A minha bandeira

1. Um destes dias uma amiga de longa data contou-me que sonhou comigo. Nesse sonho, ela estava a passar pela Rua de Lisboa, no coração do Mindelo, e viu-me. Olhou e reparou num estranho pormenor: apesar da intensa luminosidade que conferia a uma das mais movimentadas artérias da cidade um colorido tão característico, eu estava em tons de cinza, como um efeito numa fotografia digital. Tudo era cor, vida e eu ali, a preto e branco. Apesar desse sonho ter acontecido muito depois de já ter tomado uma das mais difíceis decisões da minha vida, ele explica muita coisa, como quase sempre explicam os sonhos da gente. Mindelo pode manter a sua cor, não duvido. Mas, de otimista militante transformei-me, por força das muitas circunstâncias que vão moldando o nosso quotidiano, num pessimista irritante. Enquanto antes eu defendia que devíamos transformar os problemas em oportunidades, atualmente a desesperança atacou o meu coração e aquele bordão “sim, eu acredito no Ser Humano”, que tantas vezes repeti ao interpretar o monólogo “As Palavras de Jó” foi ficando mais ténue, como uma paisagem em dias de bruma seca. Confesso: vou – como tantas vezes exaltou o meu pai, José Mário Branco – “mudar de vida” porque já não estou (sou) feliz. E a vida é curta demais para nos acomodarmos num assomo de venenosa quietude.

foto de João Brancofoto de João Branco

2. Sim. Depois de 30 anos, vou sair de Cabo Verde e viver num outro país, numa outra cidade. Saio de Cabo Verde, mas Cabo Verde não sai de mim, nem poderia, nem se eu, numa manifestação de inusitada ingratidão, o quisesse arrancar a duras penas. Também por isso, apesar do choque que possa causar, vou tranquilo e repito aquilo que já escrevi e afirmei publicamente várias vezes: esta será sempre a minha bandeira. No chão destas ilhas nasceram Laura, Inês e Isabel, minha continuação na vida. Inspiradas nestas montanhas, neste mar, neste povo, encenei mais de setenta espetáculos de teatro, e fui entendendo, pouco a pouco, o que é ser-se crioulo, também na arte cénica. Refleti e estudei profundamente sobre a temática, numa pesquisa sustentada numa prática tantas vezes frenética, mas sempre ancorada no poder e força do coletivo. Com esse poder de apropriação pujante e vigorosa, autores como Shakespeare, Molière, Lorca ou Saramago se tornaram, também eles, e através do teatro, um pouco crioulos. 

3. Mas não foi apenas neste assombro de querer dar azo a essa premonição fantástica do filósofo da Martinica Édouard Glissant, que anunciou de forma desassombrada o quanto “a crioulização do mundo é inevitável”, que o teatro se manifestou no meu dia-a-dia, junto de tantos e incríveis artistas. Ter colocado em cena obras de Germano Almeida e Arménio Vieira (os nossos dois Prémios Camões), de Mário Lúcio Sousa e Caplan Neves, de Yannick Fortes, Lisa Reis e Rocca Vera-Cruz, foi, em cada um dos momentos, um egrégio privilégio e um desafio. Algo que fomos encarando, com cada equipa que se juntava aos projetos, com abnegação e sobretudo, com um inabalável amor pelo teatro e pelo país. Isto é muito importante: não tem como fazer teatro em Cabo Verde se não carregarmos no nosso âmago um profundo amor pela arte e por estas ilhas. A minha saída deste território de “esperança do tamanho do mar” em nada vai mudar esta realidade: continuarei a fazer teatro em Cabo Verde, mas desta vez num espaço diaspórico que permitirá outros estímulos, novos combates e, certamente, incríveis conquistas.  

4. E assim, de um momento para o outro, a partir desta decisão de “mudar de vida”, parece que o otimismo volta sem pestanejar. E é precisamente a partir desta perspetiva de “mudar de vida” que uma das pessoas mais incríveis que conheci, o meu pai, compôs um longo tema, um spoken word, que tinha precisamente esse título: “Mudar de Vida”. O filme que foi feito sobre a sua vida, também tem o título, “Mudar de Vida”. Como poderia eu, com este DNA a correr-me nas veias, manter-me anestesiado e adormecido pelo embalo das ondas da Laginha? Não podia. E lá como cá existirei enquanto coletivo, enquanto comunidade. Como escreveu nesse tema, José Mário Branco, “Uma vida separada, não é vida nem é nada. São corpos minerais, nem plantas nem animais. Pois quem vive distraído à conta do seu umbigo. Quem não é capaz de dar a vida pela vida dum amigo. Está sozinho com os outros, está sozinho consigo.” E é com esse pressuposto que seguirei levando comigo esta bandeira, ainda que possa haver quem pense que não a mereço, por obra e graça da minha árvore genealógica.

5. E as árvores estão aí, dando os seus frutos, resultado de tantas sementeiras num terreno que, por vezes, nos parecia demasiado árido. O facto é que regado com doses variáveis de suor, paixão, estudo e atrevimento, as plantas novas, o presente e o futuro foram-se construindo e anunciando, safra a safra, pedra a pedra, como escreveu o poeta. E as árvores são preciosas num país tão seco, e são fortes porque se fizeram assim, de prolongados partos de dor e amor. Essas árvores vão continuar a ser regadas e a dar-nos a sombra tão apreciada, estou certo disso. Estão aí muitos para o garantir, como “sentinela de mares e ventos, perseverantes”. Não apenas no Mindelo, mas por todo o país. Tão certo como as coisas certas. 

6. O que levo, além do tanto que fica plantado e floresce por aí? Gratidão, sobretudo gratidão. Sou grato a todos os que comigo se cruzaram ao longo de tantos anos. Sou grato aos amigos que me deram afeto e amor, porque esse é meu principal combustível. Sou grato àqueles que não gostam, que me criticam, porque me mantiveram desperto, atento, consciente que o tempo nos engole se estivermos parados num mesmo lugar, confundindo o insignificante ponto onde pisamos com um trono que ninguém pode alcançar. Sou grato a tantos artistas com quem partilhei experiências, de todas as áreas e que mereciam mais, tanto mais! Sou grato às centenas de alunos a quem fui transmitindo o pouco que sei e aos milhares de espetadores que sempre se mostraram tão generosos quando confrontados com o produto do meu, no nosso, trabalho. É com este espírito que continuarei a minha caminhada, agora enquanto emigrante de dupla condição: o que regressa mas sobretudo o que parte em busca de uma vida melhor. O que parte também no ensejo de um dia voltar. Se ca bado ca ta birado, como profetiza Eugénio Tavares no seu poema-canção, que hoje evoco, nesta hora di bai. E nada é mais crioulo do que isso. 

7. Todo eu sou gratidão. E esta será sempre a minha bandeira. Obrigado, Cabo Verde. 

por João Branco
Mukanda | 5 Maio 2023 | Cabo Verde, Centro Cultural Português, João Branco, Mindelo, teatro