Paulo Faria: a luta continua (cinco excertos)

Paulo Faria: a luta continua (cinco excertos) Escrevi o meu romance sobre a guerra para desapossar o meu pai do exclusivo da narrativa bélica, para o destronar, para escrever o livro que ele próprio não foi capaz de escrever. Para reescrever as histórias de guerra dele, para as extirpar da mentira posterior. Para o enobrecer. Fi-lo à custa dos outros veteranos, que viram as suas narrativas reformuladas, subordinadas à infelicidade do meu pai, por mim usurpada. Escrevi o meu romance para, com o engodo da guerra colonial, contar aos veteranos uma outra guerra, a minha. Quem vai à procura da guerra tem já uma guerra dentro de si.

24.04.2020 | por Paulo Faria

Dias rotos

Dias rotos O meu maior luxo neste tempo foi escrever este texto e ontem à uma da manhã sentar-me durante meia hora, a revisitar as gravações que fiz no pátio interior do hotel Barbas, a 80 Kms da fronteira com a Mauritânia, no Sahara Ocidental, enquanto uma televisão fazia o relato do jogo da bola em árabe, sempre tão enfáticos nos seus relatos, e um grupo de senegaleses chegava em caravana para comer um thiebou djenne feito pelo cozinheiro do hotel, ele também

22.04.2020 | por Ricardo Falcão

Covil e chuva é a gente da nossa terra

Covil e chuva é a gente da nossa terra O barco custa a amarrar. Fico sem sonhos nem energias vivas. Ando por aqui a inventar tarefas e vou procurando trabalho online com outros milhões, agora. O futuro chegou mesmo depressa demais e nada me preparou a mim nem a ninguém para tudo isto. Condições ou doenças mentais, fábricas de comunicação, teletrabalho, hospitais de campanha, 15min de fama a enfermeiros portugueses, presidentes mediáticos, vazios de gente e ruído, concelhos fechados em si, lojas de vidro higiénico e empregados de luvas, filas para tirar senha para o supermercado, desinfetantes tantos quanto precisos e a estranha importância do papel higiénico. Tudo ao mais pequeno pormenor noticiado, como se a vida em si se transformasse num Hiatos e agora Home.

16.04.2020 | por Adin Manuel

Piratas das Caraíbas, a frota dos EUA ao largo da Venezuela

Piratas das Caraíbas, a frota dos EUA ao largo da Venezuela Nas águas quentes das Venezuela, lançaram âncora navios de guerra norte-americanos. Prontos para desmantelar a rota de cocaína que sai deste país para os EUA, via ilhas caribenhas. Os piratas ou cowboys do século XXI, como lhes chamou Nicolás Maduro, cercam de mansinho o regime venezuelano. Distraído, confinado e monotemático, o mundo quase nem deu por isso.

11.04.2020 | por Pedro Cardoso

O direito universal à respiração

O direito universal à respiração O processo foi mil vezes intentado. Podemos recitar de olhos fechados as principais acusações. Seja a destruição da biosfera, o resgate das mentes pela tecnociência, a desintegração das resistências, os reiterados ataques contra a razão, a crescente cretinice das mentalidades, ou a ascensão dos determinismos (genéticos, neural, biológico, ambiental), as ameaças à humanidade são cada vez mais existenciais.

09.04.2020 | por Achille Mbembe

Hoje em dia

Hoje em dia   Para esta travessia, deixo estas palavras como um farol aceso sobre cada dia que atravessarmos, cada um com o seu livro, a sua música, a sua recordação, a sua prece. Cultivemos o silêncio dos automóveis dos cafés das filas das repartições, das rodas de samba, dos grupos na praia e nas pistas de dança. Pois, para além do balanço entre a recessão económica e os mortos, juntos ou separados, precisamos deixar a Terra respirar.

29.03.2020 | por Rita Brás

Alto nível baixo: Sentados em dinamite

Alto nível baixo: Sentados em dinamite Os desenhos de Manoel Barbosa e o cinema de invenção brasileiro - são “altas” respostas a tempos “baixos”. Por isso, revisitar os anos quentes da contracultura através destas produções deve arrastar um sentido crítico. Na verdade, o AI-5 “ainda não terminou de acabar” no Brasil; a guerra colonial só recentemente é um tema de estudo e debate em Portugal; a contracultura estetizou-se; e a despolitização das subjetividades acomodou-se dentro da economia neoliberal e do mundo globalizado.

28.03.2020 | por Marta Mestre

Utopia: o futuro inscrito no presente

Utopia: o futuro inscrito no presente Para Bifo, existem muitos futuros contidos no presente, a Futurabilidade, poderá refletir-se no horizonte sob duas formas: uma é o simples desenrolar das tendências que operam no presente, o futuro provável (a distopia) que é assustador, outra é o futuro possível (utopia) que está inscrito no presente, sendo este plural e indeterminado, estando igualmente contido “fora da esfera da imaginação utópica, mas que somos incapazes de distinguir, de fazer emergir do nevoeiro e dos miasmas da condição actual”.

18.03.2020 | por Lana Almeida

Ele estendeu-me a mão e fui

Ele estendeu-me a mão e fui Contei-lhe este episódio já na cama, antes de adormecermos. Ele contou-me que também se perdeu da mãe em menino, o que eu tinha esquecido. Desejei ter-me perdido também, o que nunca me aconteceu. Mas pareceu-me uma imagem da liberdade: uma criança que consegue encontrar o caminho de volta, no meio dos vultos de uma Estocolmo escurecida, entre o tráfego da hora de ponta e a indiferença dos adultos.

12.02.2020 | por Djaimilia Pereira de Almeida

A Eterna Leveza do Anacronismo: os guardiães do consenso e o regime da cordialidade

A Eterna Leveza do Anacronismo: os guardiães do consenso e o regime da cordialidade A emergência de novos atores sociais, com destaque para os sujeitos racializados, cujas intervenções na sociedade portuguesa sempre existiram mas nunca foram reconhecidas pelas instâncias legitimadoras das narrativas culturais e historiográficas, constitui um fator decisivo na quebra da hegemonia lusotropical. Outro contributo narrativo e representacional é dado pela internacionalização da universidade, o incremento da mobilidade dos académicos portugueses e o crescente interesse de estrangeiros nos arquivos coloniais portugueses.

09.02.2020 | por Patrícia Martins Marcos, Inês Beleza Barreiros, Pedro Schacht Pereira e Rui Gomes Coelho

Ser apenas negra, feminista radical e gaga

Ser apenas negra, feminista radical e gaga cada vez mais fico com a sensação de que um dos desafios que a condição pós-colonial coloca a pessoas como eu é de sermos melhores europeus do que os próprios europeus, pois estes, por deixarem que sejam seus porta-vozes pessoas sem noção do importante legado intelectual e moral que a sua nacionalidade implica, abdicam dum projecto normativo que, apesar de tudo, tinha (e ainda tem) tudo para dar certo.

05.02.2020 | por Elísio Macamo

O primeiro ano do resto das nossas vidas

O primeiro ano do resto das nossas vidas Como documentarista, tenho o privilégio de poder voltar às minhas imagens, e agradecer o olhar que estas pessoas me lançaram, uma e outra vez. Ao longo dos filmes, dos depoimentos e das paisagens, estes sorrisos e estas histórias me acompanham como uma prova de fé.

06.01.2020 | por Rita Brás

Senhora Ontem

Senhora Ontem A cara dos nossos textos de ontem, a sua voz, é descabida, inepta, ridiculamente grave, esganiçada. Não importa o que se tem para dizer, aquilo que se quer tentar perceber, mas que apenas amanhã seremos justos com o que somos hoje — valentes e livres como nos sonhamos. Por isso é tantas vezes insuportável ler em voz alta ou regressar ao que se escreveu. A voz do ano passado (da semana passada; de anteontem) é burra ou amarga — e nós tão sublimadas, resolvidas, tão perenes agora.

02.01.2020 | por Djaimilia Pereira de Almeida

Enquanto houver racismo. Carta às esquerdas, por alguns dos seus

Enquanto houver racismo. Carta às esquerdas, por alguns dos seus Que todos estes acontecimentos do ano de 2019 confiram um novo impulso ao combate contra o racismo, eis o que desejamos e aquilo a que este texto vem, apelando-se nestas linhas ao empenhamento anti-racista de quem se filia na mesma tradição política que nós, a das esquerdas.

26.12.2019 | por vários

3ª Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra – Anozero’19 A Terceira Margem

3ª Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra – Anozero’19  A Terceira Margem Há algo de poético numa cidade entrecortada por um rio, como o Mondego fluindo imperturbável por entre as margens, a partir das quais se esparrama Coimbra. O rio é a imagem da continuidade e da impermanência, o seu tempo tangencia o infinito. As nossas existências, fugazes como as gentes que o atravessam, as pontes que o cortam e as águas que por lá passam, são o sumo da descontinuidade; o nosso tempo é ínfimo se comparado com o do rio.

19.12.2019 | por Lígia Afonso, Agnaldo Farias e Nuno de Brito Rocha

Quase-manifesto ante o irreparável (2019)

Quase-manifesto ante o irreparável (2019) O IRREPARÁVEL, por fim, e sobretudo, aquele que funciona como estruturante do mundo-como-É, assente na irremediável e incompensável operação da usurpação/colonização, que faz do trauma o modo quase unívoco da individuação, assente, no limite, numa proliferação de variadas versões de uma mesma cisão, que separa sujeitos e sujeitades, pervertendo o ciclo da dádiva

13.12.2019 | por Fernanda Eugénio

Vida e morte de uma Baleia-Minke no interior do Pará e outras histórias da Amazônia

Vida e morte de uma Baleia-Minke no interior do Pará e outras histórias da Amazônia Durante uma de suas mais recentes estadias junto aos indígenas Wari’, em 2014, Aparecida Vilaça conta que ficou impressionada com aquilo que então considerava ser uma novidade: viu diversas fotografias de seus amigos e parentes Wari’ que preenchiam na parede lateral de um quarto. Era o quarto de Paletó, seu pai indígena, de quem Aparecida foi se aproximando e criando essa relação de parentesco a partir de 1986.

07.12.2019 | por Fábio Zuker

Topografias rurais

Topografias rurais  Estas obras, em conjunto, criam uma rede de diferentes abordagens do rural, ao mesmo tempo que chamam a atenção para preocupações ecológicas. Estas obras constituem poderosos significantes num discurso global sobre o regionalismo, constituindo, igualmente, um apelo (poético) à ação no âmbito do nosso ambiente natural.

04.12.2019 | por vários

Marianne Keating

Marianne Keating Keating acumula vestígios da presença irlandesa na Jamaica negligenciados pela historiografia ou desconsiderados pela memória coletiva, inserindo novas vozes na instância arquivística, até agora silenciosas. Ao fazer isto, a artista critica as construções de nacionalidade, colonialismo e identidade dominantes no Ocidente, produzindo uma alternativa às grandes narrativas que moldam a visão do mundo.

18.11.2019 | por Miguel Amado

Privilégio Negro

Privilégio Negro Poderia ter-se referido ao bronze, que é o mais comum, aquele encostar de braços para comparação, enquanto se anuncia que se vai ficar “da tua cor” ou “mais preta que tu”. Sem contextualização imediata, porém, certas frases podem e irão gerar desconforto. Por vezes mesmo se contextualizadas. Ela poderia, por exemplo, ter referido que, quando alguém nos anuncia e define ora em prol da nossa naturalidade ora da nossa nacionalidade, conforme precisa, isso é privilégio negro.

12.11.2019 | por Gisela Casimiro