Espero que esta carta te encontre de boa saúde, a gozar a juventude em toda a sua plenitude, que nunca madures e que continues sempre cheio de ideais nobres de uma mudança que valha o seu nome, pois, meu caro, da forma como isto anda nesta banda, esta demanda de mudar o mundo está cada vez mais a ir para o fundo e eu acho, meu caro revolucionário que, neste caso, ao contrário do que proclamamos, o problema somos nós. Pois…
05.03.2021 | por Marinho de Pina
A construção de cidade exige a confluência em fogueiras que agregam os adversários dispostos a conversar e a uma experiência do tempo sem tempo em que eu procuro acompanhar as razões do que se me afigura como estranho, inflexível ou irracional. As cidades fazem-se de paciência e de acumulação no transcorrer indiferente dos séculos. É nas dinâmicas tensionais da coabitação e no labor anónimo do quotidiano, no quase-nada em que se negociam ganhos e perdas, reputações e amizade, dívidas e gratidão para o resto da vida, a distração prosaica que engendra a saúde de uma cidade que nunca é a mesma. Onde a fúria, os gestos de rutura, o embate frontal e as clivagens têm lugar nobre e merecem atenção.
04.03.2021 | por João Sousa Cardoso
A descolonização política já aconteceu. Falta cumprir-se a difícil descolonização de mentalidades.
Ela está em marcha há anos. É um processo, como todas as mudanças, com fases de avanços e recuos, adormecimentos e efervescências, durante muitos anos remetida para circuitos académicos, educacionais ou culturais, e agora também presente no espaço público como um todo.
28.02.2021 | por Vítor Belanciano
Entendamo-nos: se quisermos olhar para os casos de Caupers e Mamadou sob a perspetiva da liberdade de expressão, teremos de concluir que são o exato contrário um do outro. A Mamadou querem retirar não só a fala como o direito de existir neste país, condenando-o à morte simbólica do degredo por desafiar a ideia de que as minorias devem contentar-se com ser toleradas e invisíveis; a Caupers querem ver reconhecida a liberdade de poder ser simultaneamente presidente do tribunal que interpreta a Constituição e defender, contra essa mesma Constituição, que a maioria tem e deve ter domínio sobre as minorias - e nem sequer ser por isso criticado ou interpelado.
24.02.2021 | por Fernanda Câncio
Nas últimas semanas, tem havido uma escalada das tensões políticas em Portugal, na sequência de manifestações públicas de organizações de extrema-direita que também ameaçaram ativistas. A 11 de agosto, Mamadou Ba e outras nove pessoas (ativistas anti-racistas, antifascistas e LGBT deputadas e líderes sindicais) receberam um email enviado por um movimento neonazi que os ameaçava, e às suas famílias, que, caso não abandonassem o país em 48 horas, haveria consequências.
17.02.2021 | por vários
Viver o isolamento social e o decretado estado de emergência num espaço aberto e rural, acompanhando a agitação diária da infância, contradiz, e quase que insulta, o filme de terror sem autor nem nacionalidade, a que assistimos sete dias por semana, 24 horas por dia. Partilhar os dias com uma menina de três anos — feliz por ter os pais só para si e com as alegrias próprias à idade — torna esta experiência bela, onírica e plena de contradições. Respiremos, pois, os que ainda podem, durante o filme.
14.02.2021 | por Marta Lança
Os pormenores são repugnantes, mas não consigo deixar de sentir um júbilo secreto por ter deparado com mais uma história exemplar do colonialismo, no sentido mais lato da palavra «colonialismo». O colonialismo é fazermos a alguém aquilo que entendemos como «bem», mas que essa pessoa sente como «mal», para que essa pessoa nos possa servir melhor. Reformulo: o colonialismo é instrumentalizarmos o outro, fazendo-lhe bem somente na medida em que esse benefício nos possa beneficiar a nós. Resta dizer que o carácter exemplar de uma história escapa quase sempre ao seu narrador.
16.01.2021 | por Paulo Faria
Também nas nossas terras, onde sofremos a miséria, a fome, a escravidão, as nossas riquezas são exploradas pelos colonialistas e pelos “trusts” imperialistas. Apesar da bárbara repressão colonialista, conseguimos formar o PARTIDO AFRICANO DA INDEPENDÊNCIA, que é o único partido que não faz distinção de raças, origens, etc. O PARTIDO AFRICANO DA INDEPENDÊNCIA procura a UNIDADE dos nossos povos para a LUTA contra o colonialismo e contra o imperialismo.
15.01.2021 | por Amílcar Cabral
E as mulheres foram fundamentais para desenhar novas formas de convivência e possibilidades de viver em sociedade, articulando formas de compreender as dinâmicas do escravismo. Aproveitando seu trânsito dentro das casas-grandes e senzalas, igrejas e ruas, para transmitir ideias revolucionárias para fora das estruturas pensantes escravocratas, elas foram fundamentais para a criação de planos de sobrevivência, rotas de fuga e a construção, por grupos de diferentes etnias, de espaços afastados das casas-grandes e senzalas: os terreiros e os quilombos, lugares que reelaboraram a força subjetiva africana de organização e de humanização desses indivíduos.
20.12.2020 | por Katiúscia Ribeiro
O que verdadeiramente importa é como sair do beco da distração manipulatória que quer condenar os sujeitos racializados a permanecerem no lugar e com o peso da refutação/explicação de uma violência que se abate sobre si, perante a negação do racismo onde se encurralou a maioria da sociedade e das instituições. O que mais mobiliza os sujeitos racializados é a disputa pela conquista da sua capacidade em constituir-se numa instância de proposta política alternativa à ordem cultural racista vigente. Uma proposta de rutura com o status quo que tudo faz para manter o tabu sobre o racismo. Identificar, nomear e combater o racismo estrutural. É isto que irrita todos quantos não se conseguem desfiliar da herança ideológica colonial, racista machista e assassina.
20.12.2020 | por Mamadou Ba
Embora não seja uma obra concebida para agradar um grande público é, no entanto, uma sucessão de oferendas, sobretudo no que se refere ao amor que tem pela família, à admiração que cultiva por alguns amigos ou sua memória, ao carinho que sente pelas terras por onde andou e que lhe deram um olhar maior sobre o mundo, suas gentes e diferenças. Trata-se de um livro de pormenores e lembranças, de luta e exposição só possíveis de transmitir de forma tão forte e incisiva pela escrita em primeira pessoa.
05.11.2020 | por Dina Salústio
Vimos, em nossas noites confinadas, os satélites de Elon Musk substituir as estrelas, assim como a caça de Pokémon substituiu a caça de borboletas extintas.
Vimos durante a noite nosso apartamento, que nos havia sido vendido como um refúgio, se fechar sobre nós como uma armadilha.
Vimos a metrópole, uma vez desaparecida como o teatro de nossas distrações, revelar-se como um espaço panóptico de controle policial.
Vimos em toda a sua nudez a estreita rede de dependências da qual nossas vidas estão suspensas. Vimos ao que nossas vidas estão sujeitas e por que estamos sujeitados.
Temos visto, em sua suspensão, a vida social como um imenso acúmulo de limitações aberrantes.
Não vimos Cannes, Roland Garros ou o Tour de France; e isso foi bom.
30.10.2020 | por Julien Coupat e vários
O conjunto dos textos do Comitê Invisível torna visível linhas distintas de percepção do estado de coisas e das lutas por sua transformação: i) a análise de conjuntura; ii) a análise tática e estratégica; iii) a crítica à esquerda; iv) a análise dos modos de vida.
O vigor e a potência de seus textos não deixam de apresentar problemas diversos: a arrogância de suas críticas; a concentração em lutas de caráter metropolitano; a ausência de explicações consistentes sobre como se vai destituir tudo; o eurocentrismo de seus conceitos e métodos; a adoção de uma única perspectiva para interpretar e alimentar as lutas.
26.10.2020 | por immanens
Europa, queria começar por enviar-te cumprimentos, mas vais ter de perdoar-me, porque neste momento estou em tormentos cujo comprimento é imenso; tormentos tão velhos como este lamento que me risca o peito e me deixa neste leito, desfeito, em trejeito de dores lancinantes que enlaçam as partes que lançam ares salutares nestes esgares que mostram os meus desaires. Pois tu, tu tudo fazes para que tu e a África não sejam pares. Nunca serão comadres, Europa, enquanto desejares que a África continue à tua sombra… sabes…
26.10.2020 | por Marinho de Pina
Estes textos de Sankara são publicados num momento em que, e não por acaso, no continente africano, ecoam vozes jovens e renovadoras de um movimento pan-africanista, quiçá enterrado quer com o desaparecimento físico, quer com o afastamento da cena política de algumas das últimas figuras representativas dessa corrente política outrora libertadora. São vozes que clamam por uma África livre do assalto neocolonial a que está cada vez mais, e claramente, submetida neste início do século XXI.
19.10.2020 | por Jean-Michael Mabeko-Tali
O tio Paulo Bano Bajanca tinha-me ensinado para ficar desconfiado quando os tugas me mandam ficar em casa, ele disse assim: “Sobrinho!, fica desconfiado quando os tugas te mandam ficar em casa e te dizem para não sair, porque, de repente, quando te mandam sair, já nem a tua casa te pertence. Foi o que fizeram na Guiné.” Eu, às vezes, pensava que o tio Paulo Bano exagerava, mas descobri que não. Toda a história dos tugas da Europa é desse tipo, tios que matam sobrinhos para tomar o poder, irmão que mata a irmã, tio que casa a sobrinha, uiiiiii.
19.10.2020 | por Marinho de Pina
Assim, numa espécie de ‘Eterno Retorno do Mesmo’ tentamos, em vão, definir um objecto – homem – que nunca corresponde ao momento em que o olhamos. Porque assim que o capturámos, encontramo-nos já no passado e na História. Como pode, então, alguém deslindar o futuro se não como uma extrapolação do instante vivido e como uma projeção cuja força reside na subjectividade do olhar e na força da luminosidade desse mesmo olhar? Aperceber-se da impossibilidade de representar o real permite aceder à liberdade do artista criador. É entrar no domínio da metáfora e da lenda.
08.10.2020 | por Simon Njami
Em frente à sede do SOS Racismo, houve parada de um grupo neonazi, de rosto tapado e tochas.(...) Perante esta escalada dos ataques, que é antecedida e acompanhada por um constante regime de ameaça e insulto a dirigentes do SOS Racismo, assim como a outros activistas antirracistas e antifascistas, não houve qualquer demonstração institucional pública de repúdio. Perante o assassinato brutal de Bruno Candé às mãos de um ex-combatente da guerra colonial que durante dias o perseguiu, o insultou e baleou até à morte, não houve uma declaração institucional de pesar e comprometida com o antirracismo. As condolências e suporte institucionais nunca chegaram à família.
13.08.2020 | por vários
Fico, tipo: Kumekié, caralho!? N’tão!, vocês vão lá para a Guiné com os vossos padres e as vossas ONGs a falar que devemos nos juntar e mamar como irmãos, e vocês aqui não gostam uns dos outros! Caralho!
13.06.2020 | por Marinho de Pina
As independências não foram uma concessão deliberada e solidária do novo regime, foram uma conquista que resultou da coragem e determinação de homens e mulheres que lutaram pela libertação e soberania territorial dos seus países e enfraqueceram o regime colonial português até ao limite das suas possibilidades humanas e militares. Além disso, o movimento anti-colonial nunca foi assumido e articulado pelas agendas políticas portuguesas do novo regime (tanto as de esquerda como as de direita) de uma forma assertiva e consequente, e essa negligência histórica tem repercussões e continuidades até aos dias de hoje, no que diz respeito à segregação, exclusão e obliteração racial em Portugal.
26.04.2020 | por Núcleo Antirracista de Coimbra (NAC)