Do 'Hanami' de Denise Fernandes (e da papaeira queimada da minha vóvó Nica)
Há filmes que não se veem: sentem-se. Que nos tocam antes de ser dita uma só palavra. Hanami, da jovem realizadora luso-caboverdiana Denise Fernandes, é um desses filmes raros que não entram pelos olhos adentro, mas que antes se entranham pelos poros, que se pressentem nos silêncios herdados, que se adivinham nos gestos sussurrados, que sentimos pelas ausências angustiantes que vivenciámos na nossa própria experiência. Com o ritmo complacente de uma brisa seca que sobe a encosta do vulcão antes de tombar o sol e refrescar o planalto, esta obra-prima inaugural não oferece explicações –– oferece pertença. A nós, caboverdianos diaspóricos, memória. Uma pertença e uma memória suaves, firmes, tecidas com as mesmas mãos que souberam outrora lavar roupa no tanque, colher papaias ao nascer do sol, acender um canhotinho, ou silenciar a dor para não assustar o fidju kodé lá de casa.
fotos de Zachow Pictures
Parte 1: Lava de beira-mar: da técnica e da estética de um primeiro olhar de contida beleza
Há um tipo de beleza que se forma lentamente, como lentamente corre a lava que endurece ao tocar o mar e cria terra nova, penetrando as profundezas azul-escuras do oceano, lá nos fundos onde já há tubarão. É uma beleza mineral, silenciosa, directa, acessível, sem artifício. Hanami habita esse lugar.
Um filme coproduzido entre Portugal, Suíça e Cabo Verde, rodado em pleno na Ilha do Fogo, que nele se vê não como cenário exótico (como sucede noutros filmes), mas como matéria viva, com a paciência de quem sabe que só o tempo revela o essencial. E o filme da Denise Fernandes tomou o seu tempo para existir, esculpido por uma realização cuidadosa, sensível e inteligente que retrata com rigor as subtilezas psicossociais de uma comunidade, de uma ilha, de um país, de uma nação.
As imagens e enquadramentos da diretora de fotografia Alana Mejía González mais do que registar, escutam o Fogo. A luz natural atravessa o filme com a mesma delicadeza insistente com que o sol atravessa as frinchas das portadas das janelas sem vidro das casas de Chã das Caldeiras ao amanhecer. Em diversas cenas, os rostos surgem da penumbra como vultos discretos, ou como orações contidas, e os corpos movem-se com a lentidão própria de quem carrega memória e sobrevivência inata. Mas também, com a lentidão própria e bem real do Fogo. Com a lentidão esforçada de uma mulher que carrega na cabeça, encosta acima, um balde de 10L de água. Aliás, analogia ideal para sublinhar a lente gentil que Denise Fernandes coloca no Fogo, ilha que uma migração às vezes eminentemente masculina transformou em sociedade matriarcal. De qualquer forma, não há pressa. Nunca há pressa. Aqui, essa recusa da velocidade numa indústria veloz é um gesto político deliberado.
O som, desenhado por Henri Maïkoff e Etienne Curchod, é de uma austeridade densa, que enriquece o filme, presente tanto pelo que está como pelo que não está. Escutam-se as folhas secas de uma papaeira ao vento, o bater ritmado das colheres nos pratos, o roçar do pano contra o corpo, o esvoaçar de panos ou redes na brisa, um vento que entra e sai como um visitante discreto, como se a ilha respirasse através do quotidiano das vidas que desfilam no grande ecrã. E há o que não se escuta.
A montagem de Selin Dettwiler respeita essa respiração sem acelerar o que precisa de tempo. Há silêncio suficiente entre as cenas para que a sôdade nos entre pela alma. E ela entra. A cada plano, somos convocados a recordar um cheiro, uma voz que já foi, uma ausência que nos faz mossa, que deixa mossa.
A narrativa é minimalista, mas não simplista: Nana, a protagonista, cresce entre a febre e o abandono, entre o que lhe falta e o que floresce. E nós, espectadores, crescemos com ela, febris, angustiados, sós, deslumbrados. As interpretações das jovens actrizes Daílma Mendes e Sanaya Andrade — ambas estreantes — são de uma contenção e profundidade desarmantes. Os olhos de ambas carregam mais do que as respectivas idades permitem. Cada gesto é orgânico, não ensaiado ou, como explica Denise Fernandes, com o mínimo de instruções possíveis, deixando espaço para que elas simplesmente existam. A actriz Alice da Luz, como Nia, mãe ausente e desejada, compõe uma figura densa, cheia de camadas e de silêncio intergeracional. Nota dez, aliás, ao casting, pela verossimilhança física desta relação familiar. Para Nia, enfim, não se trata de redenção, mas de tentativa de estar. Sem uma palavra, lemos nos seus olhos o receio desta reconexão tentada, ou da sua falha. Uma história que se conhece a quantas mães do Fogo tiveram que deixar com a avó uma filha (ou filho) para djobi vida – para aspirar algo melhor para a próxima geração. A ternura com que a avó de Nana olha para Nia, filha pródiga, não deixa mácula de recriminação. O amor, ali, é ainda possível, ainda que hesitante. Como quase sempre na vida.
cortesia Hanami / O Som e a Fúria
Yuta Nakano como Kenjiro, o visitante japonês, parecerá, à primeira vista, uma presença deslocada — mas não é. Kenjiro representa um eco transiente, uma dobragem simbólica do conceito de hanami (a contemplação de uma flor efémera). Neste caso, a flor não é de cerejeira. Mas de resistência. De afeto. De pertença. E brota do chão queimado. Como a papaeira queimada no quintal da minha Vóvó Nica. Há outro ponto de contacto: centro nevrálgico de todas as rotas marítimas do império, Cabo Verde fornece marinheiros e recebe viajantes de todos os cantos do mundo ao longo de séculos. Incluindo Nagasaki.
A direção de arte de Mathé, os figurinos de Silvia Grabowski, e a maquilhagem de Cristina Fischer compõem um mundo onde o real é digno, discreto. Pano terra, barro, sol, escória, cinza, planta, ruína. Convincente como realidade apesar dos laivos de algum realismo mágico. As coisas como são.
E por isso mesmo, belíssimas.
Num gesto raro, Denise Fernandes constrói um filme em que a técnica não serve o espectáculo, mas o cuidado. E esse cuidado é o que estrutura este cinema que fica. Que cura. Que recorda. Que perdura.
Parte 2: Encostas exteriores da ilha: dos olhares do mundo e dos espelhos da diáspora
Hanami foi uma das maiores surpresas do circuito internacional de cinema nos últimos anos. Não porque tenha gritado mais alto que outros. Mas porque sussurrou de forma mais íntima. E o mundo escutou.
Locarno. Chicago. São Paulo. Londres. Marselha. FESPACO. Göteborg. Lisboa. Hanami brilhou em todos, conquistando prémios como o de Melhor Cineasta Emergente, o Ingmar Bergman International Debut Award, o Roger Ebert Award, a Montgolfière d’Or, o Prémio de Melhor Direção de Arte, ou o último, o Prémio MAX para Melhor Longa-Metragem na Competição Nacional do IndieLisboa. Mas o que comove não são os troféus. São os ecos. As conversas em voz baixa depois das projeções. Os suspiros longos no escuro. As lágrimas discretas.
No título de uma recensão crítica do jornal Público, lê-se: “o milagre da escassez multiplicada em abundância”. Outra, do magazine CineMax da RTP, viu no filme “um regresso às raízes”. Já o Expresso falou em “coisas bonitas que chovem sobre uma ilha” — como se o Fogo, no olhar de Denise Fernandes, se tornasse um lugar capaz de abrigar o sublime sem o espectacularizar.
Mas para nós, da diáspora caboverdiana — para mim, e para muitos outrxs — o filme não é somente uma história de sucesso. Foi e é reconhecimento. Uma devolução. Como tantas pessoas na diáspora do Fogo, cresci na Grande Lisboa, rodeado de caboverdianos e outros africanos, e ainda assim, à margem de uma pertença real, quer entre eles, quer entre os portugueses. Em casa falava-se português. O crioulo era reservado para o meu pai, para os meus tios, para os conhecidos, para os mais velhos, para os vizinhos, para os momentos que exigiam segredo ou confidência. Ouvia-se, não se imitava. Não era “culto”, mas “corrompido”. Melhor falar só português para te dares bem na escola. Não sabiam, não se sabia, na altura, que com esse compromisso estávamos a perder partes inteiras de nós que nos levariam uma vida inteira a resgatar, e às vezes, partes irresgatáveis.
Crescemos –– eu, e tantos outros caboverdianos da minha geração, esta do pós-independência –– com a ideia de que havia formas boas e más de ser caboverdiano. Que o crioulo do Sal era mais suave que o de Santiago, mais impactante, o do Fogo mais duro e musical, e o de São Vicente “mais civilizado”, mercê da semelhança com o português e o cultivo de uma certa aura burguesa do Mindelo. Como se a pertença tivesse hierarquias. Como se a identidade fosse um passaporte e não uma carne e uma pele.
Isso reflectia-se também nos verões passados em Cabo Verde. Tios que vinham da Holanda ou da América olhavam-nos com ar de superioridade. Nós, os de Portugal, éramos os “remediados”. E por nossa vez, se calhar também olhávamos de lado os que nunca saíram da ilha — como se isso fosse fracasso, e não bravura.
foto de Giles Laurent
Foi por isso que, no escuro do auditório da Culturgest, ao ver Hanami com uma comunidade total que pressentia na sala, senti os meus olhos humedecer. Pelas crianças que fomos, tentando encaixar-nos em identidades inventadas por outros. Ou talvez pelo meu pai, que me apareceu em flash, num ápice, sentado no sofá nesse final de tarde quando cheguei da escola, e que olhava para a frente –– para a televisão –– em silêncio, como uma estátua, antes que eu me apercebesse que esse silêncio duro, quase embaraçado, vinha acompanhado de uma lágrima que lhe rolava pelo rosto enquanto a lava do Pico do Fogo escorria na televisão, encosta abaixo, em direcção à sua aldeia. Veio-me a mim essa lágrima dele, talvez por mim mesmo, por não ter sabido, então adolescente socialmente inepto, consolar aquele homem que, até ali, me era indestrutível, e que naquele dia, de peito estrangulado, deixou de o ser.
E veio-me essa lágrima, sobretudo, por saber que não estava sozinho. O silêncio da sala confirmou-o.
Com o vai-vem de visitas na tela de Hanami, lembrei-me da Vóvó Nica feliz por ter visto uma passarinha –– ou “passadinha” (Halcyon leucocephala) uma espécie rara de beija-flor que ocorre no Fogo –– pousar no telhado da casa e cantarolar, assegurando-a de que iríamos de visita ainda antes de nós o sabermos. Com a passarinha, voltaram-me as memórias. A passarinha era sinal de boas novas. Às vezes, a visita não chegava a chegar. E a passarinha passava só, sem ninguém atrás. Era, então, o mensageiro da sôdade.
Em Hanami, esse vai-vem surge como símbolo do interstício. Do entre. Da espera. E da esperança.
Parte 3: Chã das Caldeiras: um planalto de pertença e de vinha de altitude em terra queimada
A viagem de Nana, em Hanami, é a de todos nós que tentamos pertencer sem manual para o fazer. Crescemos entre códigos, sinais, interdições. Fazemos um codeswitching linguístico e cultural constante, sem tampouco nos apercebermos. Aprendemos que havia uma forma certa de ser caboverdiano, cá ou lá — e quase sempre, não é a nossa. A nossa, essa, está sujeita a peritos na vida alheia.
A certa altura, algo muda. No nosso entendimento, ou autoconfiança, ou conexão. No caso de Nana, de forma gentil, quando se recusa a partir com Nia, e no da Denise, como tem dito em entrevistas, com esse resgate de Cabo Verde, aos poucos, como é, aliás, o meu caso.
Para mim, esse momento foi naquele verão em que voltei ao Fogo com bastante tempo planeado pelos pais para as férias grandes, ainda que com pouca intenção minha. Era mais velho, e esta já não era apenas uma visita, mas, sem eu o saber, uma reconexão. O avião a hélice desceu-nos entre nuvens e memórias de visitas anteriores, e quando a porta abriu, o cheiro — seco, quente, contundente, quase adstringente — entrou-me pelas narinas como uma herança de outra visita, talvez a primeira. Um odor conectado emocionalmente com o cerebelo, que me disse ainda antes de descer a escada do avião e pisar o chão: “sou daqui, aqui é casa”.
Corri com os meus primos e primas pelas ruas poeirentas nesse verão. Às vezes fazia-se um baile, como aquele que Denise Fernandes retrata em Hanami, e dançava-se até de madrugada. Fui alvo de piadas jocosas dos meus primos por causa dos meus olhos verdes (odju di cégu!), ainda que quase todos eles, de pele mais escura que a minha, também tivessem olhos verdes. Só que nunca me senti menos, nem menino di fora. Nesse verão, e desde então, abraçaram-me como menino di li. Senti-me visto, talvez pela primeira vez na minha vida. E aceitei, aos poucos, o lugar ambíguo de quem vem de longe, mas é de dentro. De quem aprendeu a amar a ilha pela ausência e pelas palavras. Pela sôdade. Pelo desejo de ser nomeado.
E fui nomeado. Muitos anos, décadas, mais tarde. Em São Filipe, um dia, já adulto. Em trabalho, saio de um avião e o taxista que me calhou virou-se para trás quando lhe pedi que me levasse a Mosteiros, e fitando-me, pergunta, acutilante –– primeiro em português afogueado, depois em Kriolu –– “Tu és dos De Andrades, não és? Lá de Mosteiros?” E nesse momento, sem cerimónia, fui validado por esse homem qualquer, que me reconheceu, aparentemente pelo nariz. Não por um papel, mas pelo olhar de quem me viu sem nunca me ter visto.
Anos depois, percorreria com uma amiga a estrada circular da Ilha do Fogo, cinco anos depois da morte repentina do meu pai. Cinco anos depois de tentar entender a minha pertença sem a existência dele. E em cada curva daquela estrada de pedra bateu-me uma memória, e outra, e outra. Cova Figueira. Relva. Achada Grande. Queimadinha. Fonsaco. Mosteiros. Fajãzinha. Ribeira Ilhéu. São Filipe. Patim, Fonte Aleixo. Figueira Pavão. E depois Chã das Caldeiras. Uma dor. Um riso. Uma cerveja num boteco. A minha avó em frente daquela papaeira queimada pela lava. Um baile num pátio de cimento. Uma briga com o pai, em português. Uma pergunta sem resposta. Os primos da América. O meu primeiro funáná com uma rapariga cujo nome me escapa, mas cujos olhos verdes e vestido azul me ficaram. Aquela estrada tornou-se ritual de luto. De libertação. De memória. De catarse. De resgate. E a certa altura, ao chegar a Chã, parei de pensar e de sentir. O ar ali é diferente. Mais fino. Mais exigente. E mais sagrado.
Ali, onde a lava destruiu tudo, onde já vimos crescerem videiras, onde já vimos o vinho renascer das cinzas, onde as pessoas que perderam casa, roupa, fotos, memórias, ainda assim, voltaram a construir a viver, a tocar música, a brincar com as crianças, a arar, a contar estórias.
Foi ali, cinco anos depois da morte do meu pai, que percebi que o meu Cabo Verde não era só herança. Era carne. Era escolha. Era construção. Era insistência. Era esforço. Era ter vivido no Mindelo e trabalhado na Praia, e escalado picos em Santo Antão, e ensinado no Maio e na Boavista. Esse Cabo Verde, percebi então, era meu, sem filtro de outrém, igual ao de tantos outros, tão diferente do de outros tantos.
Um dia, faz agora uns oito anos, fui entrevistado num talkshow da televisão caboverdiana, e perguntaram-me se queria falar em português ou crioulo. Hesitante, escolhi o crioulo e cometi erros que me envergonharam. Até que alguém me disse que me orgulhasse desse Kriolu meu. Misturado assim. Sóncent ku Badiu ku Fogo ku Portugués ku Inglés… Irregular, sim, mas tão meu quanto a rota que ali me levou.
Hanami faz isso. Com imagens. Com silêncios. Com febres, com flores. Com o tempo certo.
Não há finais felizes no filme. Há um olhar para o horizonte, há nós mesmos decidirmos se o mar é prisão ou sonho ou oportunidade. Mas há possibilidade. Há reconciliação. Há uma flor. Mesmo que efémera.
O Fogo sob uma nova luz
Hanami será porventura o melhor filme caboverdiano que vi até hoje no grande ecrã, ou talvez aquele em que mais me revi. Não porque grite identidade. Mas porque a sussurra com firmeza. Porque não precisa de bandeiras para afirmar essa pertença. Porque Denise Fernandes entendeu que, ser de um lugar é mais do que nascer lá: é reconhecer-se nele. É sentir-se parte de uma comunidade. É permitir que nos molde, que nos emocione, que seja a nossa casa, mesmo à distância.
Na sala escura da Culturgest, vi em Hanami o Fogo sob uma luz nova e, ao mesmo tempo, familiar. Um Fogo de uma delicadeza que não imaginava possível, mas que rapidamente reconheci como a da minha avó fumando o canhotinho na soleira da porta ao nascer do sol, café forte e bolinhos de côco sobre a mesa, perguntando-me “Pedro, bô manxê dretu?”
E percebi que esse holofote era também meu, como o será da Denise Fernandes, cada qual de sua maneira. Percebi que esse caminho entre Lisboa e Chã das Caldeiras (ou até o percurso mais curto que Nana faz da costa do Fogo até Chã) não se mede em quilómetros, mas em persistência. Em amor. Ser caboverdiano, com todos os hífens, todos os hiatos, todos os dialectos, as ausências e as permanências, com todas as lágrimas — as minhas em cada avião de regresso, aquelas na estrada circular em que fiz o luto catártico ao meu pai, e as do meu pai, que Hanami subitamente me trouxe de volta –– como tantas coisas, é uma constante adaptação, um constante regresso.
Porque enquanto houver passarinhas a anunciar visita, haverá sempre quem regresse, de corpo inteiro ou só de nome, de saudade ou de silêncio. Um dia será a Nana, outro a Denise, outro, qualquer um de nós. A verdade é que a nossa nação nunca coube nos limites que lhe traçaram, nem nos crioulos que tentaram corrigir. E no entanto, ela resiste — em vozes entrecortadas, em olhos húmidos, em vinhas que florescem na escória. Hanami lembra-nos que a pertença não é linha reta nem destino fixo. É viagem que se faz entre ausências e uma papaeira queimada, entre cinza e memória.
E que o que nasce da cinza não é ruína: é raiz.
cortesia Hanami / O Som e a Fúria