O si-mesmo como sujeito imperial Literatura colonial dos anos 1920: o caso de Moçambique - INTRODUÇÃO

Sinopse

Com este ensaio propõe-se um percurso que se quer exaustivo da literatura colonial portuguesa dos anos 1920 relativa a Moçambique. Numa primeira parte, são facultados dados contextuais e definidos conceitos operatórios de análise indispensáveis para se empreender o estudo das narrativas coloniais e do seu tempo histórico. São depois apresentados dados biográficos dos principais autores desse período, bem como as suas obras. A análise centra-se em seguida nos dois grandes vetores, geográfico e morfológico, de constituição e divisão dos sujeitos coloniais. A percepção morfológica do outro baseada num referencial geográfico encontra-se diretamente ligada às representações do pensamento racial português, desenvolvidas em larga medida a partir da mitologia ariana e do darwinismo social. Os textos em estudo mostram como as noções de «luta de raças» e de seleção das comunidades mais aptas contribuem para a elaboração de uma «estratégia da crueldade» e para o desencadear de fluxos de morte de grande intensidade. O duplo processo de desterritorialização das populações pelas conquistas e da sua reterritorialização com a transformação social do espaço pelo capitalismo colonial tem lugar num contexto político totalitário. A instauração da ditadura racial e a generalização do terror geram a redução dos colonizados a uma condição de servidão económica e sexual. O desejo colonial permite também a emergência de formas de hibridismo social ou cultural e o questionamento da autoridade discursiva, imediatamente contrariados pelo desenvolvimento de uma política de domesticidade colonial.

 

Introdução

As narrativas coloniais dos anos de 1920 sobre Moçambique são uma das múltiplas cicatrizes escondidas sob a opacidade das representações contemporâneas do passado imperial português. Começando a desvendar essa verdade do império enunciada pelo discurso africanista, a nossa investigação situa-se no dealbar da desconstrução das complexas mistificações, ao mesmo tempo terríveis e tão tranquilizadoras, que invariavelmente dão forma ao sujeito nos países colonizadores. Para Derrida, a cicatriz deixada pela circuncisão constitui o signo real do início das fantasias metafóricas sobre a «raça» e sobre a história com que se constrói o si mediante linhas narrativas inconscientes. Os textos coloniais aparecem-nos também como ferida insanável onde se escondem as representações ficcionais que continuam a constituir e dividir os sujeitos por «raças» e por um regime de verdade que os projeta como ex-colonizadores ou ex-colonizados. A literatura colonial foi um elemento central do discurso sobre a colónia portuguesa da África Oriental entre o fim da conquista, por altura da I Guerra Mundial, e a expressão das primeiras vozes pós-coloniais por altura do final dos anos quarenta. Lendo hoje as obras literárias coloniais, apercebemo-nos da amplitude desse trauma no interior do discurso africanista. Deparamos com um corpus muitas vezes revelador do que há de mais tenebroso no ser humano, «documentos de barbárie» nas avisadas palavras de Francisco Noa.

Questionar a identidade hoje em dia nas antigas metrópoles coloniais, que se tornaram lugares de multiculturalidade hierarquizada, à imagem dos espaços coloniais de antigamente, permite pôr em causa de forma mais incisiva conhecimentos e práticas imperiais. A ferida aberta pela humilhação racial ficou exposta e interpela a partir de agora a construção narrativa das identidades culturais. O nosso projeto de estudo de textos coloniais relativos a contextos históricos de segregação severa resulta dessas experiências atuais de uma colonialidade persistente, transversal à multiculturalidade portuguesa. A análise da construção textual de diferenças negativas com base na perceção da morfologia permite compreender como se instituem os mecanismos de uma dominação essencialista. A retórica racial dos autores coloniais explica sistematicamente esta essência do outro não-branco como especificidade de uma cultura inferior. O nosso estudo pretende desmontar esse discurso articulado pelas obras coloniais.

Desenvolvemos ao longo da nossa investigação uma hermenêutica da colonialidade a partir das suas formas de expressão escrita com intenção estética, como tentativa de reinscrever na história aquilo que aparece liminarmente rejeitado ao mesmo tempo que assombra todas as narrativas coloniais: a humanidade do colonizado. O discurso colonial português vai ser elaborado para se apropriar dos seus outros colonizados ao escrevê-los. O propósito do nosso estudo inscreve-se no processo mais vasto de descolonização deste pensamento. Outras histórias, outros significados, são detetáveis nas margens, nas entrelinhas da escrita colonial, este significante que propõe uma história, a «História», como «grande ideal imperialista», segundo a expressão usada nos primeiros anos do século XX por Eduardo Lupi.

Reduzido número de estudos foi consagrado aos textos estéticos coloniais portugueses, em particular aos que são anteriores aos anos 1950. Assinalemos a obra resultante da tese de doutoramento de Francisco Noa, Império, Mito e Miopia: Moçambique como Invenção Literária, publicada em Lisboa em 2002, dedicada à literatura colonial portuguesa sobre Moçambique. A obra de F. Noa incide principalmente sobre o romance do pós-guerra, em particular dos anos sessenta e princípio dos anos setenta. Mencionaremos ainda, quanto à literatura colonial dos anos de 1924 a 1939, relativa a Angola, a tese de doutoramento de Alberto Oliveira Pinto. Sobre o concurso de literatura colonial, entre 1926 e 1936, pode consultar-se a tese de mestrado de Ana Maria do Rosário Pedro. A. Oliveira Pinto publicou também um longo artigo sobre o concurso.

A problemática fundamental desenvolvida ao longo do nosso estudo encontra-se enunciada pelos próprios autores dos anos de 1920, em momentos de introspeção situados em pontos estratégicos dos textos. Assim, em junho de 1926, depois de ter percorrido Angola durante mais de um ano e antes de se dirigir a Moçambique, o jornalista libertário Julião Quintinha depara com a imensidão das águas do rio Congo:

 

O quarto que me deram abre sôbre jardins, e fica em frente do rio Zaire. (…)

De noite abro as persianas, quando anda luar nas palmeiras, e passam remadores negros turvando as águas. E ficome a scismar em face do grande rio africano, e pergunto a mim próprio como me encontro aqui!… 

(AM, p. 174)

 

Rodeado pelos sons da floresta e pela presença desses seres que, na sua opinião, o progresso fará um dia integrarem a humanidade, Quintinha é acometido, com vinte e sete anos de diferença, pela dúvida de Joseph Conrad, expressa na pergunta formulada através do seu personagem Marlow: que sentido faz a presença do homem europeu no espaço imperial?

Brito Camacho, um político conservador muito ativo durante a 1ª República, autor de algumas das narrativas de viagem mais populares da década de 1920, interroga-se do mesmo modo. Nomeado Alto-Comissário, chega a Moçambique a 26 de março de 1921. Entre o fim de julho e meados de outubro, empreende uma longa viagem através da colónia. Transportado em liteira, percorre o Barué, território recentemente reconquistado (em 1917, após uma primeira campanha em 1902), situado no interior da colónia, a sul do rio Zambeze. Acompanham-no três outros europeus e uma centena de carregadores e de boys africanos. Por altura de uma paragem noturna, Camacho interroga-se: 

 

A temperatura baixou, está frio.

Os pretos coitaditos, preparam o seu agasalho, isto é, acendem as fogueiras à volta das quais hão de dormir, sem cobertores, sem manta, tão desgraçados no seu aviltamento secular que nem talvez olhem com inveja para as barracas em que nós dormiremos, os brancos, numa cama de lençoes , e com muita roupa em cima. (…)

Não posso conciliar o somno, e como também não posso ler, vá de cogitar sobre coisas d’Africa, o que ela foi, o que ela é, chegando a parecer me um sonho estar na margem do Inhacangara, metido numa barraca de campanha, á orla do mato bravio, onde habitam feras – o leão, a hiena, o leopardo, o elefante.

(TL, p. 162163)

 

Por que meios realizou o homem europeu esse sonho de se apropriar de uma estranha geografia longínqua e submeter os seus habitantes, reduzindo-os a um estado de quase escravatura? Em Lourenço Marques, já Camacho se interrogava, não tanto sobre o processo histórico que levou os africanos a serem dominados, mas sobre a própria natureza do sentimento de superioridade dos europeus: 

 

Quer me parecer que passando o Equador os individuos, mesmo os de baixa condição, se atribuem um valor que não teem, e que nunca supozeram ter enquanto não abrasou o sol dos tropicos. Uma vez em Africa, rodeados de pretos ainda longe da civilização Europea, sofrem quasi sem darem por isso uma hypertrophia do eu, uma ampliação da personalidade, que os deforma sem os engrandecer. 

(TL, p. 25)

 

 

Como se constrói este sujeito imperial e qual é o fundamento das representações da sua própria superioridade e da inferioridade das populações dominadas? Paulo, jovem tenente da marinha de guerra, personagem principal do romance Zambeziana, de Emílio San Bruno, publicado em 1927, encontra-se na Zambézia para uma missão de alguns meses. Este «modesto oficial, erradio e vagabundo» (Z, p. 63) assume, pela voz do narrador, o «fardo do homem branco» de se tornar colonizador, poucas semanas após a sua chegada a Moçambique:

 

O que é um período de vinte, trinta, sessenta anos, na marcha triunfal da civilização?!…

Ah! mas emquanto ela não chega, o colono tem que sofrer com paciência…

E Paulo também era um colono… (Z, p. 141)

 

Quais são os sentidos da metamorfose do homem ou da mulher brancos idos de Portugal em colonizadores assim que desembarcam no espaço colonial? Como explicam a si próprios a sua presença e a sua estranheza? Quais os modos da narração dessa transformação do eu em sujeito imperial? Que papel têm aí o africanismo esclavocrata ou o pensamento racial desenvolvido em Portugal entre os anos 1870 e os anos 1940? Como se integra na construção desta nova «identidade» a experiência dos fluxos de morte da conquista e a do exercício do terror, com as novas formas de escravatura ou o abuso sexual generalizado? 

As narrativas de vida e as obras de ficção produzidas na colónia por altura do apogeu do imperialismo e da instauração do fascismo põem de imediato a questão da especificidade dos textos coloniais com intenção estética. A narrativa colonial, principalmente no período imediatamente posterior à conquista, constitui antes de mais uma ficcionalidade do eu que se descreve a si-mesmo como sujeito imperial pela narração do processo da subjetivação colonial. A identidade genérica destas tentativas de autoficção é muitas vezes ambígua, subordinada à construção textual das «identidades» coloniais. A análise da ficcionalidade inerente ao processo de subjetivação colonial constitui um dos eixos centrais da nossa investigação. No interior deste processo, o sujeito colonizador constrói-se como sujeito dominante, construindo simultaneamente a diferença do sujeito colonizado. O enunciado das ficções do discurso estereotípico sobre as «raças» constitui uma rejeição dessa diferença, vista como negativa. A literatura colonial dos (e sobre os) anos 1920 relacionada com Moçambique compõe-se, na sua maioria, de narrativas de vida. Veremos como, tanto nas narrativas de vida como nas obras de ficção, a ambiguidade das relações entre o vivido e a ficção estereotípica é imediatamente percetível com maior ou menor intensidade. Com efeito, nas categorias genéricas relativas aos textos narrativos coloniais, as fronteiras entre a descrição do real ou do vivido e o nível ficcional são muitas vezes aleatórias. Nas narrativas coloniais, encontra-se quase sempre a reprodução de um discurso estereotípico racista decorrente do universo de signos que informam o imaginário colonial através da vivência colonial do autor. A ficcionalidade resulta das amplas vias que o estereótipo abre à fantasia do colonizador, enunciador do discurso da dominação racial baseado na fixação fetichista numa pureza e originalidade míticas da «raça branca».

A reprodução do discurso estereotípico racista incide tanto sobre ficções negativas acerca dos colonizados quanto sobre ficções acerca das qualidades positivas do sujeito colonizador. O processo de subjetivação colonial confunde-se diretamente, no caso das narrativas de vida, como as memórias ou as narrativas de viagem, com o que Alain Vaillant designou por «poética histórica da subjetivação». Pelo seu texto, o autor constrói-se como um outro, um sujeito imperial: atribui-se pseudo-valores positivos, representações de valores reificados fantásticos e metaforizados no fetiche da pureza e da originalidade raciais perante outros colonizados. A estes outros são atribuídas taras de degenerescência, com a fixação da sua «identidade» por estereótipos negativos. A homodiegese fetichista do autor colonial constitui uma invenção discursiva do si racializado no seio de um duplo processo de subjetivação. Por um lado, estamos perante a subjetivação autoral em relação ao texto. Por outro, perante a subjetivação colonial em relação ao contexto das relações entre colonizador e colonizado, em que o discurso estereotípico torna impossível a comunicação porque o lugar do Outro é reificado pela fixação racista. O conceito de «Outro» foi desenvolvido por Jacques Lacan desde 1953: «O Outro é pois este lugar onde se constitui o eu que fala com aquele que ouve, sendo o que um diz já a resposta, cabendo ao outro decidir ao ouvi-lo se aquele falou ou não.» O enunciado do colonizador toma forma ao construir a imagem do outro como seu duplo reificado em diferença negativa e como duplo de si-mesmo na própria perceção do colonizado, homem real arrancado à sua história e ao seu tempo. Esta falsa consciência do colonizador engendra o Outro como espaço de um autismo mórbido resultante da impossibilidade de reconhecimento pelo outro coisificado. Este, desdobrado em homem selvagem ou em homem bárbaro, também não pode fazer-se reconhecer no Outro colonizador, lugar por sua vez reificado como representação do homem civilizado. A constituição do sujeito colonizador assume quase sempre a forma de uma homodiegese, afirmação pessoal da simbiose entre aquele que conta e o homem-modelo, o homem-civilizado. Donde a profusão de narrativas de vida na biblioteca colonial, sobretudo durante o período da conquista do território e da primeira fase da colonização.

No seu estudo sobre as narrativas de vida, Georges Gusdorf assinalou a afinidade da narrativa de viagem ou da narrativa de guerra com as memórias enquanto testemunho histórico personalizado de um sujeito que entra ou pretende entrar na História. Vê nestas diferentes formas de testemunho não uma «escrita do eu», mas antes uma «literatura do eu». Neste sentido, preferimos designá-las, tendo em conta o contributo teórico de Paul Ricœur, «literatura de si-mesmo». Para Ricœur, a identidade pessoal, o si, ganha forma no interior de uma dialéctica do próprio e do outro:

 

Si-mesmo como outro sugere desde logo que a ipseidade do si-mesmo implica a alteridade num grau tão íntimo que um não se deixa pensar sem o outro, que, pelo contrário, um passa para o outro, como se diria em linguagem hegeliana. Ao «como» gostaríamos de ligar o significado forte, não apenas o de uma comparação — si-mesmo semelhante a outro —, mas sim de uma implicação: si-mesmo enquanto … outro.

 

Segundo Gusdorf, a escrita do eu é ditada por um desígnio íntimo. O seu objetivo não é forçosamente comunicar, pois responde sobretudo a uma necessidade do sujeito para com si-mesmo, em relação a si-mesmo e dirigido a si-mesmo. O dito de comunicação, pelo contrário, é intrínseco ao facto literário; a intenção de se dirigir a um recetor, um narratário ou um leitor implícito é explícita. As narrativas de vida coloniais partilham acima de tudo o desejo do autor de se constituir como civilizado pelo repetitivo confronto e simultânea rejeição que constroem o outro colonizado como selvagem ou bárbaro. O desígnio imperativo destas narrativas é fazer-se reconhecer nos outros civilizados aos quais o autor se dirige. As narrativas de viagem ou de guerra, ou as memórias de sujeitos coloniais adquirem assim um valor de troca distributivo, uma espécie de circularidade intertextual pela qual os textos são reconhecidos pela comunidade dos sujeitos colonizadores que os autores por sua vez integram.

Que entendemos por literatura de si-mesmo como outro, como sujeito imperial: em que reside esta alteridade? A ipseidade constitui-se em relação ao sujeito colonizado, engendrado ao mesmo tempo que o sujeito colonizador, sujeito do enunciado? Não será antes projetada num outro sujeito colonizador a quem se dirige o enunciador? Será que não participa assim da exclusão radical do sujeito colonizado do lugar da comunicação, construido pelo sujeito colonizador ao mesmo tempo que este se constrói em sujeito da enunciação? As narrativas de vida coloniais, como testemunhos históricos personalizados de colonizadores dirigidos à comunidade dos colonizadores, ou dos potenciais colonizadores, assentam numa espécie de pacto da homodiegese racial. Phillipe Lejeune considera que o pacto autobiográfico é a afirmação no texto da identidade do «nome» (autor-narrador-personagem). O pacto da homodiegese racial seria a afirmação no texto da identidade do sujeito imperial (autor-narrador-personagem-narratário-leitor), homem civilizado, representante da modernidade ocidental.

As narrativas do pós-conquista integram o magro campo da literariedade de Moçambique insuflando-lhe uma dinâmica a partir deste momento imparável. Ganha forma uma pergunta: qual é a especificidade das relações textuais entre estas narrativas que o poder já instituiu como obras de «literatura colonial»? Precisemos primeiro as noções de literariedade e de campo relativamente ao espaço do Moçambique colonial. Mais que a abordagem factual ou funcional das narrativas de vida ou das obras de ficção que interessou os africanistas académicos em diferentes domínios (história, sociologia, museologia, etc.), o estudo do papel destes textos na ativação e reprodução do discurso colonial releva sobretudo da análise comportamental. As narrativas coloniais são, em geral, marcadas por uma relativa mediocridade estética. Neste sentido, retomámos a definição de «literariedade» de Roman Jakobson como «o que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte». Em geral, no caso da biblioteca colonial relacionada com Moçambique, encontramos um desígnio de literariedade. Com efeito, as obras coloniais apresentam uma qualidade estética que muitas vezes não foi além do nível das intenções. A literariedade de narrativas cujas relações hipertextuais permitem categorizar um certo número de classes genealógicas coloniais (romance, conto, memórias, autobiografia, narrativa de viagem, narrativa de guerra, narrativa historiográfica, correspondência, etc.) define-se assim não tanto em termos qualitativos como ao nível do investimento ficcional de que o texto é portador.

Entendemos sob a noção de campo, na esteira de Pierre Bourdieu, uma entidade compósita, heterogénea, espaço de confrontos sobre a legitimidade estética. O campo da literariedade relacionado com Moçambique emerge nos meados do século XIX com a publicação da narrativa de viagem de Lacerda e Almeida, em 1844-1845 (redigida em 1797-1799), e em seguida da de António Gamito, em 1854, vindo a tomar forma primeiro com as grandes narrativas de viagem de David Livingstone (1857 e 1865), e mais tarde com as de Serpa Pinto ou de Brito Capelo e Roberto Ivens, publicadas na década de 1880. Desde os seus primórdios, com a intervenção da corrente política próxima de Sá da Bandeira, este campo mostra-se simultaneamente determinado pelo poder colonial e em busca de autonomia em relação ao poder. É determinado pelo poder colonial tanto através do exercício direto do poder de estado como pelas tomadas de posição no seio do próprio campo. Estas tomadas de posição podem ser favoráveis a essa intervenção do poder ou opostas ao poder colonial, logo formuladas em ambos os casos em função desse mesmo poder. Deste modo, os diferentes intervenientes tentam alargar a autonomia do campo quer por posições de afirmação estética de uma autenticidade colonial, quer por posições de representantes de uma modernidade cultural ocidental (como é o caso do círculo literário constituído em redor de Rui Knopfli e Eugénio Lisboa a partir da década de 1950), ou então por posições de afirmação da expressão estética dos colonizados. Referindo-se ao campo literário em França, que emerge durante a segunda metade do século XIX, Bourdieu precisa:

 

O campo literário (etc.) é um campo de forças que atua sobre todos aqueles que nele entram e de maneira diferencial conforme a posição que nele ocupam (por exemplo, para tomar pontos muito afastados, a do autor de peças de sucesso ou a do poeta de vanguarda), ao mesmo tempo que um campo de lutas de concorrência que tendem a conservar ou a transformar este campo de forças. E as tomadas de posição (obras, manifestos ou manifestações políticas, etc.), que podemos e devemos tratar como um «sistema» de oposições para efeitos de análise, não são o resultado de uma qualquer forma de acordo objetivo, mas o produto e o palco de um conflito permanente. Ou seja, o princípio gerador e unificador deste «sistema» é a própria luta.

 

O condicionamento do campo da literariedade pelas contradições do poder colonial significa a própria existência deste campo enquanto entidade dotada de um certo grau de autonomização. Neste sentido, este condicionamento é de natureza completamente distinta da dependência em relação ao poder de estado sentida pelos autores relacionados com o conjunto textual que podemos designar como «campo anterior ao campo». Esta designação cobre as narrativas de viagem e de residência dos séculos XVII e XVIII e início do século XIX, ou as dos naturalistas, com as suas narrativas das viagens filosóficas do século XVIII. 

A ambivalência do discurso estereotípico, entre a reprodução das mistificações sobre a raça e a cultura e o registo das vivências condicionadas por estas ficções, invade todos os géneros de textos coloniais com intenção estética, engendrando uma ambiguidade genérica mais ou menos declarada. A designação «literatura colonial» nos anos 1920 (ou mesmo até ao fim do período colonial) cobria um conjunto de obras que não se limitavam à poesia, aos géneros canónicos da ficção, nem mesmo às narrativas de vida ou às narrativas historiográficas. A designação era alargada a toda a espécie de textos exteriores às ciências exatas e tributários da ficcionalidade do discurso africanista. Depois de termos analisado um número considerável de textos narrativos coloniais portugueses, sobretudo relativos a Moçambique e publicados até 1975, adotámos também este último elemento constitutivo da literariedade colonial como critério para definir a amplitude do campo da literariedade.

 

O nosso corpus está constituído pelo conjunto dos textos com intenção estética em língua portuguesa dos (e sobre os) anos 1920 relativos a Moçambique. Todos estes textos integram o corpus principal, com exceção do romance Herói derradeiro de Joaquim Paço d’Arcos (1933) da coletânea epistolar do jornalista crioulo João Albasini (1925), da narrativa de viagem de Veva de Lima (1928, ver infra) e de quatro obras que consideramos de menor importância e foram integradas no corpus anexo. Entre os textos com intenção estética dos anos 1920 predominam as narrativas de vida. Um único romance e quatro contos sobre Moçambique foram publicados em Portugal em formato de livro durante a década. Predominam ainda as duas grandes classes genealógicas do período anterior à consumação da conquista, narrativas de viagem e narrativas de guerra, embora os textos apresentem a partir de agora características distintas. Terminadas as conquistas, a narrativa de guerra relativa a Moçambique desaparece como género pelos meados da década de 1930. Em 1919 e 1924 são publicadas duas obras de sucesso dedicadas às campanhas da I Guerra Mundial no norte da colónia, Tropa d’África, de Carlos Selvagem (quatro edições) e Epopeia maldita, de António de Cértima (cinco edições). Editada a expensas do autor e com reduzida difusão, uma outra obra apocalíptica sobre estas campanhas, Condenados: A Grande Guerra vivida às portas do degrêdo, de Simões Alberto, é publicada em 1933. Estas três narrativas são incontornáveis para compreendermos a intensidade e a recorrência dos fluxos de morte no discurso africanista português. Daqui em diante, a partir do fim das conquistas, a narrativa de guerra vai aparecer disseminada no interior de um grande número de obras coloniais. A evocação dos episódios da luta pelo império nas décadas precedentes é omnipresente na literatura dos anos 1920, a par de passagens que celebram a glória imperial pré-moderna como caução discursiva constituinte da legitimação do direito à posse da terra. A narração da conquista está amplamente presente na narrativa historiográfica, género literário praticado em Moçambique a partir do virar do século por Eduardo Noronha e que ressurgiu em 1930 com a publicação, por Francisco Toscano e Julião Quintinha, de A derrocada do Império Vátua e Mousinho de Albuquerque (três edições, primeiro prémio do concurso de literatura colonial em 1930). Estes autores convocam no seu texto as grandes narrativas dos estrategas das campanhas de conquista do virar do século, em particular as de António Enes (1893 e 1898) e de Mouzinho de Albuquerque (1896 e 1899). A análise comparada destas narrativas, assim como da de Azevedo Coutinho sobre a primeira campanha do Barué (1904), com a obra de Toscano e Quintinha e com as numerosas digressões históricas presentes nos textos dos anos 1920 fornece elementos chave para compreendermos a função da banalização do terror na formação da personalidade imperial.

As campanhas de conquista são, por exemplo, objeto de várias crónicas da coletânea publicada por volta de 1918, seguida de um segundo volume em 1929 (duas edições, segundo prémio do concurso de literatura colonial em 1930), por Carlos Roma Machado Maia. Com estes dois volumes encerra-se uma longa linhagem, que remonta ao século XVI e ao início da influência portuguesa no Oceano Índico, de obras caracterizadas pela presença de dois modos de narração complementares. Trata-se de textos em que a evocação de uma espécie de residência itinerante nas feitorias, que muitas vezes se prolonga por décadas, se intercala com a narração de extensas viagens pelo interior dos territórios ao longo das rotas estabelecidas do comércio africano. As primeiras narrativas de residência propriamente ditas sobre Moçambique surgem nos anos 1920 com os três volumes de crónicas de Gavicho de Lacerda (1920 e 1923, 1925, 1929) e o do coronel Paes Mamede (1930). Gavicho de Lacerda casa-se e torna-se proprietário de terras pouco depois da sua chegada à Zambézia, onde permaneceu mais de cinquenta e três anos, até à sua morte. Nas suas obras, recorda sobretudo episódios ocorridos na região entre 1892 e o momento da eclosão da I Guerra Mundial, entre eles a conquista do território da Manganja da Costa e em seguida a do país Baruè, com Azevedo Coutinho, em 1898 e 1902. As obras de Lacerda, editadas a expensas do autor, vieram apesar de tudo a ter duas ou mesmo três edições até aos anos 1940. As memórias de Paes Mamede, também em forma de crónicas, remetem para a sua missão como comandante de um posto militar onde muitas vezes era o único europeu, situado na terra firme a sul da baía da ilha de Moçambique, entre 1908 e 1910.

Impôs-se uma linha divisória, no interior do nosso corpus, entre os textos que se reportam ao tempo histórico da conquista e os que evocam o período do imediato pós-conquista, mais próximo do tempo da redação. Passando à análise dos textos, a prioridade dada a esta ordem cronológica não nos levou a descurar as relações de afinidade genérica das narrativas entre si. As obras que acabámos de mencionar, o romance de San Bruno e ainda os quatro contos de Eduardo Pimenta, remetem para o primeiro período. As primeiras grandes narrativas de viagem portuguesas relativas a Moçambique, posteriores às dos exploradores da década de 1880, e cinco obras de ficção publicadas nos anos 1930 evocam a experiência vivida dos seus autores nos anos 1920. O autor do romance Zambeziana, Emílio de San Bruno, pseudónimo do oficial da marinha de guerra Filipe Emílio de Paiva, tinha permanecido em Lourenço Marques e na Zambézia entre janeiro de 1900 e março de 1901. Também os autores das obras de ficção sobre o Moçambique dos anos 1920, Maria Amélia Rodrigues, Campos Monteiro Filho e Brito Camacho, residiram na colónia durante alguns anos desta década, respetivamente em Tete, em Quelimane e em Lourenço Marques. O romance Adão e Eva, de Amélia Rodrigues, oferece um retrato feminino único das relações de intimidade e de domesticidade características da sociedade colonial da época. O «romance exótico», as novelas e contos de Monteiro Filho encontram-se entre as mais originais peças de literatura colonial escritas a propósito de Moçambique. Na sua verve corrosiva sobre os costumes da Zambézia colonial, no seu estilo elegante próximo do modernismo e no seu fascínio pelo «bom selvagem» intercalam-se estereótipos negativos sobre a mulher fatal mestiça ou sobre os costumes dos africanos em geral. As três novelas de Brito Camacho, publicadas em 1934 sob o título Contos selvagens e com o significativo subtítulo Recordações d’Africa, permitem também abordar as nuances do discurso estereotípico racista. Nestes textos, as representações da selvajaria, do primitivismo, da luxúria ou da animalidade têm lugar no seio de um raciocínio maniqueísta em que a fetichização da técnica se articula com as projeções ideológicas sobre a modernidade, o progresso ou a civilização. Como veremos, Camacho, o político liberal, rapidamente se transforma, em solo africano, num apóstolo do totalitarismo colonial. 

A obra colonial de Brito Camacho compreende cinco outros títulos, publicados entre 1923 e 1930, onde se destacam os dois volumes da narrativa da viagem efetuada através da colónia em 1921, Terra de Lendas (1925) e Pretos e Brancos (1926, segundo prémio do primeiro concurso de literatura colonial). Com grande interesse descritivo, o texto incontornável de Camacho dececiona enormemente não tanto pelos constrangimentos que as funções administrativas impõem à escrita, mas sobretudo pelo cinismo das afirmações moralizadoras deste republicano cujo liberalismo só se aplica à metrópole. Neste sentido, devemos também mencionar a muito medíocre narrativa da viagem efetuada no mesmo período (em 1923-1924; publicada em 1928, não admitida ao concurso de literatura colonial) por Veva de Lima, pseudónimo de Genoveva de Lima Mayer, casada com Rui Ulrich, o grande banqueiro presidente nessa altura da Companhia de Moçambique. A autora é um membro importante da alta burguesia portuguesa de fidalgos-mercadores cujas boas intenções integralistas, ao conduzirem o movimento da populaça, vão abrir o caminho ao fascismo. A sua narrativa de viagem permanece como um dos melhores exemplos do cinismo do discurso africanista português, em particular sobre as novas formas da escravatura.

Encontramos outras formas de expressão desta atitude nos dois volumes de Terras de África (1925), do jornalista sidonista, próximo das correntes proto-fascistas, Pedro Muralha, e em Africa misteriosa (1929, segundo prémio do concurso de literatura colonial de 1928, duas edições), Oiro africano (1929, segundo prémio no concurso desse ano, duas edições) e também Terras do sol e da febre (1932, duas edições) do jornalista republicano e libertário Julião Quintinha. São as duas grandes narrativas de viagem dos anos 1920, primeiro publicadas na imprensa (parcialmente no caso de Quintinha), quase ao mesmo tempo em que saíram as narrativas de viagem de Brito Camacho (entre 1924 e 1927). As obras de Muralha e de Quintinha ocupam um lugar incontornável na literatura colonial deste período relativa às principais colónias do império, a ilha de S. Tomé, Angola, Moçambique, e ao Rand. Quintinha visitou também o arquipélago de Cabo Verde, a Guiné Bissau, a ilha de Príncipe, Kinshasa, Brazzaville, e fez escala no Cabo (tal como Muralha), vindo depois, no regresso, a passar pelo Suez, tendo visitado várias cidades da costa oriental africana e o Cairo. A viagem de Muralha durou oito meses, quase três dos quais em Moçambique com uns dez dias no Rand. A de Quintinha prolonga-se por dois anos, com cerca de sete meses em Moçambique, dos quais três semanas no Rand. As duas narrativas constituem conjuntos coerentes. Para os dois autores, «moçambicano» ou «angolano» significa o europeu, em particular o português, residente em Moçambique ou em Angola. São estes europeus que dão, segundo Muralha e Quintinha, a cada colónia a sua especificidade. Para os dois autores, as populações africanas são os pretos, mais ou menos todos iguais em todas as regiões da África. Os dois autores encontram até mais afinidades entre as comunidades moçambicanas não islamizadas e as de Angola do que entre os africanos muçulmanos do norte de Moçambique e os outros. A narrativa de viagem é em grande parte produto do olhar do observador europeu e da sua fixação estereotípica da «identidade» do outro «viajado». Muitas descrições ou digressões sobre os «pretos que são todos parecidos» feitas na parte da narrativa sobre Angola estão presentes implicitamente, ainda que não ditas, em certos momentos da narrativa sobre Moçambique, como na seguinte passagem da obra de Quintinha: «No fundo, os indígenas de Quelimane manteem os mesmos traços das outras famílias negras, igualmente mentirosos, alcoolicos, indolentes, supersticiosos, e com os mesmos costumes na sua vida íntima e social.» (OA, 299). A narrativa de cada um dos dois autores sobre as duas grandes colónias africanas constitui um conjunto que não seria possível cindir. O mesmo quanto às referências ao sistema de plantação das ilhas de São Tomé e Príncipe, análogo ao contexto dos «prazos» capitalistas da Baixa Zambézia. A justificação das novas formas de escravatura, nalgumas digressões dos dois autores sobre as ilhas, transparece nos subentendidos sobre a organização «modelo» dos «prazos». Neste sentido, a nossa investigação alargou-se também por vezes à parte das narrativas relativa a São Tomé ou a Angola.

Nenhuma obra deste período tem importância comparável à das narrativas de viagem de Muralha e de Quintinha. Por um lado, tiveram grande difusão durante a segunda metade da década de 1920, período crítico para o imperialismo português. Como referimos, as duas obras foram também publicadas sob a forma de crónicas, uma pela A Capital, um dos principais diários de Lisboa, a outra parcialmente pelo Jornal da Europa, a revista geográfica mais importante de Portugal. Por outro lado, trata-se das primeiras viagens longas da pós-conquista e das primeiras crónicas de viagem publicadas depois das narrativas dos grandes exploradores do último quartel do século XIX. As obras de Quintinha, por exemplo, para além da publicação de excertos na imprensa, tiveram duas e mesmo três edições (no caso da narrativa historiográfica sobre as campanhas de Mouzinho de Albuquerque). Foi considerável a sua influência sobre o discurso colonial da época. As duas narrativas (e as obras de Quintinha relativas à sua viagem) são representativas sobretudo de duas variantes da visão colonial do mundo dos portugueses, que pouco virão a alterar-se até aos anos 1960 e mesmo 1970. Donde o interesse inestimável destes dois autores para a nossa pesquisa, que lhes confere uma importância particular, equivalente ao lugar central ocupado pelas suas narrativas de viagem no campo da literariedade do Moçambique colonial neste período decisivo.

 

Numa primeira fase, a nossa investigação permitiu ultrapassar uma percepção formal do fenómeno literário colonial ainda tributária dos nossos estudos anteriores sobre as literaturas africanas de língua portuguesa. Os contributos teóricos da narratologia genettiana e da crítica literária bakhtiniana foram preciosos durante a fase de exploração dos textos do nosso corpus. Nesta fase, foi igualmente importante a contribuição teórica de Roland Barthes ou a de Umberto Eco. A teoria do «campo literário» de Pierre Bourdieu teve também uma influência decisiva sobre a nossa abordagem metodológica. Como se vê logo no primeiro capítulo, muito rapidamente as problemáticas ligadas à noção de perspetiva no contexto colonial e à elaboração do conceito de visão colonial do mundo implicam uma complexidade teórica significativa. Ao mesmo tempo, à medida que progredia a nossa decifração da biblioteca colonial, ia-nos sendo possível constatar a centralidade e a omnipresença nos textos de uma ficcionalidade insidiosa e por vezes delirante, estreitamente ligada à recorrência do estereótipo racial no discurso africanista.

Para além da teoria crítica da análise literária, dois grandes campos teóricos surgiram-nos então como complementares, apesar de certas contradições insolúveis, na elaboração de uma metodologia de análise crítica do corpus colonial. Trata-se, por um lado, da tradição filosófica crítica do autoritarismo que levou até ao marxismo ocidental e à psicanálise. Aí encontramos, em posições que por vezes apresentam considerável distância teórica, György Lukács, Karl Mannheim, Joseph Gabel, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin ou ainda Hannah Arendt. No seio deste campo, as ficções sobre as raças ou as projeções utópicas de uma dominação racial (ou de classe) absoluta foram muitas vezes desmontadas por um raciocínio dialéctico como formas de falsa consciência de uma perceção reificada na origem da expansão imperial e das sociedades totalitárias. O método hermenêutico de Paul Ricœur para o estudo da identidade de si, com a sua crítica da falsa consciência e das projeções utópicas, é um dos mais fecundos resultados contemporâneos esta tradição. A originalidade e a importância do pensamento de Antonio Gramsci reside tanto na sua evidente filiação numa tradição ocidental etnocêntrica como no enunciado de pistas para a sua superação. Nos seus textos encontramos já alguns sinais precursores da teoria pós-colonial cujos contributos atuais são incontornáveis para a compreensão do fenómeno imperial e do colonialismo.

Por outro lado, na elaboração da nossa metodologia da análise crítica, a teoria pós-colonial abriu vias muito fecundas à investigação. Com Edward Said e Valentin Yves Mudimbe retomámos a noção de discurso de Michel Foucault cuja análise da «luta das raças», em Il faut défendre la société…, trouxe também um contributo interessante à nossa tese. A análise das relações entre cultura e imperialismo de Said foi um elemento importante para a compreensão dos processos de apropriação geográfica. A obra de Homi Bhabha abriu-nos múltiplos caminhos, entre outros o da obra de Jacques Lacan, que se tornou uma das referências centrais do nosso método de análise. Mary Louise Pratt acompanhou-nos no questionamento sobre a ambiguidade da identidade genérica das narrativas. Com Paul Gilroy abriu-se uma janela sobre o fundo esclavocrata do imperialismo português que pudemos aprofundar junto de um número importante de historiadores contemporâneos, especialistas do Brasil e do império português. Kwame Anthony Appiah dá-nos um dos melhores contributos para compreender a falsa consciência pseudo-biológica. Robert Young e Ann Laura Stoler oferecem pistas únicas para a abordagem dos contextos da sexualidade e do desejo colonial. As obras de R. Young são também uma referência sempre renovada sobre os recursos do campo pós-colonial. Gayatri Spivak mostrou-nos a importância do contributo teórico de Jacques Derrida na crítica do autoritarismo da tradição crítica ocidental. No mesmo sentido, R. Young abriu-nos uma outra via, a do pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari, de entre cujos conceitos integrámos vários no nosso método de análise crítica.

Com Walter Benjamin, Hannah Arendt, Jacques Lacan e Paul Ricœur encontrámos elementos de crítica sobre a presença do outro na construção do sujeito, a falsa consciência pseudo-biológica e utópica, o pensamento autoritário e o totalitarismo. Antonio Gramsci, Frantz Fanon, Amílcar Cabral e Edward Said permitiram-nos compreender o papel da especulação geográfica, da morfologia e da cultura, tanto na construção do sujeito imperial como na elaboração de uma máscara para apreender o colonizado. O emprego, ao longo da nossa tese, de conceitos como a dialéctica, a reificação, a falsa consciência, a utopia, não implica a formulação de uma totalidade finita nem de um centro. Antes remete para uma perceção do mundo enquanto multiplicidade de histórias, aberta e descentrada, implicando outras tantas temporalidades.

 

A primeira parte do nosso estudo propõe um conjunto de elementos de contextualização da narrativa colonial, a ficcionalidade do discurso africanista e a formação social do Moçambique colonial. No primeiro capítulo, debatemos questões primordiais de ordem metodológica levantadas pela definição do conceito de «narrativa colonial». No segundo capítulo, a partir de exemplos tirados de algumas obras relativas a Moçambique, publicadas durante a primeira metade do século XX, analisamos os modos de integração da literatura colonial no africanismo e as características desta formação discursiva. Neste ponto do estudo, pareceu-nos indispensável situar o tempo histórico e os espaços, físico, social e psicológico, para os quais os textos coloniais remetem o narratário. O terceiro capítulo propõe assim elementos sobre o contexto histórico e sociológico da formação de Lourenço Marques, estreitamente ligado ao da constituição do campo de literariedade do Moçambique colonial. No quarto capítulo, começamos por propor uma apresentação geral das narrativas coloniais, essencialmente narrativas de viagem e de residência e narrativas de guerra, até ao fim da I Guerra Mundial, que marca a consumação da conquista de Moçambique. Analisamos em seguida a posição das narrativas coloniais no interior do campo da literariedade e as relações da posição colonial com a posição literária e estética assumida, no mesmo período, pelos círculos crioulos. A análise de alguns poemas de Rui de Noronha permite-nos abordar a especificidade da produção literária crioula. Propomos também uma caracterização do espaço social e político metropolitano onde evoluiu a maior parte dos escritores analisados ao longo do nosso estudo. Analisamos as relações entre a crise do liberalismo, a causa imperial, a ascensão do movimento da populaça, a instituição da Agência Geral das Colónias (1924) e do concurso de literatura colonial (1926), bem como a instauração do fascismo (1926).

A segunda parte é dedicada à análise das narrativas coloniais dos anos 1920 enquanto projeção sobre a geografia imperial do si autoral. Os autores do corpus aparecem situados nesta secção do estudo segundo as suas posições no campo da literariedade e a sua história pessoal. A análise das narrativas de Muralha e de Quintinha permite compreender a expressão textual dos processos de apropriação geográfica. A partir da apresentação do percurso dos autores coloniais dos anos 1920 e de um primeiro panorama sinóptico das suas obras, estudamos a interação destas «narrativas geográficas» com os processos de apropriação do território que se tornou imperial. O sujeito imperial constitui-se sobretudo na atitude do homem europeu em relação a uma referência geográfica no momento da luta pela terra, fundamento do imperialismo. A análise incide sobre doze autores que integram quatro conjuntos de textos definidos a partir de uma abordagem ao mesmo tempo cronológica e genealógica. Um primeiro conjunto é constituído pelos textos estéticos dos anos 1920 relativos ao período situado entre 1890 e 1920. Aí encontramos as narrativas de viagem e de residência de Carlos Roma Machado Maia, as narrativas de residência de Gavicho de Lacerda, o romance de Emílio San Bruno e a narrativa de residência de Paes Mamede. O segundo conjunto compreende três narrativas relativas às operações da I Guerra Mundial no norte de Moçambique. Carlos Selvagem, António de Cértima e Manuel Simões Alberto contam nestas obras as suas experiências apocalípticas da última fase das conquistas e da guerra inter-imperialista. Os textos transmitem a intensidade sem precedentes dos fluxos de morte da apropriação geográfica e o seu papel central na formação da personalidade imperial. Um terceiro conjunto é constituído pelas narrativas de viagem dos anos 1920 de Pedro Muralha, de Julião Quintinha e de Brito Camacho. Estas narrativas remetem para as realidades da reterritorialização dos fluxos de capital internacional e dos colonizados. Estes fluxos inscrevem-se nas linhas mortíferas da sujeição em massa ao trabalho forçado e da violência sexual exercida sobre as mulheres e as crianças, ou da mercantilização da sexualidade. As formas do desejo colonial no contexto do totalitarismo colonial, assim como as suas implicações na constituição do sujeito imperial e na estabilidade da sua posição de autoridade discursiva estão entre os principais assuntos evocados pelas obras de ficção sobre os anos 1920, o quarto conjunto textual analisado na segunda parte da nossa tese. Este último grupo de textos compreende o «romance colonial» de Maria Amélia Rodrigues, o «romance exótico», as novelas e os contos de Campos Monteiro Filho e a coletânea de novelas «selvagens» de Brito Camacho, todos publicados durante a década de 1930.

A terceira parte propõe desde logo uma análise das narrativas de viagem de Muralha e de Quintinha, que nos permite entender como o sentido geográfico concentra um leque de projeções de ordem cultural sob a forma de pseudo-valores-saber sobre o território e as populações. A luta pela terra torna-se uma «luta das raças» em que a capacidade técnica e militar ocidental está presente como sinal de uma superioridade moral da «raça superior», representante da modernidade e do progresso face ao primitivismo e à selvajaria ou à barbárie das «raças inferiores». A diferença cultural do selvagem, repudiada como negativa, está intimamente associada ao reconhecimento da diferença dos seus traços morfológicos. Desenvolve-se um sentido morfológico em simultâneo ao sentido geográfico para condicionar a atitude de repúdio do colonizador e as representações da sua supremacia racial. A perceção morfológica está diretamente ligada à ideia de raça que emerge no seio do pensamento racial português a partir da mitologia ariana e do darwinismo social.

Na quarta parte desenvolvemos uma análise dos aspetos considerados mais marcantes entre os que caracterizam a sociedade totalitária instituída no espaço imperial. A análise dos textos permite compreender os fluxos de morte que acompanham os processos de apropriação geográfica, o duplo movimento de desterritorialização e de reterritorialização, a conquista pelo terror com a instauração da ditadura racial e a transformação social do espaço pelo capitalismo colonial. Estes processos conduzem à instituição de um universo concentracionário marcado pela imposição da escravatura e do abuso sexual generalizado. Por outro lado, a violência mortífera dos processos de apropriação geográfica tem incidência direta na metrópole, com a instauração do fascismo pelos mesmos homens que tinham sido responsáveis pelas campanhas de conquista e a implantação da ditadura racial nas colónias. A atitude autoritária do sujeito imperial e o terror latente das formas excecionais de governamentalidade exigidas, no discurso, pela representação da selvajaria das populações implicam, como observou Ashis Nandy, uma profunda degradação moral do colonizador. Esta degradação, justificada pela necessidade do exercício de um poder arbitrário sobre os selvagens, é incansavelmente representada nas narrativas sob a forma de uma dominação cínica, mais moral do que técnica. O fetichismo do si-colonizador quanto à sua pureza, à sua originalidade racial e às suas capacidades técnicas está na origem da sua própria narração e da instituição da sua história pela escrita de si como sujeito imperial. Nos textos coloniais portugueses dos anos 1920, os homens confrontam-se num mundo racializado onde o homem de «raça branca» institui o seu tempo histórico. A dominação do sujeito imperial é representada como incontestável, pois ele construiu-se enquanto agente predestinado da civilização, projetando-se no centro da marcha da Humanidade para o progresso perante «criaturas» quase sempre estigmatizadas como próximas da animalidade. A nossa investigação termina com um capítulo sobre o desejo colonial onde são examinados aspetos de uma sexualidade de colónia colocada sob o signo da brutalidade, assim como da concubinagem ainda generalizada durante os anos 1920, embora combatida pelo poder imperial. Que formas vai assumir, no contexto do confronto e da linha de divisão maniqueísta dos sujeitos coloniais em dois campos, a emergência do desejo do homem branco pela mulher colonizada? Como é que, no interior deste universo concentracionário, as múltiplas formas de hibridismo cultural por vezes ligadas à mestiçagem contribuíram para criar a ambivalência desta «fronteira por onde tudo passa e foge ao longo de uma linha quebrada molecular com uma orientação outra»?

 

Abreviaturas

40GS - Monteiro Filho, Campos, 40 graus à sombra: Histórias e novelas africanas, Porto, Tavares Martins, 1939.

AE - Rodrigues, Maria Amélia, Adão e Eva: Romance colonial, Lisboa, João Romano Torres, s/d [c. 1932].

AM - Quintinha, Julião, Africa misteriosa: Crónicas e impressões duma viagem jornalistica nas Colónias da Africa Portuguesa, Lisboa, Editora Portugal Ultramar, 1929.

C - Alberto, Manuel Simões, Condenados: A Grande Guerra vivida às portas do degrêdo, Aveiro, e. a., 1933.

CAR - Monteiro Filho, Campos, Calvário de uma alma ruim: Novela africana, Porto, Civilização, 1938.

CF - Monteiro Filho, Campos, Céus de fogo: Romance exótico, Porto, Civilização, 1933.

CLZ - Lacerda, F. Gavicho de, Costumes e Lendas da Zambézia, Lisboa, e. a., 1925.

CS – Camacho, Brito, Contos selvagens: Recordações d’Africa, Lisboa, Guimarães, 1934.

CZ - Lacerda, F. Gavicho de, Cartas da Zambézia: (Assuntos coloniais), 2ª ed. rev. e aum., Lisboa, e. a., 1923 [1920].

DIV - Toscano, Francisco, e Quintinha, Julião, A derrocada do Império Vátua e Mousinho de Albuquerque, 2 vols, 3ª ed. rev. e aum., Lisboa, Casa Editora Nunes de Carvalho, 1935 [1930].

EM - Cértima, António de, Epopeia maldita: O drama da guerra de Africa, 3° milhar, Lisboa, e. a., 1925 [1924].

FEZ - Lacerda, F. Gavicho de, Figuras e episódios da Zambézia, Lisboa, e. a., 1929.

NA - Maia, Carlos Roma Machado de Faria e, Nostalgia africana: Verídicas narrativas, (nova ed. aum. de Scenas africanas: 1897 a 1917), Lisboa, e. a., 1936 [c. 1918].

NCA - Mamede, Paes, Nas Costas d’Africa: Episódios e narrativas, Lisboa, Tip. da Coop. Militar, 1930.

OA - Quintinha, Julião, Oiro africano: Crónicas e impressões de uma viagem jornalistica na Africa Oriental Portuguesa, Lisboa, Edições Portugal Ultramar, 1929.

PB - Camacho, Brito, Pretos e brancos, Lisboa, Guimarães, 1926.

RA - Maia, Carlos Roma Machado de Faria e, Recordações de África: Verídicas narrativas de viagens, caçadas, combates e costumes indígenas, marchas pelo interior e navegação dos rios, 2ª ed., Lisboa, e. a. (Tipografia e Papelaria Carmona), 1930 [1929].

TA - Selvagem, Carlos (pseud. de Carlos Tavares de Andrade Afonso dos Santos), Tropa d’África, 4ª ed., Lisboa / Paris, Aillaud e Bertrand, 1925 [1919].

TAMR - Muralha, Pedro, Terras de Africa: Moçambique e Rand, s/l (Lisboa), s/n (Publicita), s/d [1925].

TL - Camacho, Brito, Terra de lendas, Lisboa, Guimarães, 1925.

TSF - Quintinha, Julião, Terras do sol e da febre: Impressões do Congo Belga, Africa Equatorial Francesa, Transvaal, Nyasaland, Tanganyka, Zanzibar, Mombaça, Adem e Egipto, 2ª ed., Lisboa, Nunes de Carvalho, 1932.

Z - Bruno, Emílio de San [pseud. de Filipe Emílio de Paiva], Zambeziana : Scenas da vida colonial, Lisboa, e. a., 1927.

 

Do livro  O Si-Mesmo Como Sujeito Imperial Literatura colonial dos anos 1920: O caso de Moçambique de João Manuel Neves, Edições Afrontamento, 2023.

por João Manuel Neves
Mukanda | 29 Maio 2023 | 1920, Literatura colonial, moçambique