Vimos, em nossas noites confinadas, os satélites de Elon Musk substituir as estrelas, assim como a caça de Pokémon substituiu a caça de borboletas extintas.
Vimos durante a noite nosso apartamento, que nos havia sido vendido como um refúgio, se fechar sobre nós como uma armadilha.
Vimos a metrópole, uma vez desaparecida como o teatro de nossas distrações, revelar-se como um espaço panóptico de controle policial.
Vimos em toda a sua nudez a estreita rede de dependências da qual nossas vidas estão suspensas. Vimos ao que nossas vidas estão sujeitas e por que estamos sujeitados.
Temos visto, em sua suspensão, a vida social como um imenso acúmulo de limitações aberrantes.
Não vimos Cannes, Roland Garros ou o Tour de France; e isso foi bom.
30.10.2020 | por Julien Coupat e vários
O conjunto dos textos do Comitê Invisível torna visível linhas distintas de percepção do estado de coisas e das lutas por sua transformação: i) a análise de conjuntura; ii) a análise tática e estratégica; iii) a crítica à esquerda; iv) a análise dos modos de vida.
O vigor e a potência de seus textos não deixam de apresentar problemas diversos: a arrogância de suas críticas; a concentração em lutas de caráter metropolitano; a ausência de explicações consistentes sobre como se vai destituir tudo; o eurocentrismo de seus conceitos e métodos; a adoção de uma única perspectiva para interpretar e alimentar as lutas.
26.10.2020 | por immanens
Europa, queria começar por enviar-te cumprimentos, mas vais ter de perdoar-me, porque neste momento estou em tormentos cujo comprimento é imenso; tormentos tão velhos como este lamento que me risca o peito e me deixa neste leito, desfeito, em trejeito de dores lancinantes que enlaçam as partes que lançam ares salutares nestes esgares que mostram os meus desaires. Pois tu, tu tudo fazes para que tu e a África não sejam pares. Nunca serão comadres, Europa, enquanto desejares que a África continue à tua sombra… sabes…
26.10.2020 | por Marinho de Pina
Estes textos de Sankara são publicados num momento em que, e não por acaso, no continente africano, ecoam vozes jovens e renovadoras de um movimento pan-africanista, quiçá enterrado quer com o desaparecimento físico, quer com o afastamento da cena política de algumas das últimas figuras representativas dessa corrente política outrora libertadora. São vozes que clamam por uma África livre do assalto neocolonial a que está cada vez mais, e claramente, submetida neste início do século XXI.
19.10.2020 | por Jean-Michael Mabeko-Tali
O tio Paulo Bano Bajanca tinha-me ensinado para ficar desconfiado quando os tugas me mandam ficar em casa, ele disse assim: “Sobrinho!, fica desconfiado quando os tugas te mandam ficar em casa e te dizem para não sair, porque, de repente, quando te mandam sair, já nem a tua casa te pertence. Foi o que fizeram na Guiné.” Eu, às vezes, pensava que o tio Paulo Bano exagerava, mas descobri que não. Toda a história dos tugas da Europa é desse tipo, tios que matam sobrinhos para tomar o poder, irmão que mata a irmã, tio que casa a sobrinha, uiiiiii.
19.10.2020 | por Marinho de Pina
Assim, numa espécie de ‘Eterno Retorno do Mesmo’ tentamos, em vão, definir um objecto – homem – que nunca corresponde ao momento em que o olhamos. Porque assim que o capturámos, encontramo-nos já no passado e na História. Como pode, então, alguém deslindar o futuro se não como uma extrapolação do instante vivido e como uma projeção cuja força reside na subjectividade do olhar e na força da luminosidade desse mesmo olhar? Aperceber-se da impossibilidade de representar o real permite aceder à liberdade do artista criador. É entrar no domínio da metáfora e da lenda.
08.10.2020 | por Simon Njami
Em frente à sede do SOS Racismo, houve parada de um grupo neonazi, de rosto tapado e tochas.(...) Perante esta escalada dos ataques, que é antecedida e acompanhada por um constante regime de ameaça e insulto a dirigentes do SOS Racismo, assim como a outros activistas antirracistas e antifascistas, não houve qualquer demonstração institucional pública de repúdio. Perante o assassinato brutal de Bruno Candé às mãos de um ex-combatente da guerra colonial que durante dias o perseguiu, o insultou e baleou até à morte, não houve uma declaração institucional de pesar e comprometida com o antirracismo. As condolências e suporte institucionais nunca chegaram à família.
13.08.2020 | por vários
Fico, tipo: Kumekié, caralho!? N’tão!, vocês vão lá para a Guiné com os vossos padres e as vossas ONGs a falar que devemos nos juntar e mamar como irmãos, e vocês aqui não gostam uns dos outros! Caralho!
13.06.2020 | por Marinho de Pina
As independências não foram uma concessão deliberada e solidária do novo regime, foram uma conquista que resultou da coragem e determinação de homens e mulheres que lutaram pela libertação e soberania territorial dos seus países e enfraqueceram o regime colonial português até ao limite das suas possibilidades humanas e militares. Além disso, o movimento anti-colonial nunca foi assumido e articulado pelas agendas políticas portuguesas do novo regime (tanto as de esquerda como as de direita) de uma forma assertiva e consequente, e essa negligência histórica tem repercussões e continuidades até aos dias de hoje, no que diz respeito à segregação, exclusão e obliteração racial em Portugal.
26.04.2020 | por Núcleo Antirracista de Coimbra (NAC)
Escrevi o meu romance sobre a guerra para desapossar o meu pai do exclusivo da narrativa bélica, para o destronar, para escrever o livro que ele próprio não foi capaz de escrever. Para reescrever as histórias de guerra dele, para as extirpar da mentira posterior. Para o enobrecer. Fi-lo à custa dos outros veteranos, que viram as suas narrativas reformuladas, subordinadas à infelicidade do meu pai, por mim usurpada. Escrevi o meu romance para, com o engodo da guerra colonial, contar aos veteranos uma outra guerra, a minha. Quem vai à procura da guerra tem já uma guerra dentro de si.
24.04.2020 | por Paulo Faria
O meu maior luxo neste tempo foi escrever este texto e ontem à uma da manhã sentar-me durante meia hora, a revisitar as gravações que fiz no pátio interior do hotel Barbas, a 80 Kms da fronteira com a Mauritânia, no Sahara Ocidental, enquanto uma televisão fazia o relato do jogo da bola em árabe, sempre tão enfáticos nos seus relatos, e um grupo de senegaleses chegava em caravana para comer um thiebou djenne feito pelo cozinheiro do hotel, ele também
22.04.2020 | por Ricardo Falcão
O barco custa a amarrar. Fico sem sonhos nem energias vivas. Ando por aqui a inventar tarefas e vou procurando trabalho online com outros milhões, agora. O futuro chegou mesmo depressa demais e nada me preparou a mim nem a ninguém para tudo isto. Condições ou doenças mentais, fábricas de comunicação, teletrabalho, hospitais de campanha, 15min de fama a enfermeiros portugueses, presidentes mediáticos, vazios de gente e ruído, concelhos fechados em si, lojas de vidro higiénico e empregados de luvas, filas para tirar senha para o supermercado, desinfetantes tantos quanto precisos e a estranha importância do papel higiénico. Tudo ao mais pequeno pormenor noticiado, como se a vida em si se transformasse num Hiatos e agora Home.
16.04.2020 | por Adin Manuel
Nas águas quentes das Venezuela, lançaram âncora navios de guerra norte-americanos. Prontos para desmantelar a rota de cocaína que sai deste país para os EUA, via ilhas caribenhas. Os piratas ou cowboys do século XXI, como lhes chamou Nicolás Maduro, cercam de mansinho o regime venezuelano. Distraído, confinado e monotemático, o mundo quase nem deu por isso.
11.04.2020 | por Pedro Cardoso
O processo foi mil vezes intentado. Podemos recitar de olhos fechados as principais acusações. Seja a destruição da biosfera, o resgate das mentes pela tecnociência, a desintegração das resistências, os reiterados ataques contra a razão, a crescente cretinice das mentalidades, ou a ascensão dos determinismos (genéticos, neural, biológico, ambiental), as ameaças à humanidade são cada vez mais existenciais.
09.04.2020 | por Achille Mbembe
Para esta travessia, deixo estas palavras como um farol aceso sobre cada dia que atravessarmos, cada um com o seu livro, a sua música, a sua recordação, a sua prece. Cultivemos o silêncio dos automóveis dos cafés das filas das repartições, das rodas de samba, dos grupos na praia e nas pistas de dança. Pois, para além do balanço entre a recessão económica e os mortos, juntos ou separados, precisamos deixar a Terra respirar.
29.03.2020 | por Rita Brás
Os desenhos de Manoel Barbosa e o cinema de invenção brasileiro - são “altas” respostas a tempos “baixos”. Por isso, revisitar os anos quentes da contracultura através destas produções deve arrastar um sentido crítico. Na verdade, o AI-5 “ainda não terminou de acabar” no Brasil; a guerra colonial só recentemente é um tema de estudo e debate em Portugal; a contracultura estetizou-se; e a despolitização das subjetividades acomodou-se dentro da economia neoliberal e do mundo globalizado.
28.03.2020 | por Marta Mestre
Para Bifo, existem muitos futuros contidos no presente, a Futurabilidade, poderá refletir-se no horizonte sob duas formas: uma é o simples desenrolar das tendências que operam no presente, o futuro provável (a distopia) que é assustador, outra é o futuro possível (utopia) que está inscrito no presente, sendo este plural e indeterminado, estando igualmente contido “fora da esfera da imaginação utópica, mas que somos incapazes de distinguir, de fazer emergir do nevoeiro e dos miasmas da condição actual”.
18.03.2020 | por Lana Almeida
Contei-lhe este episódio já na cama, antes de adormecermos. Ele contou-me que também se perdeu da mãe em menino, o que eu tinha esquecido. Desejei ter-me perdido também, o que nunca me aconteceu. Mas pareceu-me uma imagem da liberdade: uma criança que consegue encontrar o caminho de volta, no meio dos vultos de uma Estocolmo escurecida, entre o tráfego da hora de ponta e a indiferença dos adultos.
12.02.2020 | por Djaimilia Pereira de Almeida
A emergência de novos atores sociais, com destaque para os sujeitos racializados, cujas intervenções na sociedade portuguesa sempre existiram mas nunca foram reconhecidas pelas instâncias legitimadoras das narrativas culturais e historiográficas, constitui um fator decisivo na quebra da hegemonia lusotropical. Outro contributo narrativo e representacional é dado pela internacionalização da universidade, o incremento da mobilidade dos académicos portugueses e o crescente interesse de estrangeiros nos arquivos coloniais portugueses.
09.02.2020 | por Patrícia Martins Marcos, Inês Beleza Barreiros, Pedro Schacht Pereira e Rui Gomes Coelho
cada vez mais fico com a sensação de que um dos desafios que a condição pós-colonial coloca a pessoas como eu é de sermos melhores europeus do que os próprios europeus, pois estes, por deixarem que sejam seus porta-vozes pessoas sem noção do importante legado intelectual e moral que a sua nacionalidade implica, abdicam dum projecto normativo que, apesar de tudo, tinha (e ainda tem) tudo para dar certo.
05.02.2020 | por Elísio Macamo