A Amazónia paga um preço imensurável pelo seu ouro. Parte I
Parte I: Os meandros do garimpo ilegal nos filmes de Jorge Bodanzky e Sandro Kakabadze.
Vistas de cima, as feridas na floresta estendem-se por quilómetros. Estas feridas são frequentemente chamadas de cicatrizes, mas não o são, pois a lesão não está sarada nem existe qualquer processo de regeneração em curso. As superfícies abertas para extração de ouro no solo da Amazónia são feridas expostas que sangram lama, vertem água sem vida, contaminada por metais tóxicos que alimentam correntes destrutivas. Toda esta devastação é causada pelos “comedores de terra”, nome dado pelo líder Yanomami, Davi Kopenawa, aos garimpeiros que procuram ouro e minérios.
Estas grandes feridas estão registadas em vários filmes que abordam a atividade garimpeira na Amazónia. Nas sequências aéreas destas obras, vê-se a extensão impressionante das áreas de floresta destruídas pelas crateras escavadas, tornando evidente a dimensão geográfica do problema. A estas imagens somam-se as da degradação dos rios, onde barrancos são abertos nas margens, e balsas - embarcações flutuantes enfileiradas às dezenas - dragam os leitos, demonstrando que a devastação não se circunscreve às zonas florestais e abrange igualmente as bacias hidrográficas amazónicas.
Os documentários Amazônia, A Nova Minamata (2022), do veterano Jorge Bodanzky, e À Margem do Ouro (2022), do realizador georgiano radicado no Brasil Sandro Kakabadze, atualizam a problemática do garimpo ilegal, que, nos últimos anos, tem avançado clandestinamente sobre os territórios indígenas, áreas onde a extração de ouro é proibida.
O filme de Bodanzky é o que mais expõe os conflitos sociais gerados pela atividade clandestina e ecoa a urgência do seu combate. O documentário revela como o garimpo afeta, de forma catastrófica, o meio ambiente e a saúde dos povos originários através da contaminação por mercúrio - metal usado ilegalmente pelos garimpeiros na extração do ouro.
Amazônia, A Nova Minamata aprofunda a compreensão sobre como a “Doença de Minamata”, síndrome neurológica causada pela intoxicação severa por mercúrio, transformado em metilmercúrio, afeta as comunidades Munduruku, situadas na bacia do Alto Tapajós, no Pará (PA).
O documentário investiga as causas do problema através de testemunhos de indígenas, garimpeiros, representantes das autoridades de saúde e dos órgãos de fiscalização.
O Inspetor da Polícia Federal brasileira, Gustavo Geiser, explica no filme que “o estrago que esse garimpo deixa é bastante difícil de reverter”. Geiser abre no seu computador as imagens que recolheu para documentar estes danos nos rios e descreve que, na região do Tapajós, são poucos os rios que ainda se mantêm limpos: “Tudo isso aqui são cicatrizes de garimpo. Em apenas um ano, os garimpeiros conseguiram destruir um rio inteiro. Desde as cabeceiras até à foz, deixou de ser um rio para ser uma sequência de cavas de lama. Essa água já não serve para consumo humano; era uma água pura, agora é lama pura. E o que poderia ter aí de peixe, enfim, de alimento para os indígenas, já era também. Esse é o tipo de problema que eu considero mais grave.”
O neurocirurgião paraense, Erik Jennings, que trabalha para a Secretaria Especial de Saúde Indígena de Santarém, na região do Tapajós, investiga os níveis de intoxicação do povo Munduruku. Em Amazônia, A Nova Minamata, Jennings explica como os rios, em vez de serem uma fonte de vida, são uma ameaça para a saúde das populações: “Quase todos os rios formadores do Tapajós são rios de lama, hoje. Basicamente esgotos de lama do garimpo. Ora, essa lama tem chumbo, magnésio, mercúrio, metais pesados que podem causar doenças para o ser humano”.
O realizador Sandro Kakabadze percorreu estes rios, onde a mineração ilegal próspera, e captou o vai e vem da vida fluvial, com barcos carregando garimpeiros e equipamentos. Com a sua câmara registou as clareiras abertas nas margens, entrou nas balsas e observou de perto o trabalho árduo dos homens que atuam tanto no meio do rio como em terra firme, no interior da floresta. À Margem do Ouro foca exclusivamente o universo da mão-de-obra do garimpo, destacando a sua organização informal e revelando como muitos indivíduos se envolvem nesta atividade, apesar dos riscos que enfrentam.
As abordagens dos dois documentários são complementares e compõem um quadro realista, crítico e necessário sobre este problema pan-amazónico, que é um dos principais vetores de destruição da vida no bioma. Segundo dados do MapBiomas, uma iniciativa do Observatório do Clima, em colaboração com várias instituições, para mapear a cobertura e uso da terra no Brasil, a Amazónia brasileira concentrava, em setembro de 2023, mais de 90% do garimpo existente no Brasil.
A cadeia de exploração do ouro no século XXI segue a lógica colonial e atualiza o imaginário da Amazónia como um imenso Eldorado – um reservatório de riquezas infinitas a serem exploradas.
Garimpeiros buscam a fortuna no lodaçal do ouro.
Em À Margem do Ouro, Sandro Kakabadze recorre à linguagem do cinema direto para captar momentos de vidas que coexistem numa organização social marcada pela informalidade, pelo caos e pela violência. O documentário transita por diversos espaços que revelam como a extração do ouro se desdobra em diferentes modalidades. Algumas práticas mantêm vestígios artesanais – nas quais os garimpeiros utilizam bateias para peneirar a terra ou escavam poços nas profundezas da floresta – enquanto outras envolvem operações mecanizadas, equipadas com retroescavadoras capazes de desmatar vastas áreas de florestas e remover grandes quantidades de solo, abrindo feridas profundas.
Sandro Kakabadze passou oito semanas numa pequena vila nas margens do rio Tapajós: Penedo, uma corrutela, termo usado para descrever uma pequena povoação que surge e se sustenta pela atividade garimpeira. Quando Kakabadze aproxima a câmara dos estabelecimentos comerciais ou do porto fluvial torna-se evidente para quem e porquê existe Penedo: um vilarejo de uma única rua de terra batida, onde a vida social e comercial é, sobretudo, o ponto de apoio e aprovisionamento para aqueles que trabalham nas várias lavras do garimpo, seja na floresta ou nos rios.
O retrato de Penedo que o realizador constrói no seu filme entrelaça garimpeiros, comerciantes, professoras, farmacêuticas, trabalhadoras sexuais, pilotos de aviação, entre outros personagens atuantes num microcosmo comunitário gerado pela atividade predatória.
Na sinopse de À Margem do Ouro, somos informados de que Penedo é um lugar onde “o clima é tenso em função do ouro e dos conflitos sociais e ambientais que envolvem a atividade, na maioria das vezes ilegal, com diversas violências já completamente banalizadas”. Numa das cenas mais impactantes do documentário - que, em geral, deixa a violência fora-de-campo, apesar do guião a integrar na narrativa, mas não como matéria imagética – vemos um grupo de pessoas reunido à beira do rio, a observar a chegada de um barco que transporta o corpo de um homem, assassinado com um corte na garanta. Agentes policiais recolhem o corpo, envolto numa rede, e atiram-no, sem cerimónia, para a caixa aberta da carrinha da polícia. Final de má fortuna numa trajetória que, muito provavelmente, começou em busca de riqueza.
A maioria dos garimpeiros são homens jovens, oriundos de classes pobres e marginalizadas, atraídos pela promessa de conseguir muito dinheiro. Contudo, muitos acabam reféns de um ciclo de miséria, exploração laboral e exclusão social. Em Amazônia, a Nova Minamata? um garimpeiro veterano diz “que é preciso ser muito guerreiro; a gente trabalha muito. O trabalho não é bom, bom é o ouro. O ouro é que é o negócio”. O brilho do ouro obscurece e move toda uma cadeia, cuja base assenta na mão-de-obra precarizada.
Alguns dos mais jovens veem o garimpo como uma ocupação transitória na sua vida, alimentando a esperança de que este seja um caminho para a ascensão social, enquanto outros encaram a atividade como uma profissão, um meio de subsistência como qualquer outro. O filme À Margem do Ouro registou, numa balsa instalada num rio, uma conversa entre dois irmãos que simbolicamente ilustra estas visões díspares: um deles, ao afirmar que “não tem estudo”, confessa sentir-se obrigado a fazer certas coisas para sustentar a família, mas o seu objetivo é formar-se e especializar-se numa área para mudar de vida. O outro irmão contrapõe, dizendo que vêm de uma família de garimpeiros, desde a mãe até aos tios: “Está no sangue estar no garimpo.”
No documentário de Bodanzky, o dono de um garimpo, Carlos União, partilha esta visão tradicional da atividade, encarando-a como um negócio de família. Operando na região do rio Crepori, um afluente do rio Tapajós, União explica que foi o seu pai quem começou a trabalhar nesta área. Segundo ele, o pai “veio do Nordeste com aquela premissa de enriquecer, de ter prosperidade na vida.” União recorda que, na época do seu pai, não havia escavadoras, o que tornava impossível explorar o ouro que agora extraem a 14 metros de profundidade. Ele descreve o processo: “A escavadora retira o cascalho, que é passado na caixa, onde se procura o ouro. É essa a luta diária, a luta do garimpeiro!”
O ouro e a vida pesam-se na mesma balança.
A mão-de-obra do garimpo na Amazónia também tem que fazer frente a diferentes problemas de saúde. É significativo que Kakabadze tenha destacado a malária no seu filme, uma vez que esta é uma das doenças mais comuns nas áreas de extração, localizadas em regiões de floresta e em ambientes com água parada que favorecem a proliferação do mosquito transmissor.
Não parecendo existir um Centro de Saúde em Penedo, Kakabadze percebeu a importância da farmácia para os garimpeiros. É aí que vão para realizar análises e procurar tratamento. Depois de passar pela farmácia, Lucas Amorim debate-se, sozinho, com os sintomas da malária, tremendo de febre, deitado numa rede pendurada ao ar livre, sob a varanda de uma casa, à beira do rio. Quando recupera um pouco, o rapaz conta que já trabalhou noutros garimpos, inclusive em terras indígenas, onde chegou a ganhar “ouro de quilo”. Com satisfação, recorda que, graças ao dinheiro que juntou, conseguiu formar uma família.
Outras duas doenças frequentes, também transmitidas por mosquitos, são a febre-amarela e a leishmaniose - uma doença infeciosa e parasitária que tem vindo a propagar-se na região Norte do Brasil, em parte devido à expansão da atividades garimpeira. A leishmaniose é particularmente preocupante, pois não há vacina preventiva, tornando a sua prevenção muito difícil para a população. Outras patologias que fazem parte do universo garimpeiro são de natureza respiratória, causadas pela exposição desprotegida a produtos químicos, como o mercúrio. As hepatites, especialmente Hepatite B e C, a Sida e outra infeções sexualmente transmissíveis também são comuns, disseminando-se facilmente não só entre a mão-de-obra do garimpo, mas também entre as populações circundantes.
O relatório Terra rasgada: Como avança o garimpo na Amazônia brasileira (2023) denúncia que a mão-de-obra desta atividade está exposta a ambientes insalubres, inseguros e encontra-se em permanente risco de vida, “com condições degradantes, jornadas exaustivas e exposição a diversos riscos à saúde e à segurança” (Pág. 20). Este estudo foi lançado, em março de 2023, pela Aliança em Defesa dos Territórios, articulação política dos povos Yanomami, Munduruku e Mẽbêngôkre (Kayapó), formalizada em 2022. Associações representativas destes povos originários, a Teia Documenta e o Instituto Socioambiental (ISA) colaboraram na publicação do relatório com o fim de explicar os mecanismos que promovem o avanço da cadeia de extração, do comércio do ouro e listar uma série de medidas para combater a sua ilegalidade.
Embora À Margem do Ouro se foque sobretudo nas vivências dos homens garimpeiros, o realizador fez questão de incluir no seu filme as mulheres que partilham este universo. Uma delas é a cozinheira de um acampamento no meio da floresta. O seu relato é particularmente revelador da luta que muitas mulheres enfrentam. Ela explica que aceitou aquele trabalho para pagar as despesas da Faculdade de Medicina da filha: “Assim que ela entrou na Faculdade, eu vim para o garimpo para dar condições para ela estudar, só estudar mesmo, sem precisar trabalhar. Daqui a três anos ela está formada. Vou trabalhar até lá, para ver se ela se forma. Ela quer ser cardiologista. Sou mãe e pai dela.”
A cozinheira, mãe de mais três filhos, também queria ter estudado, mas teve que abandonar a sua formação para ajudar a sua própria mãe, pois o pai também não estava presente. Ela acrescenta que quando chegou no garimpo, enfrentou dificuldades devido à falta de respeito dos homens: “Eles pensavam que toda a mulher que vinha para cozinhar era para ser garota de programa”.
Noutro momento, À Margem do Ouro também oferece uma perspetiva sobre algumas das mulheres que se dedicam ao trabalho sexual em Penedo, ainda que através de breves sequências que evitam uma problematização mais profunda. Os bordéis e bares são parte integrante do tecido urbano do vilarejo, sendo espaços inevitáveis em qualquer cenário de garimpo amazónico.
Cada local possui as suas especificidades e modos de funcionamento, mas a situação agrava-se quando as condições laborais destas mulheres atingem níveis de vulnerabilidade crítica, o que constitui um problema pan-amazónico.
O relatório Terra Rasgada denúncia a situação das mulheres venezuelanas recém-chegadas ao Brasil: “No contexto da crise migratória atual, traficantes de pessoas recrutam jovens para trabalhar em garimpos, oferecendo pagamentos em ouro por programa ou altos salários como cozinheiras nos acampamentos. Uma vez nos grotões, essas mulheres são obrigadas a trabalhar para pagar seus gastos logísticos, e então se veem presas em um círculo vicioso no qual não conseguem sequer comprar a passagem de volta para casa, devido aos altos gastos nas estruturas das currutelas, como medicamentos para infecções, ‘aluguel’ do quarto, alimentação e produtos de higiene” (Pág.21).
Um método semelhante é aplicado a determinada mão-de-obra masculina, sobretudo àquela recrutada informalmente em diversas regiões do Brasil. Numa das cenas de À Margem do Ouro, um trabalhador relata a proveniência dos seus companheiros - da Bahia, do Piauí, do Amazonas - enquanto ele próprio menciona ser oriundo do Paraná, no sul do país. Através de intermediários ligados a redes de mineração clandestina, grande parte destes homens são transportados para zonas de extração em condições precárias e sem garantias laborais, num sistema que pode ser considerado como crime de tráfico de pessoas. Segundo informações detalhadas no relatório Terra Rasgada, nas explorações ilegais trabalham também crianças (indígenas e não-indígenas) em condições análogas à escravidão.
Escapar a esta realidade é igualmente complexo. O mesmo relatório revela que, quando alguns trabalhadores tentam abandonar o garimpo, é-lhes exigido “um pagamento em gramas de ouro ao empregador” (Pág.20). Trata-se de servidão por dívida, uma prática comum no trabalho escravo moderno, na qual a vítima é obrigada a continuar a prestar serviço sob o pretexto de saldar dívidas, muitas vezes, impostas de forma abusiva, impossíveis de liquidar, o que perpetua o ciclo de exploração.
A ausência de uma rede de fiscalização eficaz às práticas do garimpo ilegal permite que a informalidade prolifere e, em alguns casos, se converta em práxis criminosas. Embora o atual Governo Federal tenha intensificado as ações de combate ao garimpo ilegal, desde o início do seu mandato em janeiro de 2023, os desafios permanecem significativos.
A teia de interesses que suporta a exploração do ouro.
Kakabadze estrutura o seu documentário centrando-se no universo pessoal dos trabalhadores das lavras, sem contemplar a macroestrutura que enreda estas vidas. A narrativa segue o desafio particular do garimpeiro, retratando-o como se este atuasse de forma independente - uma ideia que muitos procuram preservar para legitimar a atividade como autónoma. Conforme destaca o relatório Terra Rasgada: “não faltam esforços para manter a noção de garimpo atrelada à de uma iniciativa individual, tradicional e de baixo impacto — consagrada no imaginário nacional pelo símbolo do trabalhador debruçado sobre sua bateia. Não é trivial a incongruência entre essa imagem e os avanços na compreensão do que é a exploração garimpeira” (Pág.9).
Dificilmente se podem desconectar as vivências dos garimpeiros, personagens do filme À Margem do Ouro, de um sistema dominado por forças económicas e interesses poderosos e complexos. A extração do ouro é um setor fortemente impulsionado pelo poder político, nas suas várias esferas - municipal, estadual e federal. A cadeia de destruição permanece alimentada por interesses que corrompem as autoridades responsáveis por proteger a Amazónia e as suas populações.
Nos municípios, a atuação direta de prefeitos (presidentes da câmaras municipais) e vereadores vinculados a interesses dos mineradores legitima e promove o avanço do garimpo. Sob o pretexto do desenvolvimento económico, estes responsáveis autárquicos apoiam a abertura de novas áreas de extração em áreas interditadas, a flexibilização da classificação de zonas protegidas e o enfraquecimento da fiscalização ambiental, acelerando a degradação contínua da floresta.
Penedo, retratada no filme de Kakabadze, é apenas uma entre as muitas corrutelas que fazem parte da região de Itaituba, município com pouco mais de 123 mil habitantes, situado nas margens do rio Tapajós. Conhecida como a “capital da maior província aurífera do mundo e o maior polo de lavagem de ouro ilegal do país” como reforçam os dados que constam no relatório Terra Rasgada, Itaituba é também chamada como ‘Cidade Pepita’. O município lidera o raking das áreas com maior exploração de ouro, seguido de Jacareacanga, o segundo município mais afetado pela expansão do garimpo. Mapbiomas contabilizou em setembro 2023, 71 mil hectares ocupados pela atividade na região de Itaituba, representando 16% da área minerada do país, e 20 mil hectares na de Jacareacanga.
Inevitavelmente, Amazônia, A Nova Minamata integra Itaituba na sua narrativa como o mais importante dos núcleos urbanos que surgiram e cresceram economicamente influenciados pelas frentes garimpeiras. As sequências de imagens das ruas desta localidade dialogam com as do vilarejo Penedo, mas numa escala ampliada. Em Itaituba, os estabelecimentos comerciais ligados à atividade garimpeira, como hotéis e lojas de compra de ouro, compõe o cenário urbano que o filme mostra. Nesta região, tudo existe em função do garimpo, sendo a cidade o grande centro de abastecimento de máquinas, combustíveis, motores, peças, etc.
Em 2022, o cineasta e escritor João Moreira Salles também passou pela região enquanto pesquisava para o livro Arrabalde. Em busca da Amazónia. Sobre Itaituba destacou que “comparando com a média dos municípios da região Norte, Itaituba tem índices piores de desmatamento recente, de violência contra indígenas e de mortalidade por doenças infeciosas. Menos de 2% da população urbana tem acesso à rede de esgoto. Essas mazelas estão ligadas não à pobreza, mas ao tipo de prosperidade que se buscou ali. Itaituba é um dos principais centros econômicos do oeste paraense, porém a riqueza não se traduz em melhoria do entorno, em conquistas cívicas (…) nada disto destoa do padrão encontrado nos ajuntamentos urbanos mais pobres do Norte. A riqueza, quando existe, é privada, e a devastação, pública” (SALLES. Pág.96).
Valmir Climaco de Aguiar é o prefeito de Itaituba desde 2017. O seu mandato terminará em dezembro de 2024. Numa reportagem da revista Veja de junho deste ano, o autarca é descrito como “empresário, madeireiro, fazendeiro e dono de garimpo”. Climaco de Aguiar orgulha-se de ter concedido mais de quatrocentas licenças para garimpeiros durante o seu governo, numa sanha de tornar legal o que é, por várias circunstâncias, ilegal. Segundo a mesma reportagem, o crescimento explosivo da atividade garimpeira no município, é acompanhada por graves suspeitas de irregularidades, atualmente sob investigação.
Na esfera federal, o lobby minerador – que abrange representantes tanto do pequeno garimpo e da mineração industrial, quanto das grandes empresas de comercialização do ouro – exerce uma influência significativa no Congresso e Senado nacional, tendo o período de 2019 a 2022, sob o governo da extrema-direita bolsonarista, sido uma etapa particularmente favorável aos seus interesses. O Projeto de Lei 191/2020 é um exemplo emblemático dessa estratégia, ao propor a abertura das terras indígenas à exploração mineira, promovendo retrocessos legais em relação à proteção ambiental e aos direitos dos povos indígenas.
Embora esta proposta não tenha sido oficialmente aprovada, contribuiu para criar um ambiente de impunidade, incentivando as invasões e a exploração descontrolada de territórios indígenas. Em março de 2023, o atual Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, formalizou o pedido de retirada deste Projeto de Lei da tramitação parlamentar.
Para além da força dos interesses políticos e da “cultura do ilegalismo” - termo utilizado por Caetano Scannavinno, coordenador da ONG Saúde e Alegria, que atua na Amazónia - a exploração garimpeira adquiriu uma nova camada de complexidade ao associar-se a organizações criminosas envolvidas no tráfico de drogas.
O narcogarimpo, como ficou conhecida esta associação, ganhou visibilidade com a escalada dos conflitos promovidos por fações do crime organizado no Território Indígena (TI) Yanomami. O relatório Terra Rasgada menciona que “o garimpo é particularmente vantajoso para o tráfico de drogas por conta do esquema logístico que compõe a espinha dorsal da atividade (…) além da ‘segurança privada’, [estas fações] também atuam no fornecimento e transporte de insumos para os garimpos localizados no rio Uraricoera, [TI Yanomami] no controle de prostíbulos e cantinas, assim como na exploração mineral em balsas de ferro” (Pág.18).
A infraestrutura exigida pelo garimpo, que inclui rotas de transporte aéreo e fluvial, é aproveitada pelas fações criminosas para movimentações de drogas e armas, além de facilitar a lavagem de dinheiro através do comércio de ouro. Esta ligação é também uma plataforma de expansão territorial e controle social em regiões estratégicas da Amazónia. Associados, traficantes e garimpeiros vão tecendo relações económicas e sociais que envolvem a população local (incluindo indígenas), oferecendo-lhes proteção, empregos e, em alguns casos, drogas.
O governo bolsonarista garantiu ainda o que viria a tornar-se um suporte crucial para o desenvolvimento deste tipo associação criminosa: o acesso à rede de internet via satélite Starlink, da SpaceX, propriedade do multimilionário Elon Musk. Esta conectividade permite fornecer internet de alta velocidade a zonas remotas da Amazónia, onde as redes tradicionais eram inexistentes ou funcionavam com grandes limitações, o que representou uma mudança significativa na logística do garimpo. Com este novo recurso, os grupos envolvidos conseguem coordenar de modo mais eficiente operações como o transporte de equipamentos, a movimentação de mão-de-obra, a venda do ouro e até mesmo receber informações sobre possíveis operações de fiscalização.
Toda esta cadeia predatória culmina na venda do ouro amazónico para grandes empresas que o introduzem no mercado internacional, alimentando um dos negócios mais rentáveis da atualidade, ao mesmo tempo que os crimes ambientais e sociais praticados pelo garimpo ilegal deixam um rastro de destruição nos territórios amazónicos, ameaçando o frágil equilíbrio do bioma.
Na segunda parte deste texto, aprofundaremos esta problemática seguindo a abordagem proporcionada pelo filme Amazônia, A Nova Minamata de Jorge Bodanzky e apresentando novas perspetivas trazidas pelo documentário Escute: A Terra Foi Rasgada (2023), da dupla de realizadores Cassandra Mello e Fred Rahal. Em ambos filmes expõem-se a luta dos povos originários contra o garimpo ilegal, pela defesa da preservação da floresta, dos rios, da sua vida e a da vida dos seres não-humanos que coabitam na Amazónia brasileira.