"Estamos Aqui | Twina Vava | Nous Voici"

A luz para esta estória puxou-me à frente de uma montra onde
estava uma escultura Kongo em pedra.
A memória tinha-me tido perto de esculturas assim, mas ali, a milhares de quilómetros do meu chão, aquela mãe me brilhou encarecidamente.
Apareceu um livro que apela à leitura desacelerada e ao confronto com os desafios e enigmas do movimento criativo, e que questiona o aprisionamento dos patrimónios e heranças. Tem a ilustração prodigiosa da Neusa Trovoada.
A versão em kikongo foi construída com Miguel Sanches André, e a versão em francês com Nelly Marmorat. Quis que o saboroso Lingala viesse brincar também.
Para os vossos olhos. Nu mona muna meso meno. À vos yeux.
Branca

ilustração de Neusa Trovoadailustração de Neusa Trovoada
Não, não fiques tão perto assim que o coração ressalta na entrada da garganta. Mais para trás. Devagar. Sim, aí estás bem.

Ouve a pulsação funda baixa e forte. Ecoou pelos montes e vales até chegar aqui e conceder o espaço à vibração uterina que os ventres e os pés ampliam.
Aah.
É bom entrar aqui, não é? O escultor não mostrou o esplendor da música que isso ninguém consegue. O que conseguiu foi escondê-lo na expressão congelada na pedra.
Parece-te que o músico está a olhar lá para trás, o seu perfil recortado no que resta do poente?

Me parecia mesmo é que ele olhava para o lado, assim, como alguns músicos fazem. Mas não falei nada. E a voz:

O que lhe interessa é deixar passar a torrente da fala da ngoma.
Olha o músico tomado da grandeza dela a ser capaz de responder, célere e exactamente,
ao comando subtil do mestre de cerimónias!
O MC indica o protocolo para que todos fiquem no mesmo chão.

Um MC? ‘Tás a

Vê o músico, como treme.
É da linhagem dos que servem nas batalhas. Os do aviso pronto. Da exortação férrea ao combate. Aqueles que fazem soar as vitórias.
Aqueles que no luto hão-de proclamar a perenidade salvadora dos que perderam
Escuta: o som passa de uma margem para outra, directo por entre o caos, tal qual ali o arco-íris sobre o Rio segura a água do céu com a água da terra, lá em Ielala, por cima dos rápidos fatais.
O arco-íris breve que o Rio Poderoso não deixa nada ficar.
O músico talhado na pedra assim em intenção tão definitiva, dificilmente deixará perceber o que habita na nebulosa húmida que envolve as suas mãos e a pele de leopardo da ngoma, e a faz troar.

TOUM! PAK.

Fá-lo-á enquanto as pessoas e os leopardos habitarem a Terra.
E quando forem tocar numa mputuville, a pessoa tem que engomar antes. A pele. Por causa do frio.
Berlim. Sines. Paris.
E a pele vibrará em transfiguração. Como se o próprio leopardo vivo, viesse pulsar também ali. E a sua pata se abatesse sobre a ngoma num estrondo seco

PAK.

dentro do batuque que agora não pára, não pára não o bater. Chupando do chão, atirando ao largo.
Esse continuum que passa fremindo pela garganta da ngoma.
O escultor rebocado lá.

E eu aqui, também.

Noite adentro virá a mulher arrefecer-lhe as mãos no jacto de água que lhe atira com a boca.

Jura!

ilustração de Neusa Trovoadailustração de Neusa Trovoada

Terminou e conseguiu.

Com a sua gente esperará o pedaço de pele, a insígnia do leopardo.

Sai no passo invertido do caminhar reverente, uma mão agarrando ainda a arma reinvestida de prestígio e responsabilidade, a outra segurando no peito a pequena atadura que condensa o poder, a energia, as ondas, os sais, as águas, os óleos, os sumos e os venenos que a Terra reserva santa às suas criaturas.

 

sempre com

     sempre com

            sempre com

                 sempre com

 

Imaginem a dificuldade! Esse escultor, Xéee!… fazer a pedra falar do brilho deste mais velho.
Que devia ser assim baixinho cambuta, mas parece tinha mão bem rasgativa e o olho vijú. Alto kota!
Olhei de caxexe cúmplice para O escultor-acocorado-ainda-aqui. Agora sabíamos mesmo que não adiantava falar.
Quis dar-lhe a mão, mas a mão colada no joelho não saía não saía.
A voz agora a falar mais alto:

E vê-lo no Tribunal Real? Oh!

Braço esquerdo na anca.

O outro erguido a parar.

Porte magnânimo. O gesto certeiro mas as palavras raras. Uma palavra aqui, outra palavra ali,

conduzia.

Atirava questões misteriosas, lançava provérbios.
Esperando que o tempo fizesse o seu papel.

Calava-se.

E de cada vez, recolhia a assembleia no seu silêncio.

E voltava a conduzir.

Assim

Braço esquerdo na anca.

O outro erguido a parar.

Que todos ondulem na mesma dança, que tenham ânimo a mimar as suas desavenças,

pracatá-pracatá

táuas!

pracatá-pracatá

táuas!

que se cansem a repetir as suas razões, que cresça essa atmosfera de antecipação, que se crie o chão onde a solução do mambo há-de vir pousar. De modo a que todos, mas todos neste julgamento, ah!?, saiam dignificados da contenda!
Lealdades repostas ou aniquiladas mas sempre sempre em upgrade
Ah. Tão importante

decifrar-perceber

Sabes? Quem senta de costas para a janela vê a porta, quem senta de costas para a porta vê a janela. Repara: quem está aqui vê 9 mas quem está ali vê 6.
Que a dança, a mímica, a voz e a poesia, a reza e a oratória tomem o seu devido espaço!

Puxa, a voz de cerimónia afinal gingava rijo! Arrisquei:
— O rei o boss o chefe que devia gostar, n’é?

Foi quando O escultor-mesmo-aqui-ao-lado olhou para mim e disse muito que sim.

Braço esquerdo na anca.

O outro erguido a parar.

táuas!

Reconhecem essa prontidão?
É o gesto imbuído nos corpos dos que foram empurrados para os porões que riscaram convulsos o Grande Mar Salgado.
Pessoas Sem.

Poder respirar-beber do seu azul. Ah.
O gesto dentro dos que chegaram a terra. E lá, se fertilizou cifrado, se reganhou sobrevivente, e se mostra em vida. Sem nome e perene. Aqui

táuas!

No palco dos concertos. Nas passadas. Nas brigas. A postura que viajou soprada pelo mar e conseguiu ancorar em cada terra a partir das veias. Irrevogável por gerações.

Stop! In the name of Love

As Supremes. Jackson. Prince. Amy. Rapsody.
A peixeira na Vila Alice. Kin - Brazza - Matongé. A da Mouraria.
Mão direita em frente. Aberta. A outra: punho na anca. Ora faz lá!

táuas!

(…) A sua atenção debruça-se à procura da parte dela que se quer curar. Sim. Primeiro saber do ai.
E agora repara como a confiança se entrega ao gesto e repousa lá. Ah. Ele atento.
Radiculado e leve.
Está a traduzir a força do poderoso gorila na graça exacta da serpente.
É então que o poder transpira e muda.

Ewe-ewe, aí! Conta, conta então, conta já com’é que funciona esta cura desenhada na pedra,
lhe ia perguntar ali mesmo, eu: Escultor! Escultor! Mas não conseguia virar a cabeça,
minhas palavras não saíam … Oh! Agora é um beat a nos congelar aí!”

(…) E ngindu zandi za vuetama muna vava e ndambu’andi yina kazolele guka. I wau. E ntete solola e fulu kina o mazu momo.
Wau tala kwaku e mpila ke di ku vaninanga muna lufyatu lwa sinsu ke songanga.
Oo! O yandi n’kwa ndwenga wa simama e myanzi muna nsi ye mpe wa vevuka.
Wuna saula o n’kuma wa lendo kya Kimpenzi mpungu muna dyenga dya vevuka dya nyoka.
I wau e lendo ki bukidi e kyukusa mpe ki sobele.

Ekweee – ekweee… O kwakuna! Samuna, samuna kadi, samuna aweyi u sadilanga o mama o mawuku masonama muna tadi, vana fulu kyakina ya n’gyuvulwila, mono: m’vadi A teke! M’vadi A teke!
Kansi kalendanga vílula n’tu ko e nding’ame ke ya vayikanga ko…
E mbadi! Wau se beat ekyokyo kina tuku dingikanga.”

“(…) Son attention cherche où est la part d’elle-même qui veut se guérir. Oui. En premier lieu savoir du cri. Regarde comme la confiance se donne au geste et se laisse reposer là. Voici qu’il tient sa malade d’un bras calme et ferme tandis que lui s’enracine fermement dans le sol. Il traduit la force du tout-puissant gorille dans la grâce exacte du serpent. C’est là que le pouvoir transpire et fait changer.

“Ekweee – ekweee… mais dis, dis-moi… Je voulais savoir comment…, là tout de suite, la guérison que le sculpteur a dessinée sur la pierre! Tellement, je voulais… Sculpteur!!! Mais je n’arrivais pas à tourner ma tête, et mes mots ne sortaient pas.
Un fort beat nous a stoppé d’un coup.”

 

mais infos do livro

por Branca Clara das Neves
Mukanda | 8 Julho 2021 | angola, escrita, Estamos Aqui, Kongo, Lingala, língua