Caro Amigo Preto

Caro Amigo Preto (da discriminação)

Estava a escrever para o amigo branco, mas tirei um pouco de tempo para ti. Resolvi que era melhor começar por falar contigo, por estares aqui mais perto de mim. Mas antes amigo preto, peço que não faças veto a que eu comece pelo amigo panafricanista guineense. Não penses que é nacionalismo, é apenas comodismo, porque eu o conheço melhor e tenho com ele mais espaços de encontros em comum… 

Hmmm, sabes que mais? Mudei de ideias, acho que vou deixar o guineense para último, típico, tipo que é mais específico.

Caro amigo preto, não penses que só por seres preto direi que estás sempre certo e o que fazes e brades é correto. Não!, a cor da pele não nos dá o direito de tirarmos aos outros o que reclamamos para nós mesmos em todos os termos… Vá, fica calmo… eu aclaro, eu aclaro. 

Caro amigo preto, muitas vezes sinto um aperto por estar contigo em manifestos onde pedimos pelos nossos direitos, enquanto a eito vais distorcendo e refazendo os teus vetos sobre os direitos das mulheres e dos gays, por exemplo. 

Agora entendo porque és intenso e falas sempre de corpos negros, talvez sintas que te falta esqueleto, logo, o teu pensamento fica amorfo e sentes-te um corpo morto, e não consegue te erguer para fora do teu quadrado, e verificar que a opressão que criticas não é diferente da opressão que fazes. Não me fales que lutas por fases, que primeiro lutas pelo direito dos negros e que os direitos das mulheres virão mais tarde, mas que os gays, ohhh… Esse pensamento é desonesto e cobarde e deixa-me perplexo. 

Eu sei que há vários espectros nesta luta onde nos encontramos, e que há várias frentes e que não podemos estar sempre em todas as frentes, porque temos de trabalhar e contas por pagar, mas não podemos atacar outras pessoas que estão a lutar não para nos tirar o que temos, mas para pedir também para elas o que nós queremos.

Caro amigo, falas de panafricanismo, falas de civismo, falas de igualdade, falas da liberdade, mas para quem? Só para homens pretos? Não compreendes como esvazias as tuas próprias críticas com ideologias machistas supremacistas que não deviam sequer ter lugar na tua lista? Só porque nasceste com uma pila e te identificas com a tua pila, afirmas, por conta desse acidente biológico, que mereces mais poderes porque és superior às mulheres? 

Maaaaas…. Vamos supor que o homem é superior. Okay, agora diz-me lá o que fizeste tu para nascer homem? Foi um acidente simplesmente que te trouxe neste plano como um ser macho, mas não sejas machista por conta disso. Foi um acidente, repito, um acidente. Não fizeste nada, nem para nascer preto, nem para nascer macho (isso vale também para o amigo branco), nem para nascer com quaisquer tipos de privilégios que possas ter herdado dos teus pais e avós. O teu ato é um tanto paspalho, pois não foi o teu trabalho, porque não fizeste um caralho, podias ter nascido morto como podias ter sido um aborto. Por isso, deixa de ser tonto, não houve nenhum plano divino para te fazer um ser masculino.

Caro amigo, referi-me ao divino, e já que falamos ao respeito, digo-te que entendo que queiras fazer de Jesus Cristo um preto. Se calhar até estarias certo e ele teria sido mesmo preto, se na verdade tivesse existido. Gandalf… digo… Jesus, sim, acredito, não teria tido olhos azuis e cabelos loiros, mas afirmar que era preto não é esticar muito o conceito? Enfim, pouco importa, o que é certo é que a religião é uma estratégia de dominação, um grupo de pessoas, que se auto-afirmam boas e canais especiais entre os deuses e os humanos, conseguem deixar-te prostrado e pronto a ser explorado. 

Nunca pensaste por que razão, não importa em que região, a religião sempre apoiou o poder? Ainda não entendes por que os políticos recrutam os pastores, os padres, os balobeiros e os imames, para caçar os votos e ter o povo sob controlo? Caro amigo, as religiões guineenses, por exemplo, hoje oprimidas pelo Cristianismo e Islamismo, e que juras serem mais puras e que não têm dolo, também são instrumentos de controlo; os balobeiros eram os braços direitos dos régulos, só que neste século têm os negócios atrapalhados pelos seus émulos… 

Voltando ao Cristo, amigo, está visto que o cristianismo é a religião do colonialismo e o cristianismo também é um padrinho do capitalismo, aliás, pensa nisto: judaísmo, cristianismo e muçulmanismo, pegaram em panteões politeístas, com deuses incontáveis e tornaram-nos em apenas um…  monopólio… só pode haver um… um anel para todos governar… Pintes Jesus de preto ou de branco, quem agradece é o Vaticano e outros tantos que se capitalizam do bacano, pois desde que continues a promover o engano está tudo bem para esses fulanos, pois são eles quem controlam o espaço. 

Podes acreditar em Jesus preto, mas enquanto cristão, deus será sempre branco, e promover um deus branco é relegar os pretos a um papel secundário, porque sempre parecerá que os brancos são mais relacionados com deus e, portanto, divinamente mais acarinhados por deus do que tu eu os teus. Podes pintar Jesus da cor que quiseres, mas enquanto reproduzes o padrão e a religião da colonização, não tens como escapar da dominação. A religião é dominação.

Caro amigo preto, falando em padrão, também quero falar dos teus post e da tua exaltação do “Black is Beautiful”. Sim, é verdade que black é beautiful! E sim, não é supérfluo fazer essa afirmação para eliminar de modo explícito, ou pelo menos amainar alguns complexos ridículos que nos prendem em amplexos nítidos para nos fazer sentirmo-nos mínimos. Dizes “black is beautiful” mas só atestas a tua página com cenas de mulheres “belas”, mas todas elas dentro de padrões… hmm, europeias?… padrões de belezas ocidentais, com traços tais e cujo aspecto seria capaz de fazer o próprio André Ventura mudar a sua postura… racista; além disso ser sexista, também não ajuda muito a luta. 

É uma conduta absurda porque continuas a reproduzir a estulta norma capitalista e a excluir da tua lista grande parte de mulheres pretas… e africanas… e outras. Ou seja, é como se dissesses que a cor da pele não deve ser de interesse, mas o formato facial e o formato corporal, esses sim, é normal, porque não é nada racial. Eu entendo que tenhas o teu padrão pessoal de beleza, não importa de onde venha, todos temos uma dessas, mas deixa, por favor deixa, os teus padrões individuais no teu universo privado e não o empurres para dentro de um movimento organizado que está a lutar para não ser dominado.

Caro amigo, é por essas e por outras que te digo, para termos um acerto, precisamos de ir para além do preto, precisamos de ultrapassar a questão da pele, porque isso é superficial, é o que está à vista; temos de fazer mais para a conquista: comparar os ideais e os valores, porque existem em todos os formatos e sabores. Por isso devemos escolher aliados, pela partilha de ideias e de valores e não simplesmente pela semelhança das cores (sim, cores, porque é largo o espectro, eu vim de um país onde existe o preto e o preto nok). 

Em suma, caro amigo preto, enquanto fores machista, homofóbico e transfóbico, enquanto promoves ódio, não terás o meu apoio, e não me alinho contigo, aliás, nem sei como somos amigos, pois o que temos em comum é apenas a cor da pele. Entende, quando os outros pedem pelos direitos, não querem retirar os teus direitos e privilégios, tal como tu com os brancos, mas só querem viver com menos trancos e barrancos. Quando deixas outros oprimidos fazes tanto sentido como uma feminista homofóbica e racista.

Caro Amigo Preto (do panafricanismo)

Caro amigo pan-africanista preto, este mundo é um evento que não é a preto e branco, mas muito cinzento e estranho, e é também asiático, e também árabe, e muitos outros, sabes? 

Muitas vezes não entendo o teu protesto quando fazes textos onde falas do mal como uma criação branca. Não penso ser esse um gesto honesto, e mais lesto o aceito como um desvario completo. 

Quando falas contra o colonialismo europeu e o apagar de memórias, de histórias, de culturas e de línguas, o considerar outras religiões ímpias, com ilustrações não exíguas de grandes impérios africanos, que com muita perícia construíram maravilhas e dominaram vastos espaços, não te parece que estás a exaltar exatamente a mesma perfídia que críticas? 

Achas, por exemplo, que o império mandinga que tanto glorificas simplesmente apareceu de uma forma divina? Achas que um império que domina largos territórios consegue-o sem opressão e sem colonização e sem derramamento de sangue e sem o apagar das culturas dos povos que lá existiam e sem imposição das suas ideologias? Achas que os grandes templos egípcios foram construídos por empregados com contratos de trabalho e muito bem remunerados, e não por escravos tirados das suas terras e aldeias por um poder musculado? 

Vamos, por favor, focar-nos no presente, que não está bem, e reclamar por medidas e sistemas mais justos, sem, a todo o custo, glorificar as coisas horríveis do passado como feitos de bem. Por que achas que só podemos engrandecer a cultura ou a história africana usando sempre a bitola da história branca? (Podia aqui ter dito “europeia” ou “ocidental”, mas “branca” não deixa a rima falhar). Por que insistes em tentar validar as religiões africanas comparando-as com as brancas? Uma nunca precisou da outra para existir, portanto, por que estás a insistir nessa validação sem sentido? Ou será que não percebes que nesta tua ação usas a cultura europeia como padrão?

Caro amigo pan-africanista, não, não e não, nem todos os africanos seguiam o mesmo viés e partilhavam as mesmas fés, e nem todos somos descendentes de reis e de príncipes e de princesas e da nobreza, aliás pelas estatísticas, só uma percentagem ínfima seria. 

É sabido com certeza que muitos dos nossos antepassados viviam na merda sob pesadas penas de suas altezas, que muitas vezes usavam pessoas como canapé. (Não valida a tua história pelos vídeos da Beyoncé). E quando existe em qualquer sociedade algo como uma realeza, quer dizer que a justiça social tem fraqueza, porque um grupo de família é favorecido pelo sistema como tendo o direito divino de dispor dos restantes indivíduos. 

O domínio do colonialismo no nosso ninho foi por conta da atuação dos NOSSOS REIS que usaram as suas posições e a suas leis e aceitaram vender os seus súbditos aos europeus, em troca de benefícios para si e para os seus. Ou melhor, em troca de aguardente, tabaco velho, pólvora seco, armas nos joelhos e panos vermelhos. Isto no passado. O triunfo do capitalismo nos dias de hoje é porque os NOSSOS PRESIDENTES oprimem as suas próprias gentes, deixando-as indigentes, enquanto vendem os recursos naturais, dos quais essas tais, de modo subjaz, tiram a sobrevivência… e chamam a essa maleficência de desenvolvimento sustentável. Os nossos chefes babam-se pelo investimento estrangeiro… mas que investimento?… mas que estrangeiro?… fica atento quando eu falar com o amigo guineense, que eu vou desenvolver este objeto. 

O capitalismo, é certo, é uma criação branca, mas o capitalismo só ganha nesta jornada, com a sua banha de aranha, porque com a sua artimanha arrebanha as pessoas que estão predispostas a lixar as outras para se sentirem menos ocas. O capitalismo destrói o mundo, arrastando-nos a todos para o mesmo fundo, o capitalismo sustenta-se da luta de classes, corrente que é preciso quebrar, como também disse o Nkrumah que costumas referenciar. 

Mas se sabes e falas disso, por que continuas a falar de mundos divididos?, por que achas que és mais evoluído só por teres tido um diploma qualquer de uma escola qualquer de uma europa qualquer, e que portanto, deves ser o escolhido para mandar sobre os outros indivíduos? Por que falas da necessidade do antirracismo, mas achas que o feminismo, o homossexualismo, o transexualismo é modismo europeu que deve ser banido das sociedades africanas? 

Com todo o teu estudo sobre a história da África ainda não sabes das sociedades matriarcais ou das mulheres radicais nas lutas de libertação, ou é só uma tática tácita para dizer que não são válidas as práticas que tu condenas? Ainda não estudaste que a sexualidade nas sociedades africanas era e é mais complexa e mais lata do que as amarras do islamismo e do cristianismo? 

Pelamordideus, o que sabíamos nós da Europa e da sua herança quando brincávamos ao “pista-pista” aquando crianças? 

O colonialismo com a sua religião e o seu padrão trouxe os seus preconceitos abjetos para cima dos sujeitos dominados, mudou-lhes os hábitos, mudou-lhes os sonhos, mudou-lhes as metas e mudou-lhes os valores, mas hoje, quando até os feitores do colonialismo estão a despir-se desses preconceitos, tu continuas afeto aos mesmos e com zelo queres guardar esses defeitos que foram eles que te fizeram tê-los. 

Continuas a falar da inversão de valores, com todas as tuas vozes ainda dizes que devemos voltar às nossas raízes? Mas ninguém sabe distinguir os matizes de onde começam e acabam as nossas raízes. Mas estás a falar de que raízes, afinal? 

Mas serão aquelas raízes cheias de cicatrizes de quando se enterravam os reis com alguns petizes que os deixariam felizes na pós-morte? Mas será aquela raiz quando o homem podia ter quantas mulheres quisesse ou será aquela raiz quando a mulher podia ter quantos homens quisesse? Ou vamos voltar à raiz quando o ser humano ainda ululava como macacos, nem ferramentas usava e morava em buracos? Mas vamos voltar para aquelas raízes quando não existiam países, quando as tribos e os clãs se matavam por territórios e os mais fortes eram os juízes que faziam as diretrizes para justificar os próprios deslizes? Voltamos à raiz quando os reis nos podiam vender a eito porque tinham esse direito? Onde acaba a raiz? Vamos voltar para qual raiz e até que fundo da raiz? Achas, por exemplo, que o pano-de-pente, um dos maiores símbolos da cultura guineense, não nasceu do cruzamento de tecnologias locais e coloniais? O próprio kriol, base da minha vivência, vamos fazê-lo regredir à sua raíz de não-existência? “Sai li, ome”, como se conhecesses e soubesses onde começam e acabam as raízes!  

É engraçado e é idículo que fales tanto de raiz, mas levantes tanto o nariz para mostrar os diplomas e os títulos que foste juntar na Europa. Tu, que moveste as tuas raízes e absorveste doutras culturas, que alteraste a tua postura e a tua forma de pensar, agora queres voltar e dar cartas, como aquele que melhor enfralda conceitos sobre raízes, a pessoas que nunca desplantaram as suas raízes e que só queriam na verdade ter uma oportunidade como a tua, de poder ver a lua e desfrutar das suas miragens em outras paragens… porque a lua é que é nossa (?) - o guineense vai entender esta boca. Queres mesmo voltar às raízes, queres?  

Amílcar Cabral, a quem tanto referes, disse e cito-o textualmente: “Há muita gente que pensa que para a África resistir culturalmente, tem que fazer as mesmas coisas que já fazia há 500 ou há 1000 anos.” Página setenta e quatro, do livro “Análise dos Tipos de Resistência”. Com a sua experiência ele diz que a cultura evolui e ele conclui que devemos apagar os seus aspetos negativos no nosso espírito, e criar novas culturas, baseadas na nossa tradição, mas em adição com o que o mundo tem de bom para oferecer. Estás a ver? Disse isso há mais de 50 anos, não vamos regredir agora nos planos e nos discursos pan-africanos, quando os fundamentos já nos foram dados, e só temos de subir nos ombros de gigantes para olhar para horizontes muito mais distantes.  Caro amigo, o texto ficou muito grande, por isso vou dividi-lo em duas partes e mando a outra mais tarde.

Caro Amigo Preto (do panafricanismo e do guineense)

Caro amigo pan-africanista, como disse antes, dividi isto em duas partes e esta é a segunda. 

Enquanto te afundas em comparações inglórias sobre as histórias europeias e africanas, creio que só gastas energia necessária que podia ser aplicada em outras lavras, porque estás a tentar que a Europa te tome por igual. Se cada vez que falas da Guiné tens de a apresentar como ex-colónia de Portugal, continuarás a negar a sua autoridade e a sua autenticidade, porque a manténs refém de um passado de brutalidade e quase sem identidade, e quase impossível de superar o trauma… calma, falo disto mais tarde.

Não sei se fui claro nesta parte, mas acho que precisamos de uma terapia de choque que provoque uma mudança radical na forma de pensar de modo que consigamos alcançar o ideal do pan-africanismo.

Tinha me referido a diplomas da Europa. Nas suas escolas e universidades, estudas sobre a filosofia e sobre a AFRO-filosofia, estudas sobre o modernismo e sobre o AFRO-modernismo, estudas sobre a literatura e a cultura portuguesa da Baixa da Banheira, por exemplo, e sobre a AFRO-literatura e a AFRO-cultura. Não há paridade, por isso para de tentar equiparar ou tentar justificar o teu ser e a tua africanidade comparando-a com a europeidade, são manobras de distração para não te focares na tua mensagem. Por que tens que continuar a provar que és humano antes de poderes falar, quando o branco só precisa de falar? Por isso, fala sem usar as talas para comparar.

Também creio que te estás a enganar ao achar que se fores grafar tudo com Kapas, dabliWs e Ypsilons, estarás a ser mais afriKano… lê MYA KOWTO e vais entender o papo. Sou sempre a favor de apropriações e de transformações, mas não é por escrever, em português, áfriKA ou KrYoWlo, mas manter o resto do código, que os vai fazer mais nossos. Os próprios termos África e Crioulo foram denominações europeias sobre o nosso continente e sobre parte da nossa gente. Entendes? Raízes?

Falando em raízes, eu tinha falado de países. Uma das maiores crises que resiste ao pan-africanismo é a triste existência de países e de nações criadas sem noção pela concupiscência do colonialismo, geradas pela sevícia de uns brancos sovinas, em cima de uma mesa numa dita conferência. Tomamos a independência, mas mantivemos as fronteiras, trocamos os hinos e as bandeiras, adaptamos as leis e ficamos por aí, porque tínhamos tanta fome para gerir e para sermos os novos reis, sabíamos que se tentássemos fundir os nossos países (criações fora das nossas raízes), poderíamos perder o poder e poderíamos acabar a ter de nos submeter a um outro poder diferente daquele que julgávamos obter. 

Um exemplo para ver: a Guiné-Bissau não quis unir-se à Guiné, e depois a Guiné-Bissau e Cabo Verde se divorciaram, porque cada um destes povos acharam que os outros não iriam facilitar os encontros. Kwame Nkurumah e SékouTouré e Modibo Keita queriam unir o Gana e a Guiné Conacri e o Mali, mas a má língua capitalista operou e separou esses povos com intrigas externas e internas, cortando-lhes as pernas com golpes, atentados e assassinatos. Países pequenos preferiram seguir cada um o seu fio porque o colonialismo os dividiu em línguas diferentes com fronteiras artificiais e transformações culturais. 

Não gosto da existência de países, acho que o já o disse, mas confesso que sem isso de países, com todas as nossas diferentes matrizes, etnias e raízes, o problema seria ainda mais gigantesco. É tão quixotesco a luta de pessoas de etnias diferentes dentro da mesma nação, assim como é dantesco a luta de pessoas de etnias iguais em nações diferentes, só porque a bandeira é diferente. É isto que o colonialismo nos deixou, é isto que toda a nação herdou e é isto que nos apartou e ainda nos aparta e é isso que temos que tratar.

Caro amigo, falas quanto basta do pan-africanismo até que te enfartas, mas não perdes uma chance de falar que o nigeriano ou o gambiano ou o senegalês não faz falta na Guiné. Tu!, amigo, tu!, tu!, filho de um povo de emigrantes, filho de mistura de imigrantes.

Caro amigo, não vamos ser unidos, não vamos atingir o pan-africanismo enquanto somos levados na onda de nacionalismos, enquanto ao invés de pedirmos para apagar as fronteiras, queremos lá colocar barreiras e patrulhas pela sua linha inteira. Não podemos falar de pan-africanismo quando países vizinhos oprimem os seus vizinhos mais fracos por motivos mesquinhos só para dizer que se preocupam mais com os seus filhos. Devíamos partir do princípio de que os países africanos são filhos do colonialismo, e então por isso ficarmos mais unidos com os nossos vizinhos. Como já tinha dito num texto anterior: 

nason i un konseitu di kolon, un konseitu sin noson ki ta panha un tchon i nterga na mon di un grupu son pa tchokoli siparason.” 

As nações alimentam-se também da divisão, e o capitalismo controla as nações e dita as suas noções. Enquanto os nossos líderes não trabalharem na união, mas fazem ações que só incentivam mais divisões entre as nações e enquanto não passarmos por cima dessas questões e criar espaços de fusão, mas continuarmos a repetir que as nossas respetivas nações são mais dignas do que as vizinhas, o pan-africanismo estará para sempre adiado.

Eu acho por vezes que é uma preguiça, e uma desculpa esquisita para a nossa sevícia, continuar a culpar o colonialismo pelas merdas que temos feito, porque fomos nós que nos pusemos a jeito, e somos nós que ainda continuamos a pormo-nos a jeito. Qualquer líder que se levanta contra a opressão do capitalismo (a nova capa do colonialismo) ou queira traçar um destino fora das amarras do capitalismo, é detido, assassinado, destruído ou liquidado pelos próprios filhos africanos, a mando, é claro, dos donos do capitalismo, porque cada um se deixa ser seduzido sozinho pelo brilho dos seus próprios planos. Um líder africano chega ao poder e manda logo o povo se foder, e envia os filhos para a Europa, compra casas na Europa, rouba do povo e manda para a Europa para os seus cofres, mas de chofre sofre um golpe e desprovido do poder a Europa faz dele inimigo e ele vê o seu “património” retido pela Europa num offshore escondido. Mas apesar disso continuamos a alimentar o círculo, dançando nesse circo para o agrado do capitalismo. A União Africana tornou-se boçal e um simples serviçal do FMI e do Banco Mundial.

Por isso, caro amigo é que eu digo, quando endereças o pan-africanismo apenas ao homem preto, que estás a ser muito ambíguo, e que desse modo excluis muitas áfricas e muitos africanos. O pan-africanismo não é uma questão da raça preta, Obama era preto quando destruiu a Líbia em benefício dos Estados Unidos, e agora aqueles estão a praticar esclavagismo de novo, vendendo os seus e os de outros povos. Havia soldados pretos na tralha militar americana que invadiu a Somália… Deus, havia soldados pretos, na mata, a nata que mata, nascidos na Guiné, lá dentro, bem no centro, que bateram o pé e se tornaram comandos africanos e lixaram os seus próprios manos.

Portanto, é muito claro que não é uma luta de cor, mas de ideologia, aliás Amílcar Cabral já sabia que seria difícil construir independência sem ideologia, por isso ele ensinou uma ideologia baseada na “unidade e luta”, unidade, para acabar com as classes e outras diferenças, e luta, contra os que fomentam a divisão em classes e contra nós mesmo para não nos descairmos e comprarmos a ideia da classe. Aliás, lembra-te Cabral falou que não lutava contra os tugas (brancos, aspas minhas), mas contra o sistema que oprimia também os tugas. Portanto, questão é ideologia, não cor.

Creio que o que é preciso no pan-africanismo é criar sistemas alternativos e independentes do monopólio do capitalismo: em vez de UNIversidades, vamos criar PLURIversidades; em vez de UMA economia fiduciária centrada e controlada pelo capitalismo, vamos criar VÁRIAS economias necessárias, baseadas no espírito dos nossos povos, de acordo com as suas formas de produção. A questão é que não haverá nunca o pan-africanismo, enquanto a África quiser continuar a jogar no casino do capitalismo, porque a banca ganha sempre. Tenhamos isto em mente. Mas vou falar disto de uma forma mais coerente e menos célere num texto mais à frente. 

Também é preciso repensar a democracia, descentralizá-la e adequá-la às nossas sociedades (não só africanas, como mundial), diluir o poder na mão do povo e tirá-lo do Banco Mundial, do FMI e dos que controlam o capital, porque a dita democracia é uma clara oligarquia e não o poder do povo, a dita democracia é vazia, porque é a ditadura do capital, e como tal é capitalocracia.

Caro amigo pan-africanista preto, vou deixar isto em aberto, depois podemos falar mais sobre este texto, pois já está muito denso. Agora vou falar apenas com o amigo guineense, mas penso que podes acompanhar a conversa.

Só para fechar, não foi a máquina colonial, nem foi o branco que criou o mal e o levou para África, lembra-te disso. África não era, não é, e nunca vai ser um paraíso onde todos se sentam à volta da fogueira a partilhar frutas, a contar as riquezas e a cantar aleluias, porque também nós, africanos, somos meros seres humanos, e como humanos somos todos falhos. 

E enquanto não corrigirmos as nossas falhas sem nos dividirmos em muitos pequeninos, duvido que vamos conseguir atingir os ideais do pan-africanismo.

por Marinho de Pina
Mukanda | 24 Maio 2021 | discriminação, feminismo, guineense, mulheres, negritude, panafricanismo, política, religião