Conversa entre a espada e o pescoço: Ghassan Kanafani
A 6 de março de 1971, cerca de um ano antes de ser assassinado pelos serviços secretos israelitas em Beirute (Líbano), o intelectual-militante palestiniano Ghassan Kanafani escrevia um ensaio –publicado na al-Hadaf (árabe para “O Alvo”), revista semanal da Frente Popular para a Libertação da Palestina que havia fundado em 1969 e da qual era editor-chefe– dedicado à ideia do “Estado palestiniano”, que começara a circular com maior intensidade desde a agressão e ocupação israelita em 1967 (que ficou conhecida como Naksa, palavra árabe para “Recaída”) e que ganhou especial tração depois do Setembro Negro –conjunto de massacres perpetrados entre 1970 e 1971, sobretudo em campos de refugiados, pelo regime jordano, chefiado pelo Rei Hussein, contra os apoiantes e militantes do movimento de libertação palestiniano e que teriam como resultado a perda de milhares de vidas e como principal objetivo e consequência política a expulsão desse movimento do território da Jordânia.
Como a enorme maioria dos ensaios de Kanafani (e até recentemente), este texto não tinha sido traduzido do árabe para outros idiomas, o que nos diz alguma coisa sobre, por um lado, a construção teórica e literária do autor e, por outro, o boicote a autores do Sul Global e, particularmente, a autores palestinianos, por aqueles que detêm os meios de produção e difusão de conhecimento. Ou seja, quem detém estes meios contribui, de forma decisiva, para o processo de hegemonização de ideias e leituras particulares da e sobre a realidade como forma de a moldar aos seus próprios interesses materiais, sendo que uma das formas mais eficazes de o fazer é boicotar autores que transportam ideias e visões alternativas àquelas dominantes, apresentadas e muitas vezes interpretadas como a realidade em si mesma.
Quanto à escrita de Kanafani, ela não existe num vazio, mas como parte de uma prática política revolucionária no sentido mais amplo. Seja a partir da produção literária, onde relata, a partir de baixo e da sua própria experiência como refugiado, a Nakba palestiniana, recusando a sua naturalização ou eventualidade, ao introduzir o povo palestiniano como sujeito histórico que vive a Catástrofe como rutura que transformou radicalmente o seu quotidiano e a sua experiência espácio-temporal, mas também como processo em curso a ser contrariado por um permanente movimento de recusa e de retorno. Seja a partir de uma produção teórica que se alimenta e que alimenta a prática política revolucionária, quer a partir do que hoje chamaríamos de Estudos Culturais e Literários, quer a partir de complexas análises sociológicas, sempre informado pelo materialismo histórico como método.
Tanto a sua produção literária, quanto a sua análise teórica, destacam-se tanto pela generosidade, quanto pela honestidade para com os seus principais interlocutores (para os seus camaradas e para o povo palestiniano, de que é parte, reservava apenas a verdade), evitando promessas vagas ou a romantização do processo revolucionário, enquanto partilhava ferramentas essenciais para o alimentar como retorno, não a um passado idealizado, mas a uma Palestina onde a justiça social é construída a partir de baixo, pelos “condenados da terra”, os refugiados forçosamente desenraizados e feitos apátridas que recusam radicalmente a sua própria negação pelo projeto imperialista-sionista e tudo aquilo que ele representa.
Dessa produção teórica, destaco a análise da Revolução de 1936-1939 na Palestina, um perfeito exemplo do elo entre teoria e prática e da sua escrita como praxis, ou como forma de compreender a realidade, mas, sobretudo, de transformá-la. Escrito entre 1969 e 1972, atravessa o período subsequente à primeira grande vitória da luta armada revolucionária palestiniana (a Batalha de al-Karameh, em 1968), o auge da construção do movimento de libertação nacional palestiniano (sob o guarda-chuva da Organização para a Libertação da Palestina, ou OLP), mas também o Setembro Negro como grande impasse, fruto da brutal repressão do eixo Sionismo-Imperialismo-Reacionarismo árabe. O contexto em que foi escrito, permite ler a análise da Revolução de 1936-1939, que combateu tanto a colonização britânica da Palestina, quanto o projeto sionista, como um diagnóstico útil para a realidade do seu tempo presente. Se, por um lado, ajuda a compreender como foram criadas as condições de possibilidade necessárias para que a Nakba se materializasse em 1948, por outro, o seu principal objetivo foi expor a articulação de forças inimigas do projeto de libertação palestiniano e árabe a serem combatidas desde então e até ao presente. Logo no primeiro parágrafo do texto, pode ler-se:
Entre 1936 e 1939, o movimento revolucionário palestiniano sofreu um severo revés às mãos de três inimigos que se constituíram, juntos, como principal ameaça ao movimento nacionalista na Palestina, em todos os estágios subsequentes da sua luta: a liderança local reacionária; os regimes dos estados árabes vizinhos; e o inimigo imperialista-sionista.
As perguntas que guiam a análise de Kanafani, nesse presente marcado por um recuo forçado do projeto revolucionário, são, essencialmente, “como chegamos aqui?” e “quem nos trouxe a esta situação?” Em conjunto com o texto O espetro do Estado palestiniano, traduzido depois desta introdução, abre espaço para compreender os caminhos escolhidos (e o contexto da sua escolha) para levar a cabo o principal objetivo dessa articulação de forças inimigas, o isolamento e a destruição da resistência palestiniana e, consequentemente, do projeto de libertação nacional.
A realidade política e no terreno mudou substancialmente entre os anos de 1970 e a atualidade, com a ideia de um Estado palestiniano a cristalizar-se progressivamente como eixo central das reivindicações da liderança política palestiniana –desde 1974, com a introdução dessa possibilidade no programa político da OLP, passando pela declaração do estabelecimento do Estado da Palestina, em 1988, pela assinatura dos Acordos de Oslo, em 1993, até ao estabelecimento da Autoridade Nacional Palestiniana (ANP), em 1994– e de parte significativa do movimento internacional solidário com a luta do povo palestiniano, mas também fruto da progressiva normalização regional da entidade colonial e genocida sionista. Apesar disso, O espetro do Estado palestiniano continua a ser um texto essencial para o debate atual em torno quer da libertação como retorno e autodeterminação, quer daquilo que é apresentado como alternativa, uma falsa autonomia (de)limitada a partir de fora e que permita delegar a administração de uma população indesejada e insurgente, normalizar a presença de uma entidade colonial na região e facilitar a circulação de capital.
Hoje vivemos um momento em que o movimento de libertação palestiniano, apesar das manifestações de solidariedade internacional, se encontra numa posição de progressivo isolamento, talvez a mais recuada desde 1948, fruto da campanha genocida mobilizada pelo eixo imperialista-sionista contra o povo palestiniano e das várias agressões mobilizadas contra outros povos da região. E é precisamente nestes momentos que o reconhecimento de um “Estado palestiniano” e a abertura para o seu estabelecimento, sempre condicional, é apresentado como “solução para a paz”, funcionando, no entanto, como instrumento que alguns Estados usam para fugir às suas obrigações legais e salvar Israel de si mesmo, procurando ocultar os crimes cometidos e evitar o seu isolamento regional e internacional. Enquanto um genocídio é cometido –recorrentemente descrito por Israel como “direito à autodefesa”, com a concordância dos seus aliados ocidentais que, na melhor das hipóteses, falam de uma “catástrofe humanitária”– os palestinianos são apresentados como “responsáveis” e como “parte do problema” e o tipo de “soberania” tolerada e tutelada pelos aliados da entidade colonial é apenas performativa, como farsa ou uma espécie de bantustão (ou Palestinistão, tal como o apresenta Kanafani): segregado, fragmentado, desmilitarizado, cuja existência está dependente da obediência dos palestinianos e da “boa-vontade” daqueles que negam a sua história e autodeterminação e que os procuram eliminar, como povo, há mais de um século.
Cerca de uma semana depois da concretização desse reconhecimento condicional por alguns aliados de Israel –que se desculpam e desejam “que Israel possa compreender esta nossa posição. Ela não é feita nunca, em caso algum, contra Israel”–, a articulação de forças e os objetivos delineados por Kanafani nos dois textos acima referidos, estiveram também presentes na conferência de imprensa que juntou, no dia 29 de setembro de 2025, o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Ali foi apresentado um ultimato e uma tentativa de transformar devastação em lucro, descrita como “diplomacia” e como “plano para a paz” com 20 pontos, imposto à (e aceite pela) ANP, subscrito por 8 estados de maioria árabe e/ou muçulmana (Egito, Jordânia, Arábia Saudita, Catar, Emirados Árabes Unidos, Turquia, Indonésia e Paquistão), apoiado por vários aliados de Israel e que, supostamente, abre caminho a um cessar-fogo, sem dar quaisquer garantias aos palestinianos, mas impondo-lhes condições insultuosas e de tipo colonial e nenhumas a quem está a perpetrar um genocídio, a expandir o projeto de colonização da Palestina e a levar a cabo agressões militares contra vários países da região.
Todo este processo tornou ainda mais evidente como a chamada “comunidade internacional” se constitui: como uma espécie de cartel com objetivos partilhados, que alia a ameaças e ao exercício indiscriminado do poder económico e da força militar, uma caixa de ferramentas legais (descritas como “ordem internacional baseada em regras”) e simbólicas que permitem estruturar a sua própria legitimidade.
Mediante a incapacidade de destruir a resistência armada na Faixa de Gaza pela via militar e de concluir a “solução final” como extermínio e limpeza étnica do povo palestiniano tanto nesse território, quanto na Cisjordânia, sem que isso ponha em causa a normalização regional e a legitimação internacional de Israel, diferentes forças articulam-se para que a ordem imperialista e colonial (dependente da fragmentação regional por si determinada) se possa continuar a reproduzir e para que qualquer possibilidade de retorno e libertação (descritos do alto da moralidade supremacista e genocida como “terrorismo”) seja desmantelada, ao tentar uma pacificação debaixo de bombas e travestida de negociação –aquilo a que, de forma resumida, Kanafani chamava de “conversa entre a espada e o pescoço”.
Aqui, o objetivo central é (sempre foi) desmoralizar, isolar e destruir a resistência como matéria, mas, sobretudo, como uma temporalidade alternativa, que quebra a linearidade de um progresso civilizacional-colonial que se traduz, sempre, como opressão e morte. No fundo, destruir a resistência como terreno de construção de novos significados e como ideia de um outro mundo possível, não apenas na Palestina, mas usando a resistência palestiniana como exemplo para quem se recuse a aceitar a sua própria subjugação em qualquer parte do mundo.
É precisamente neste momento que nos deparamos com as palavras oraculares de Kanafani, elas também funcionam como um olhar sobre o nosso presente histórico:
Não é um acaso que a campanha por um Estado palestiniano se tenha tornado mais ostensiva depois do banho de sangue de setembro. Um importante efeito dos massacres de setembro foi a sensação psicológica generalizada de desolação, algo que pode ser plenamente explorado para adornar a ideia de um “Estado palestiniano” e apresentá-la como uma espécie de salvação. A importância desta ideia não está relacionada com o quão realista ou realizável ela é, mas com o facto de ser apresentada às massas sobrecarregadas como uma “alternativa”, numa altura em que o movimento de resistência –pelas suas próprias razões subjetivas e objetivas– é incapaz de oferecer qualquer alternativa direta e de curto prazo.
Propor o “Estado palestiniano” neste momento e desta forma, visa isolar a resistência de forma clara e minar a sua base popular de massas. Esta é a forma de impor a rendição ao povo palestiniano, porque essa rendição não pode ser imposta enquanto o movimento de resistência for capaz de manter a sua posição, como único representante da vontade do povo palestiniano.
É por isso que a ideia do “Estado palestiniano” foi promovida prematuramente como algo ao nosso alcance, algo prestes a tornar-se realidade. O objetivo efetivo desta pressão é confundir e perturbar a lealdade do povo palestiniano à resistência, fragmentar essa lealdade e fazê-la, assim, desaparecer.
FPLP
— tradução de texto —
O espetro do Estado palestiniano
Onde fica? O que é? Quem o clama? Quem lhe irá resistir? Como faremos isso acontecer?
Existem três tipos de “Estado palestiniano” que podemos distinguir:
O Tipo I é um “Estado” formado pela Cisjordânia e pela Faixa de Gaza, instigado, supervisionado e dominado por Israel. Seria, na prática, parte da rendição completa a uma vitória militar israelita –e uma das muitas consequências dessa vitória. O propósito deste Estado seria desenvolver a superioridade militar, política e económica do vencedor e produzir um grande avanço rumo aos seus objetivos estratégicos.
O Tipo II é um “Estado” criado na Cisjordânia, Faixa de Gaza e Transjordânia (a oriente do rio Jordão). Este seria estabelecido através do derrube do regime existente em Amã, sob o pretexto de que tal golpe iria ao encontro dos desejos do povo palestiniano-jordano. O golpe só poderia ocorrer com a bênção e o incentivo de Israel, dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. O seu objetivo real seria, fundamentalmente, eliminar o movimento revolucionário de libertação palestiniano, colocando-o inteiramente sob o controlo –possivelmente através de burocracia militar– da coligação imperialista-israelita.
O Tipo III é um “Estado” imposto pela vontade da luta armada palestiniana e árabe, quer em territórios libertados na Cisjordânia, quer noutros lugares. Este é um cenário efetivamente impossível de se materializar num futuro próximo, a não ser que se verifique uma mudança drástica na correlação de forças militares e políticas, tanto com o inimigo israelita, quanto com o inimigo imperialista reacionário. A autoridade a ser desenvolvida nestes territórios libertados não tem de assumir a forma de um “Estado” no sentido habitualmente associado a este termo. A base fundamental para a sua existência seria a de concretizar um ponto para o lançamento de novas ações de libertação com o recurso às armas, de forma a dar continuidade à luta e a superar o atual desequilíbrio de forças. O propósito de tal Estado seria intensificar a revolução, conduzi-la a um estágio mais avançado.
O “Estado” e a Terra Libertada
Este último tipo de “Estado palestiniano” não é, evidentemente, aquele que ouvimos ser proposto e discutido. Não é sequer uma realidade plausível, dada a atual “fase de retração” da luta palestiniana e árabe. No entanto, é crucial que fique aqui registado, porque a lógica de um tal Estado existe em completa oposição àquela dos “dois Estados” de Tipo I e de Tipo II. Apesar disso, muitas pessoas estão hoje, intencional e erradamente, a apresentar a lógica de Tipo III para falar e analisar as de Tipo I e II.
O “Estado palestiniano” descrito no Tipo III impulsionaria o movimento de libertação palestiniano e árabe e seria favorável à luta armada. Já o “Estado palestiniano” de Tipo I e II seria a consequência de um grande recuo do movimento de libertação palestiniano e árabe. Isto perturbaria a correlação de forças em favor do inimigo e em prol dos seus interesses, forçando, em última análise, uma rendição à sua vontade.
Enquadrar a condição do Estado de Tipo I e II como uma espécie de “recuperação” de territórios palestinianos é uma manobra enganadora; geralmente expressa através da pergunta ingénua: “Não seria melhor lançar uma revolução a partir de Tulkarem ou al-Khalil, em vez de Jarash ou Amã?” A questão toma as condições que sustentam o Tipo III –a continuação da luta– para justificar uma realidade radicalmente diferente, ou oposta, que sustenta os de Tipo I e II –a rendição.
Quem quer um “Estado palestiniano”
Antes de abordarmos a questão dos “mapas” na sua relação com o “Estado” proposto, precisamos de dar um passo atrás e observar o seguinte:
- Nunca na história da nossa luta se falou tanto de um Estado palestiniano, e do quão “ao nosso alcance” ele está neste momento. Esta discussão é notoriamente assinalável porque nunca na história da nossa luta, as dificuldades e os obstáculos, no caminho para um tal “Estado”, foram tão flagrantes e exigentes:
Desde a ocupação de junho de 1967 que Israel falhou completamente em produzir as suas próprias “lideranças nacionais” palestinianas, ou qualquer tipo de autoridade política nativa nos territórios recentemente ocupados. A classe “colaboracionista”, que coopera com o inimigo israelita na Cisjordânia e em Gaza, é a pior em todo o espectro histórico de ocupações militares em qualquer lugar, e é a mais falida em termos de representação política. Israel é completamente incapaz de sequer fingir que os seus parceiros palestinianos podem desempenhar um papel representativo. No máximo, consegue, e mal, apresentar um líder municipal ou regional como representante palestiniano; nenhum “Estado palestiniano” estabelecido na Cisjordânia e em Gaza pode oferecer uma realidade diferente daquela que existe agora sob ocupação militar israelita. Uma autoridade criada neste contexto iria falhar claramente em servir os objetivos israelitas e imperialistas de um “Estado palestiniano”, porque isso exigiria, sem qualquer dúvida, que esse Estado tivesse alguma aparência de “autonomia” e alguma pretensão de se apresentar como corpo representativo.
- Israel não tem qualquer interesse prático na existência de um Estado palestiniano que não promova os seus objetivos de infiltração e de dominação da política árabe. Um Estado palestiniano que não possa reivindicar o nível mínimo de aceitação por parte dos Estados árabes, ou pelo menos de alguns deles (da Jordânia em particular), não pode servir uma vitória israelita. É evidente que um tal Estado seria contrário aos interesses do regime jordano. De facto, este regime tem utilizado todos os seus meios, da repressão à diplomacia, para se opor a qualquer autoridade deste tipo (na Cisjordânia) que opere fora da hegemonia e do controlo de Amã. Um tal “Estado” seria prejudicial aos interesses e privilégios da Jordânia e exporia o regime jordano à irrelevância ou à decadência.
Por razões parecidas, outros regimes árabes não conseguem encontrar uma razão ou motivação para aceitar esta forma de Estado palestiniano.
- Todas as fações do movimento de resistência, legítimo representante da vontade coletiva dos palestinianos, rejeitam esta armadilha de rendição. Não pode haver dúvidas de que a própria existência do nosso movimento de libertação nacional depende da capacidade destas fações de rejeitar e combater a possibilidade de um tal Estado, e de prosseguir a luta armada para obliterar o status quo da atual correlação de forças.
- As grandes potências globais não veem nada de apelativo em trabalhar seriamente em prol de um Estado tão fraco e subserviente, rejeitado por quase todos os lados nesta luta. Isto não quer dizer que estas potências não considerem “o problema do povo palestiniano” urgente, ou que não estejam conscientes da crescente importância e prioridade deste “problema”, mas veem essa urgência sob uma lente diferente, à qual voltarei mais tarde.
- Dadas as suas próprias disputas internas de poder, Israel é contra abdicar desta forma mínima de ocupação direta. Além disso, não existe qualquer pressão para que o faça –seja pela atual correlação de forças local ou global, seja por aquilo a que se chama de “opinião pública internacional”. O que é claro neste momento é que o Plano Allon continua a ser a estratégia mais popular dentro do establishment israelita. O plano visa pouco mais do que desarmar os palestinianos da Cisjordânia, construir um baluarte de colonatos militares ao longo do rio Jordão e “devolver” o que resta da Cisjordânia a Amã, através de um acordo de paz e reconciliação!
Estabelecer o Palestinistão?
Então, o que leva a discussões tão apaixonadas sobre um “Estado palestiniano”, como se o seu estabelecimento estivesse iminente, fosse acontecer a qualquer momento, apesar dos limites para que tal Estado se materialize não serem agora menores do que antes? A estrutura objetiva a partir da qual se pode examinar a questão do estabelecimento do Palestinistão (que é o nome mais lógico para um Estado palestiniano artificial e colaboracionista –um nome cunhado pelo Dr. Nabil Shaath, numa palestra que deu recentemente no Kuwait) é a seguinte:
- O estabelecimento do Palestinistão como resultado de uma rendição total (ou o que hoje se chama de “solução política negociada”). Este cenário faz parte de um acordo mais abrangente que resulta da total submissão política árabe, como preço a ser pago pela derrota de 5 de junho de 1967.
ou
- O estabelecimento do Palestinistão como objetivo de uma súbita mudança na estrutura do regime jordano, seja através da tomada do poder pelos militares, de um golpe palaciano, ou de algo do género. Neste cenário, o novo regime em Amã alegaria de alguma forma representar o povo palestiniano-jordano. Talvez nessa altura, e após uma breve conversa paralela com o inimigo, a Jordânia declarasse uma nova pátria palestiniano-jordana, ou algo parecido.
Vamos analisar mais de perto cada uma destas possibilidades:
A primeira, o Palestinistão como parte de uma rendição política árabe mais ampla, deve ser entendida num contexto de grande circulação da ideia de “solução pacífica negociada”. Embora seja verdade que foram feitos grandes progressos nos últimos meses, seria enganador subestimar os obstáculos reais presentes no caminho –obstáculos que tornam essa soberania-pela-negociação em algo impossível neste momento histórico. Como tal, é uma completa fantasia dizer que um Estado palestiniano está “ao alcance” num futuro próximo.
A segunda, o Estado nascido de uma mudança de regime em Amã, não pode existir enquanto o seu ímpeto fundamental for Israel e as potências imperialistas, a não ser que estas potências consigam garantir a continuidade do papel intelectual, político e militar delegado à classe dirigente da Jordânia, desde a criação da entidade jordana até aos dias de hoje.
Por outras palavras, o cenário de substituição da classe dirigente reacionária na Jordânia –que não teria sido capaz de cravar as suas raízes reacionárias tão profundamente na sociedade jordana sem o apoio das potências imperialistas– não pode ser concretizado, a não ser que essas mesmas potências, mais Israel, garantam o estabelecimento de uma nova classe dirigente. Esta classe necessitaria de se apresentar com uma imagem pública credivelmente patriótica, enquanto se apoiaria nas mesmas raízes sociais, de classe, políticas e ideológicas que sustentam a atual classe dirigente jordana. São estas as condições necessárias para que qualquer regime jordano sirva com sucesso os interesses das potências imperialistas, e o atual regime tem-se mostrado exemplar no cumprimento destes requisitos e no cumprimento do papel que lhe foi atribuído, como venerável colaborador do projeto imperialista.
Em setembro de 1970, o regime jordano provou (como continua a provar) a sua força e indispensabilidade aos seus senhores imperialistas. A ideia de que o imperialismo abandonará um dos regimes árabes reacionários mais sólidos e sanguinários não passa de uma ilusão, tanto mais que este regime provou a sua eficácia como fiável servidor dos interesses imperialistas desde 1936 (em 1941, 1948, 1956, 1958, o seu papel na rutura da união política entre o Egito e a Síria e, mais recentemente, em 1967). Os senhores imperialistas não o irão ignorar nem esquecer.
Um “Estado palestiniano” com esta forma e neste contexto não é algo que possamos facilmente prever. Embora possa dar-se o caso de os senhores da Jordânia não se importarem de emitir uma declaração onde afirmam apoiar os palestinianos na decisão do seu próprio destino; estes senhores não hesitarão em utilizar todos os meios ao seu dispor –especialmente no que diz respeito ao aprofundamento das relações com a classe colaboracionista na Cisjordânia– para garantir que tais declarações de solidariedade não passam de abstrações morais.
No que diz respeito ao Palestinistão e à classe dirigente da Jordânia, o mapa político não deixa margem para dúvidas: o regime do Rei Hussein já não pode alegar que representa a vontade do povo palestiniano (e foi assim que perdeu a batalha contra os palestinianos, da qual supostamente emergiu “vitorioso”). Dito isto, provou a quem mais poder tem no atual contexto que o seu regime é o único no qual devem e podem confiar. A confiança depositada só poderá ser proveitosa através de uma escalada da repressão sobre as massas palestinianas e da falsa fabricação das suas aspirações.
Mesmo que a atual monarquia, ou quem a substitua num putativo golpe, firmasse um acordo bilateral com Israel para estabelecer, sob qualquer nome, a “pátria palestiniano-jordana”, os israelitas e os seus aliados imperialistas não verão isso como uma solução. A sua principal preocupação não é se vai neutralizar ou manter as negociações com o regime jordano –isso já é parte integrante do status quo existente. O seu objetivo é eliminar a luta palestiniana. O Palestinistão jordano não o garantirá, a não ser que ocorra no contexto de uma acomodação abrangente que inclua todos os Estados árabes, ou pelo menos uma maioria deles, particularmente os mais poderosos.
E isto traz-nos de volta, mais uma vez, à circulação da ideia de “solução pacífica negociada”.
O caminho feito pela ideia de um Estado palestiniano
Depois de contextualizada a questão de um “Estado palestiniano”, podemos responder objetivamente ao porquê de estar a ser fervorosamente caracterizado como algo iminente.
É importante ressalvar que as discussões sobre um “Estado palestiniano”, tal como existem hoje, não começaram com a aceitação árabe da última iniciativa dos Estados Unidos; elas tomaram a sua forma atual após o massacre de setembro de 1970. A discussão sobre um “Estado palestiniano” já circula realmente há algum tempo, embora sempre envolta em ambiguidade. Antes da Guerra de 1967, Lawrence Langner apresentou uma iniciativa para declarar a Grande Jerusalém unificada como um Estado, com o objetivo de conseguir uma “coexistência espiritual e económica”. Aziz Shehadeh defendeu também a criação de um Estado, em 1969, numa edição da revista sionista New Middle East, e a mesma revista dedicou uma edição especial ao tema em março de 1970. Houve também rumores relevantes sobre um projeto de Estado apresentado por algumas elites tradicionais palestinianas a U Thant, após a derrota de junho de 1967, e modificado em maio de 1970, depois de uma reunião entre essas mesmas elites na casa de Anwar Nusseibeh, em Jerusalém. A 22 de janeiro de 1970 o Jewish Chronicle noticiou, pela primeira vez, que uma corrente do partido de poder israelita Mapam considerava o estabelecimento de uma entidade palestiniana. A 14 de maio de 1970, Aba Eban discutiu a ideia de um Estado palestiniano numa emissão de rádio falada em árabe. Depois houve Fullbright, mais tarde Goldman, que propôs a fórmula de “um território não-israelita para os palestinianos” e ainda os relatos de um certo Dr. Fishers, dos Quackers, que analisou a possibilidade de um Palestinistão nas duas margens do rio Jordão.
Apesar destas propostas poderem ser consideradas exemplos de apelos ao estabelecimento de um Estado palestiniano, todas elas se caracterizam por uma falta de clareza e especificidade, especialmente as de Fullbright e Goldman, associando a noção de um Estado palestiniano à ideia de uma “solução pacífica negociada” que inclua toda a região. O foco num “Estado palestiniano” como uma “solução” que, de alguma forma, se sustenta em si mesma, só ganhou contornos claros depois dos acontecimentos de setembro de 1970. Apenas nesse momento assistimos ao frenesim na imprensa francesa e estadunidense, e mais recentemente na imprensa britânica, que prega por um Estado palestiniano como nunca. Hoje é raro o leitor abrir um jornal ocidental sem ver um ou dois artigos que anunciam o “nascimento”, a qualquer momento, de um Palestinistão.
Mas porquê?
O principal atributo da resistência palestiniana não é, pelo menos neste momento, a sua força militar ou a extensão de território geográfico sob o seu controlo. Se esta realidade já era evidente no plano político, tornou-se ainda mais evidente a partir dos acontecimentos de setembro de 1970: o fascismo reacionário do regime jordano, que não poupou recursos no seu arsenal de repressão contra a resistência, convenceu-se mais do que nunca de que a força da resistência nunca esteve no número de espingardas disponíveis ou no número de escritórios públicos a partir dos quais realizava as suas atividades.
O que aconteceu foi que, apesar da carnificina de setembro contra a resistência, levada a cabo pelo regime jordano, e dos seus desenvolvimentos, a real dimensão da resistência não foi, de modo algum, tão afetada quanto as suas capacidades militares. Daí resultou que a vitória da “Operação de Setembro”, instigada por Israel e pelas potências imperialistas e implementada pelo seu colaborador reacionário, permanece incompleta; como tal, é necessária uma operação subsequente que vise minar não o poder militar da resistência, mas o terreno social e político sob os seus pés, acabando efetivamente com ela como movimento que representa a vontade de luta das massas palestinianas.
Isto não pode ser feito de forma direta. Exigiria uma estratégia meticulosamente planeada que pudesse dividir as lealdades das massas palestinianas, minando os pilares sociais em que a resistência se apoia não só para atingir os seus objetivos de emancipação, mas também aqueles que constituem a base sobre a qual a sua própria existência é justificada. O “projeto do Estado palestiniano” é precisamente a bomba plantada para destruir os fundamentos sociais da resistência. Este projeto necessitaria de ser especificamente concebido para obliterar a lealdade popular ao movimento de resistência. Se as forças de oposição conseguirem garantir a destruição do movimento de resistência como representante da vontade palestiniana, será bastante fácil impor qualquer formato de rendição às próprias massas palestinianas.
Não é um acaso que a campanha por um Estado palestiniano se tenha tornado mais ostensiva depois do banho de sangue de setembro. Um importante efeito dos massacres de setembro foi a sensação psicológica generalizada de desolação, algo que pode ser plenamente explorado para adornar a ideia de um “Estado palestiniano” e apresentá-la como uma espécie de salvação. A importância desta ideia não está relacionada com o quão realista ou realizável ela é, mas com o facto de ser apresentada às massas sobrecarregadas como uma “alternativa”, numa altura em que o movimento de resistência –pelas suas próprias razões subjetivas e objetivas– é incapaz de oferecer qualquer alternativa direta e de curto prazo.
Propor o “Estado palestiniano” neste momento e desta forma, visa isolar a resistência de forma clara e minar a sua base popular de massas. Esta é a forma de impor a rendição ao povo palestiniano, porque essa rendição não pode ser imposta enquanto o movimento de resistência for capaz de manter a sua posição, como único representante da vontade do povo palestiniano.
É por isso que a ideia do “Estado palestiniano” foi promovida prematuramente como algo ao nosso alcance, algo prestes a tornar-se realidade. O objetivo efetivo desta pressão é confundir e perturbar a lealdade do povo palestiniano à resistência, fragmentar essa lealdade e fazê-la, assim, desaparecer.
Ao simplesmente contrastar a abundante propaganda sobre o “Estado palestiniano” como algo prestes a concretizar-se, com a impossibilidade prática e objetiva da sua existência nas condições atuais, a contradição torna-se clara. Trata-se de uma armadilha que foi montada com dois propósitos:
Primeiro: eviscerar a lealdade popular à resistência, atualmente em declínio, através da disseminação de dúvidas sobre a sua eficácia a longo prazo. A armadilha do Estado tenta, então, preencher o vazio deixado pelo desencanto com a resistência, apresentando a soberania como salvação prometida, disfarçada de possibilidade num horizonte próximo.
Segundo: incitar a resistência a travar uma batalha decisiva prematuramente, levando à eliminação da sua existência física e militar antes de ser realmente capaz de travar a verdadeira batalha contra a “solução pacífica negociada” de forma mais ampla.
Preparação para o confronto?
A análise feita até agora não deve ser entendida como demonstração de que um Estado palestiniano colaboracionista –o Palestinistão– esteja, de facto, “no plano da impossibilidade”, ou de que qualquer esforço deva ser poupado na preparação e no trabalho para o confrontar e garantir o seu fracasso.
Não.
Pelo contrário, o que devemos sublinhar é a grande diferença que existe entre planear e levar a cabo um confronto com um perigo inevitável que está ao virar da esquina e prepararmo-nos (com calma e apaixonadamente) para enfrentar esse perigo como uma possibilidade a longo prazo.
Seria um erro de julgamento considerar esta como uma ameaça iminente e a curto prazo. Isso arrastar-nos-ia para uma batalha onde o inimigo escolheu o momento, o terreno e as ferramentas. Permitiria também ao inimigo promover a sua própria agenda sem ter de se preocupar em enfrentar a ameaça da resistência. É absolutamente claro que o Palestinistão fará, de uma forma ou de outra, parte do programa da “solução pacífica negociada”, se e quando a rendição política for imposta aos regimes árabes. Assim, enfrentar este perigo permanece vinculado ao atual confronto mais amplo entre o movimento de libertação árabe e a violência imperialista.
Enquanto projeto, o Palestinistão só pode ser parte da ampla batalha travada atualmente pelo movimento de libertação palestiniano e árabe. Isto significa que a capacidade para garantir o fracasso deste projeto depende, nesta fase que se aproxima, da capacidade que este movimento terá para se reagrupar, revigorar e reforçar os laços com os movimentos de massas em todo o mundo árabe.
Seria um grave erro cair na armadilha colocada ao longo do caminho percorrido pelo movimento de resistência e juntarmo-nos, consciente ou inconscientemente, à manada que exagera o quão perto estamos do estabelecimento do Estado palestiniano fantasma. Exagerar a iminência do Palestinistão seria tão perigoso quanto ignorá-lo completamente. Contribuiria para a campanha de propaganda inimiga, que visa apresentar a resistência como não representativa da vontade das massas palestinianas e arrastá-la para uma batalha para a qual está hoje mal equipada; ignorar essa possibilidade é um impedimento à preparação para o confronto inevitável.
Um Estado palestiniano precisa de ser examinado meticulosamente. Há correntes que já começaram a defender que o estabelecimento do Palestinistão é um mal necessário. Com base nisto, prossegue o argumento, o movimento de resistência deve “preservar” a sua força de combate para a próxima etapa da luta. Estas correntes oportunistas, que propagam avaliações tão erradas da situação, precisam de ser decisivamente confrontadas, porque, em última análise, servem os objetivos daqueles que lançaram a ofensiva do “Estado palestiniano”.
A principal missão a ser levada a cabo pela resistência atualmente é a de reforçar a sua posição de representante da vontade das massas palestinianas, desmascarando a campanha do “Estado palestiniano” e expondo-a como parte integrante do movimento mais amplo que defende uma “solução pacífica negociada”. Isto só pode ser feito ao:
- Identificar e mobilizar os princípios e objetivos comuns de todas as fações revolucionárias militantes, de modo a construir e a manter uma frente palestinianas para a libertação nacional;
- Escalar a ação militar contra o inimigo israelita, mesmo que isso se traduza numa fase de “exagero tático”;
- Exercer pressão política e militante contra as forças da reação na Jordânia;
- Fortalecer, institucionalizar e aprofundar os laços com as forças progressistas e patrióticas árabes.
Ghassan Kanafani, Revista al-Hadaf, 6 de março de 1971