"Ciclo Perpétuo": Memórias (re)aparecidas e práticas decoloniais no Tarrafal, Cabo Verde

A prisão do Tarrafal em Cabo Verde foi criada em 1936 pela ditadura do Estado Novo para presos políticos portugueses. Fechou em 1954 e reabriu em 1961 para encarcerar os ativistas ligados aos movimentos anticoloniais nas ex-colónias portuguesas em África. Uma terceira e menos conhecida função da prisão ocorreu entre 1974 e 1975. A Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974, que marcou o fim do regime fascista e colonial português, desencadeou uma disputa entre o PAIGC (Partido Africano da Independência de Guiné Bissau e Cabo Verde) e os partidos opositores locais com vista ao controlo de Cabo Verde, levando o PAIGC a reabrir o Tarrafal em Dezembro de 1974 para encarcerar alguns dos seus opositores. A maioria seria libertada até Maio de 1975 e em Julho a prisão fechou definitivamente.1 De acordo com o artista cabo-verdiano César Schofield Cardoso, o período entre 1974 e 1979 foi uma época difícil na história do país, devido à instabilidade política e resistência parcial à independência, levando à violência contra aqueles que eram considerados inimigos pelo PAIGC. Muitos daqueles envolvidos ainda estão vivos, contribuindo para o que Cardoso designou como um “buraco negro” ou amnésia geral relativamente a este período.2

Imagem do vídeo 'Ciclo Perpétuo' | 2021 |  César Schofield Cardoso (cortesia do artista)Imagem do vídeo 'Ciclo Perpétuo' | 2021 | César Schofield Cardoso (cortesia do artista)

Hoje o Tarrafal é um museu e monumento nacional e, desde 2004, integra a lista indicativa de Património Mundial da UNESCO. Portugal, para além de ter ajudado com a criação e desenvolvimento deste museu, anunciou em 2019 que iria apoiar Cabo Verde com a sua candidatura do Tarrafal à UNESCO. Recentemente, foram levadas a cabo obras de restauro do espaço, por uma empresa portuguesa, e no próximo 5 de Julho, os governos de Cabo Verde e Portugal vão assinar um memorando de entendimento para a candidatura deste espaço à UNESCO.

Como defende Amy Sodaro, em vez de lidar aberta e criticamente com passados violentos, museus memoriais - como o Tarrafal - tendem mais frequentemente a refletir os regimes políticos que os criaram e que por eles são legitimados.3 O Tarrafal incorpora uma variedade de memórias de diferentes grupos: portugueses antifascistas, africanos anticolonialistas , “inimigos” do PAIGC, e outros cujas experiências estão menos diretamente, mas ainda assim, ligadas a este espaço, como os guardas portugueses e africanos, comunidades locais e aqueles que vivem atualmente em alguns dos edifícios que fizeram parte do complexo prisional. Contudo, a narrativa oficial produzida pelas autoridades cabo-verdianas que gerem este espaço foca-se apenas nos presos políticos da primeira e segunda fases, e é caracterizada pela seletividade e simplificação centrada nos tropos mnemónicos da resistência e vitimização em relação à ditadura do Estado Novo. Histórias e memórias ligadas à exploração e aprisionamento coloniais em África são minimizadas em comparação com aquelas ligadas à Segunda Guerra Mundial e a outros regimes fascistas europeus. Estas narrativas, e o envolvimento próximo dos portugueses neste espaço, parecem indicar que o Tarrafal está a ser instrumentalizado pelas autoridades cabo-verdianas para afirmar a sua proximidade (cultural e política) a Portugal, e pelo governo português para reafirmar o seu domínio representacional na sua antiga colónia.

O argumento apresentado acima está em consonância com uma mudança de narrativa (na sequência de mudanças políticas) que se tem verificado em Cabo Verde, sobretudo a partir dos anos 2000, caracterizada pela recuperação de uma narrativa lusotropicalista que realça a identidade “crioula” do país e a sua proximidade racial e cultural a Portugal, enquanto silencia o seu passado colonial violento.4 A narrativa oficial produzida no e sobre o Tarrafal reforça este silêncio e o silêncio em torno do período pós-independência. Estes silêncios são criticados por investigadores, ativistas e artistas cujos trabalhos procuram inquietar as narrativas dominantes. Cardoso é um destes artistas que visa recuperar a herança africana de Cabo Verde, enquanto reflete sobre o passado e a condição atual do país. Ele foi um dos artistas cujo trabalho foi apresentado na exposição “A Glimmer of Freedom” no Tarrafal, em 2017, com curadoria de Marzia Bruno. Durante a exposição, Cardoso apresentou a sua série audiovisual Ferrugemque procurou questionar a condição do Tarrafal, através da sua contextualização e “refletindo sobre as medidas Sociais e Culturais que o Estado de Cabo Verde objectiva concretizar para [e desde então tem implementado n]o lugar”. Esta série incluiu três instalações: Ciclo Perpétuo, Mar Cercante e Água Dura, que articulam uma ligação entre o passado colonial e o presente pós-colonial.5

Focamo-nos aqui no curto vídeo incluído na instalação Ciclo Perpétuo, projetado na parede de uma cela, que ainda pode ser visto no website do artista. Nesta obra, Cardoso sobrepõe três vídeos que representam realidades contrastantes: no lado esquerdo usa imagens de arquivo que mostram portugueses brancos, enquanto no outro lado apresenta trechos de vídeos de arquivo e de aparência mais recente que se sobrepõem, mostrando principalmente indivíduos negros. Enquanto um lado mostra portugueses em atividades de lazer, as imagens da direita mostram homens e mulheres a trabalhar em campos secos, uma alusão ao ambiente hostil de Cabo Verde, com roupas simples que contrastam com as dos portugueses, realçando assim as extremas discrepâncias de riqueza do período colonial. As imagens dos portugueses, oriundas sobretudo do Arquivo de Televisão Nacional de Portugal,  presumivelmente datadas do período anterior a 1974 e mostrando cenas principalmente em Angola, incluem textos como, por exemplo: “(…) os portugueses sempre se misturaram com os africanos”, juntamente com imagens de crianças negras e brancas juntas a brincar. Continua: “estas cenas de Domingo, raras em África, representam aqui a essência das políticas portuguesas: o desenvolvimento de uma genuína sociedade multirracial”. As narrativas históricas e visuais apresentadas pelo artista revelam a mentalidade lusotropicalista do final da ditadura do Estado Novo. O contraste entre esta narrativa e as imagens simultâneas de indivíduos negros a trabalhar, pretende indicar que o outro e silenciado lado do discurso oficial deste regime foi a violência imposta sobre os corpos negros. 

O vídeo do lado esquerdo passa depois a mostrar o que parecem ser famílias mistas, e imagens de crianças negras e brancas na escola, enquadradas pelo texto: “de todos os colonizadores europeus, os portugueses foram os menos sensíveis à cor. Têm um ditado que diz: Deus criou o branco e o negro, os portugueses criaram o ‘mulato’ ”. As imagens em ambos os lados do ecrã ficam depois sobrepostas a imagens do Tarrafal em tempos mais recentes. Estas ocupam toda a largura do ecrã e mostram o Tarrafal do exterior, onde se podem ver pessoas negras  a transportar grandes baldes de água, talvez alusivos a práticas atuais e/ou às duras condições climáticas e económicas em Cabo Verde. As imagens de ambos os lados depois passam a mostrar apenas pessoas negras a trabalhar, com o texto: “nem só os homens eram obrigados a trabalhar, os seus filhos foram forçados a fazê-lo, numa plantação de café, não podendo frequentar a escola”, seguido de uma descrição das más condições em que eram obrigados a viver. O vídeo acaba com imagens de portugueses brancos na igreja, enquanto indivíduos negros continuam a trabalhar nos campos do outro lado do ecrã.

Através destas imagens contrastantes, o artista traz para um único espaço realidades e narrativas contrastantes: os discursos oficiais da ditadura do Estado Novo e as experiências dos portugueses brancos contrapostas às duras realidades das pessoas negras nas colónias. Ao incorporar no seu filme imagens recentes do Tarrafal e tendo em conta a localização desta exposição, o artista cria uma sensação de continuidade, parecendo articular a ideia que realidades e narrativas do período colonial persistem hoje em Cabo Verde, e no Tarrafal especialmente. No seu website, Cardoso explica que “o Tarrafal é um símbolo de terror e resistência, [daí] o seu estatuto atual como Museu da Resistência. Contudo, a população pobre que ocupa o campo desde o seu encerramento é afastada, em prol de turismo e de um museu limpo” (tradução da autora). Estas comunidades podem ser consideradas como representadas no vídeo pelos habitantes locais caminhando perto do Tarrafal. Prestígio e ganhos económicos parecem ser mais relevantes para as autoridades, como se vê na candidatura em curso do Tarrafal a Património Mundial da UNESCO. Cardoso conclui acrescentando que a sua série Ferrugem chama a atenção para o terror passado e presente. Como defende Ana Nolasco, as imagens de arquivo são usadas pelo artista como ferramentas para questionar a sociedade cabo-verdiana atual, onde persistem traços da narrativa lusotropicalista do Estado Novo, nomeadamente na celebração da identidade “crioula” de Cabo Verde.6

Enquanto que o título da série, Ferrugem, parece referir-se à forma como coisas do passado perduram no presente como ruínas, Ciclo Perpétuo parece aludir à maneira como a colonialidade, tanto física como epistémica, persiste hoje através das narrativas nacionais dominantes de Cabo Verde, e das práticas contemporâneas de património e memória que, tal como se viu no caso do Tarrafal, minimizam a violência do passado colonial e excluem as comunidades locais. Ao gerar um diálogo entre as narrativas coloniais oficiais e as realidades difíceis dos colonizados, entre o passado e o presente no e através do Tarrafal, Cardoso lança luz - literal e figurativamente - sobre a forma como as representações da história e da identidade passada e presente de Cabo Verde levam ao silenciamento de memórias e à exclusão de cabo-verdianos no presente. Se buracos negros absorvem a luz, as obras de Cardoso permitem restaurar a visibilidade sobre histórias, memórias e experiências invisibilizadas pelas autoridades e pelas narrativas dominantes que elas (re)produzem. O seu trabalho, ao fazer aparecer memórias e realidades contemporâneas, oferece verdades alternativas às geradas pelas narrativas oficiais: que as vítimas do colonialismo português e da musealização do Tarrafal, e os silêncios nelas impostas, importam. Como defende Nicholas Mirzoeff, se aparecer significa importar, então fazer aparecer significa reivindicar o direito de existir. Ciclo Perpétuo de Cardoso, ao criar “espaços de aparecimento”7 e ao articular narrativas alternativas, pode, assim, ser vista como uma prática decolonial. Embora criada em 2017, a presença durável desta obra online continua a ser relevante, considerando a persistência da colonialidade no Cabo Verde atual.

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624); MAPS - Pós-Memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT - PTDC/LLT-OUT/7036/2020). Os projetos estão sediados no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.  

  • 1. Lopes, J. V. (2012). Tarrafal - Chão Bom. Memórias e Verdades. Cidade da Praia: IIPC.
  • 2. Anjos, L. (18 de Fevereiro de 2020). Tarrafal: Arte e Memória [podcast]. Acedido em 8 de Maio de 2020.
  • 3. Sodaro, A. (2018). Exhibiting Atrocity. Memorial Museums and the Politics of Past Violence. London: Rutgers University Press.
  • 4. Cardina, M. & Rodrigues, I. N. (2020). The Mnemonic Transition: The Rise of an Anti-Anticolonial Memoryscape in Cape Verde. Memory Studies, 00: 0,1-15.
  • 5. Bruno, M. (2017). A Glimmer of Freedom. Organized by Marzia Bruno [catálogo de exposição]. New York: Apexart. Acedido em 20 de Outubro de 2020.
  • 6. Nolasco, A. (2019). Postproduction, Archive and Memory in the work of César Schofield Cardoso. Journal of Contemporary African Art. 44, 94-107.
  • 7. Mirzoeff, N. (2017). The Appearance of Black Lives Matter. Miami: Name. Acedido em 3 de Novembro de 2020.

por Sofia Lovegrove
Mukanda | 21 Junho 2021 | Cabo Verde, memórias, Portugal, Tarrafal, Unesco