou! 

Xana de seu nome… meu irmão caçula que me enfeita o coração. Que me dá Luz à alma. Gratidão! Meu irmão! Gratidão! 

Agradeço-te como cidadã e irmã! Nosso Pai, que não bebia, hoje iria celebrar! Daquele jeito igual a ti! Discreto ! Sábio! Forrado de amor ! 

Boa pescaria sempre! Bons mares e marés porque deles somos filhos. Que a Kianda te proteja sempre! 

Com amor. E bweeeeee de orgulho!

por Isabel Baptista
A ler | 12 Outubro 2025 | angola, camaradas, Xana