A noite das estátuas
LUANDA – FORTALEZA DE S. MIGUEL
Uma madrugada
Há uma hora, numa noite que ninguém sabe qual, em que as estátuas podem voltar à vida, mas só são reconhecidas por outras que tenham a mesma alma de ferro ou pedra…
BENEVIDES: Pst… pst… Estás acordada?
GINGA: Estava a ver se era uma ilusão… De repente senti frio… Achas que os outros também estão acordados?
BENEVIDES: Só tens frio porque queres… Isso são lá vestes para uma rainha… Olha que estavas mais quentinha aqui debaixo da minha capa de veludo…
GINGA: De veludo é essa tua língua de brasileiro inveterado… Não me venhas com essa conversa a ver se me enrolas… Já há muito tempo que te digo que não estou para essas aventuras… Quem foi rainha não perde a majestade… nunca ouviste dizer?
BENEVIDES: E lá por seres rainha… És rainha do Ndongo… mas também do meu coração… Há quantas décadas to venho repetindo?
GINGA: Fala baixo… Parece que o Paulo também já acordou…
BENEVIDES: O Paulo, sempre o Paulo… Essa tua paixão mal resolvida sempre a interferir com os meus mais nobres sentimentos…
GINGA: Psiu… Não fales tão alto… não ouves?
NOVAIS: Onde estou? Onde estou eu?
BENEVIDES: Ora, onde haverias de estar? Aqui, na mesma Fortaleza de sempre… Que pergunta essa, logo tu que foste o único que sempre esteve no topo da escadaria…
NOVAIS: Escadaria, uma ova! Obras de Santa Engrácia… Começaram a fazer uma coisa imponente para eu ficar lá em cima a dominar a minha cidade e… olha… deixaram-me a meio do caminho… Acabou-se a verba para obras de valor histórico… Malditos colonos!
BENEVIDES: É melhor não os insultares… Olha que, se eles para cá vieram, foste tu que lhes indicaste o caminho…
NOVAIS: Homessa… Eu limitei-me a cumprir devotadamente as ordens de Sua Majestade…
GINGA: Minhas ordens, Paulo?
NOVAIS: Mil perdões, minha senhora… Referia-me a sua graça, o rei D. Sebastião…
HENRIQUES: Quem falou aí nesse meu infeliz descendente?
BENEVIDES: Ah! Também já acordaste, Afonso? Parece que estamos quase todos, o velho gangue de cascalho e ferro-velho da Fortaleza…
GINGA: Ainda falta o mais galante… o meu governador preferido… sempre tão delicado, sonhador… o Pedro…
CÃO: E eu? Já ninguém se lembra de mim? Eu, que fui o primeiro a pisar esta terra… Que coisa mais ingrata, o esquecimento…
CAMÕES: Ah! “O rio do negro esquecimento e eterno sono”… se é permitido citar-me a mim próprio… Porque havemos de ter uma noite assim para a qual despertamos uma vez mais levados como num sonho?
CÃO: Já cá faltava o poeta que, nos seus épicos cantos de tantas estrofes, apenas me dedicou uma linha…
CAMÕES: Os teus anos não deram para mais… “Aceso de ira, o Cão, fará que os seus, de vida, pouco escassos”…
CÃO: Pois fica sabendo que neles couberam duas expedições em que eu, como nunca ninguém depois de mim, deixei a minha assinatura em tantos padrões que plantei por essa costa fora, desde a foz do Zaire até ao cabo da Cruz…
NOVAIS: Que tu confundiste com o cu de África… Ainda estavas bem longe… à espera do meu pobre avô Bartolomeu… Tanto o assustou que lhe chamou, precipitadamente, das Tormentas…
CÃO: Pois, mas eu, ao menos, tenho uma estátua… nesta terra que eu descobri… e ele… que eu saiba… tem uma na Cidade do Cabo, porque ali o levou a tempestade e ali se finou…
GINGA: Que tu descobriste, vírgula, nós já cá estávamos há séculos, os nossos dongos sempre navegaram ao longo da costa… Tu não descobriste nada… Fizeste vénias com o teu chapéu de penas de pavão diante dos nossos reis, enquanto enterravas os teus padrões em terra alheia… Bem os podias ter enfiado no…
NOVAIS: Ana, minha querida… não precisas de o dizer… Tu, que me salvaste da masmorra de teu pai… Tu sabes que eu fui teu emissário ao rei de Portugal e para aqui voltei para ser o primeiro governador destas terras… mas todo o meu poder esteve sempre nas tuas mãos…
CÃO: Eu peço muitas desculpas, mas também não é preciso ofender… Esta senhora, que se devia dar ao respeito, é a primeira a disparatar…
GINGA: Alto aí, senhor Diogo… O senhor, por acaso, julga que eu, por ser mulher, sou burra? Então o senhor vem para a nossa terra, derrama-se em cumprimentos nas audiências reais, espalhando presentes brilhantes e vistosos de valor mais que duvidoso, e logo diz deixa-me já demarcar esta terra para mim…
CÃO: Para o rei de Portugal, minha senhora… não se esqueça…
GINGA: Eu não me esqueço de nada, senhor Diogo… Os senhores chegaram aqui em passinhos de lã e com palavras mansas para nos enrolarem… Essa é que é a verdade nua e crua… Agora não querem dar o braço a torcer, mas olhe que já era tempo… Ponha os olhos ali no Paulo… Ele, ao menos, reconheceu a nossa autoridade… O meu pai deixou-o ocupar este morro de S. Miguel… Depois foi nomeado governador, era apenas um título… Não era nenhum vice-rei… mas morreu aqui junto de nós… ali em Massangano… Não teve culpa da estátua branca como a cal que lhe fizeram que mais parecia um espetro virado para a baía… Ele, que era um homem delicado, gentil, que sabia falar ao coração de uma princesa como eu…
CUNHA: Muito bem, muito bem, minha princesa, minha rainha…
BENEVIDES: Ora, até que enfim, já cá tardava este… Onde estavas tu, Alexandrino, que ninguém te via acordado?
CUNHA: Sabes como sou… começo sempre o meu dia… diria melhor, a minha noite… com uma meditação… Sou o mais jovem de todos vós… Vivi noutro tempo… Afinal, duzentos anos nos separam, não é verdade?
HENRIQUES: É sim, Pedro, mas olha bem à tua volta e verás que, se és o mais novo, eu sou aqui o mais velho, já tenho mais de mil anos… mas sou o único que veio para esta terra tão-somente em efígie… Trouxeram-me nesta vestimenta de ferro escuro e até se deram ao trabalho de trazerem uma pedra do meu castelo de Guimarães para meterem dentro do meu pedestal em forma de escudo… Estou um bocado farto desses patriotas de ultramares… No meu tempo, os descobrimentos eram uma coisa bem diferente… Para além do Mondego era tudo Marrocos… Quando chegámos aos algarves, entrámos pelo mar adentro e, a partir daí, foram só desastres, alcáceres quibires, com esse e outros nomes…
GINGA: Ao menos tu não vieste para aqui armado em explorador ou administrador colonial… Mas olha que não te livras de teres sido aqui plantado como um selo de vinculação desta terra àquela de que foste o fundador… Com essa tua espada pesada e comprida sempre levantada… logo para nós, que estamos tão bem servidos de fundadores…
HENRIQUES: Obrigado, minha filha, por seres tão compreensiva com este teu colega, hoje no exílio… aprisionado nesta Fortaleza que já foi de degredados e hoje se arrisca a ser uma coisa fina… Confesso-te, minha filha, que preferia aquele pedestal em que me sentia como um antigo sinaleiro em cima da sua peanha, a ver o trânsito a passar… Também eu contava os carros que desciam e subiam pelo largo sem parar… como quem conta carneiros para adormecer… os meus olhos fechando-se pesados por trás da viseira da minha armadura…
CUNHA: Pois eu acho que lhe deviam dar uma comenda, D. Afonso… governador honorário, sei lá… Afinal, esta noite de ex-estátuas podia bem ser a noite dos governadores…
CÃO: Isso é que não… Eu não fui governador… Posso ter plantado marcos e padrões na foz dos grandes rios e nas enseadas e cabos… mas eu era um explorador… no melhor e mais nobre sentido da palavra… e morri ainda jovem, cheio de sonhos…
CUNHA: Já somos dois… meu amigo… Fui um jovem governador desta terra… três anitos somente, para morrer dois anos depois, com apenas quarenta e nove anos… e logo me puseram ali para me recordarem, em frente às portas do mar… entre as alfândegas e os correios… de casaca e colete, com este calor medonho, como um mordomo silencioso a acolher os buliçosos recém-chegados, nas suas fatiotas de linho branco… É cá um triste destino…
BENEVIDES: Isso já lá vai, meu caro Alexandre da Cunha… Agora está aqui na Fortaleza a respirar os bons ares do morro de S. Miguel… O meu amigo não imagina o que me custou chegar aqui acima… naquela data de 15 de agosto de 1647, quando, com metade dos homens da guarnição holandesa, a tomei de assalto… Num só dia perdi mais de trezentos homens, mais de um terço dos meus soldados…
CAMÕES: Que pena eu já ter morrido quando essa tua aventura aconteceu… Perdi o ensejo de escrever um segundo tomo da minha epopeia… Serias o novo Gama, também ele almirante dos mares sem fim…
GAMA: Alguém chamou por mim? Ainda estou meio estremunhado do sono eterno… Também, com este chapéu… Já viram que sou o único com chapéu e tantos adereços… mal me posso mexer…
CAMÕES: Também não é isso que se espera de uma estátua… Mas contenta-te, valente Gama, que tu estarás sempre vivo e bem mexido nas minhas páginas e ninguém como tu foi tão longe pelo mar tenebroso… Chegaste à Índia, tão sonhada e tão desejada, passaste tão ao largo desta cidade de Luanda que só viste de longe, no convívio assediante de ninfas e nereidas da ilha do Mussulo, a que chamaste dos Amores… Bem merecias que te colocassem num alto e bem digno pedestal em Cochim ou Calicute…
GAMA: Cruzes… fiquei farto de tanto caril… Abençoada muamba a que agora estou condenado nesta prisão a que vim parar não sei por que carga de água nem sei muito bem onde…
BENEVIDES: Fortaleza, almirante… e agora Museu e não sei que mais… O tempo das grilhetas só ficou nos azulejos que contam a nossa história, toda a azul e branco… Pensar que entrei por aqui dentro, entre a fumarada dos arcabuzes, com meia dúzia de marinheiros andrajosos, para receber a rendição dos holandeses e não só…
GINGA: Não perdes uma oportunidade para me provocares, Salvador… Eu também sofri com essa guerra… Tinha centenas de guerreiros dentro da Fortaleza… Mas, aqui, o almirante português, vindo do Brasil à socapa, tinha muitos recursos de imaginação e era cheio de truques… Enganou bem os holandeses, mas a mim é que nunca me enganou…
BENEVIDES: Minha rainha… porque és sempre tão dura comigo? Sabes bem que aceitei a rendição dos holandeses, mas também me rendi a ti, à tua beleza… à tua majestade… Deixei-te, enfim, partir para essa longínqua Matamba que tanta saudade me deixou…
GINGA: Pois sim, lábia não lhe falta, senhor almirante… mas não sou eu quem lhe nega o mérito de ter feito acreditar os holandeses de que os bonecos de palha fardados, espalhados pelas enxárcias e amuradas dos galeões, eram parte da maior armada alguma vez posta ao dispor de um almirante português… A força das aparências em que o senhor foi um exímio ilusionista…
CÃO: Pois sim, mas, ilusionista ou não… mais uma vez se comprovou o ditado de que a sorte protege os audazes e o meu amigo ganhou o melhor pedestal da cidade… no Largo do Palácio, à vista obrigatória dos mais ilustres cidadãos e visitantes da terra… enquanto a mim, o cão perdigueiro a farejar descobertas, mandaram-me para o porto a ver navios… Eu, que fui capitão de naus e caravelas… que, no dizer de Pessoa, tinha a alma a arder em febre de navegar… e só acharia a calma… num porto por achar…
CAMÕES: Pessoa? Não conheço…
BENEVIDES: Acho que nenhum de nós se devia queixar… Afinal, agora estamos juntos para todo o sempre, aqui, nesta Fortaleza onde tudo começou… onde primeiro foi hasteada a nossa bandeira…
GINGA: Acho que deves falar por ti… Eu, por exemplo, tenho muitas razões de queixa… O que é que eu fiz para estar aqui presa, ao lado de quem, independentemente de serem agora muito boas pessoas, porque na verdade já morreram há muito tempo… não deixam de ser símbolos de uma dominação injusta… A minha única consolação é mesmo esta nova bandeira sempre hasteada, tão grande, ondulando sobre a cidade e sobre o nosso mar…
BENEVIDES: Pois, minha amiga, quem sou eu para te levar a mal esse teu queixume que até te fica muito bem… mas eu não me sinto como um dominador colonial, bem pelo contrário, eu vim para expulsar os holandeses que estavam aqui numa ocupação militar intrusa e oportunista, que se preparavam para governar esta terra sem qualquer título legítimo… E, de facto, sempre me senti, aqui, como um libertador…
GINGA: Pois, para mim, entre portugueses e holandeses venha o diabo e escolha… E nós, muitas vezes, fizemos o papel de diabos para nos livrarmos ou de uns ou de outros… Mas para que estamos a falar mais uma vez nisto? É sempre a mesma coisa, parece que não estamos só presos na Fortaleza, mas nessa história que nos juntou e não se livra de nós, nunca, enquanto houver uma noite de ex-estátuas…
NOVAIS: Posso dizer uma coisa? Não queria interromper… mas a Ana sabe como lhe quero… Fomos separados pelas circunstâncias e pela história com a qual não se reconcilia… Ela tinha de ser a rainha indomável e eu o navegador solitário que acabou tristemente os seus dias em Massangano… Não podemos dar volta a isso… mas o facto inexplicável de a Ana de Sousa estar aqui comigo, na verdade connosco, e ser ela também uma ex-estátua, só revela que nos podemos sempre reencontrar nas circunstâncias mais inesperadas…
HENRIQUES: Também acho que não devemos estragar estes breves momentos, em que voltamos à vida, com esses pensamentos do mar tenebroso… Desculpem a minha rudeza portucalense, mas não foi para ouvir estas recriminações que prendi a minha mãe em Guimarães e parti à espadeirada contra mouros e espanhóis… Também eu queria uma terra livre para viver à larga, e ninguém melhor do que eu compreende que as gentes desta terra tenham pegado em armas para nos afastarem do poder… a que nos agarrámos por razões que suspeito terem sido puramente egoístas, mas que, por uma espécie de alquimia e outras mágicas de palavras, atos e omissões, quisemos transformar em missão evangélica… Por isso lamento sinceramente que tu, minha colega rainha, estejas aqui aprisionada… mas não percas a esperança, há sempre um sonhador em cada largo ou esquina que da noite para o dia decide ser um libertador… e pode ser que tu voltes a ser estátua outra vez…
CAMÕES: E eu cá estou para o que der e vier… Poderei até aproveitar estas noites de interlúdio para escrever uma nova epopeia, agora toda ela africana, dos reinos de Ndongo e da Matamba… e tu, gentil e incapturável rainha, serás a minha heroína pairando sobre todos os reinos desta terra, desde o Congo, Kassange, Dembos e Kissama…
GINGA: Não preciso… Já tenho o Agualusa…
CAMÕES: Agualusa? Não conheço…
CÃO: Confesso que fiquei comovido com as palavras do nosso senhor D. Afonso… Eu nunca tinha visto as coisas por esse prisma… Tanto tempo de braço estendido para entregar um mapa ou um relatório de viagem, que já me esqueci o quê e a quem o queria entregar… Ao Infante? A Sua Majestade, el-rei D. João II? Ou já seria D. Manuel, o venturoso? O que importa isso agora? Estamos aqui juntos, testemunhas inúteis do destino desta terra cujos contornos comecei por delinear na foz do grande rio… o rio Zaire… junto às cataratas de Ielala… e, desde então, quantas peripécias, quantos dramas, quantas histórias há ainda para serem contadas…