Contra-memórias do 25 de abril: silêncios, reparações e justiça

 “Que espaço ocupa hoje a ideia de memória coletiva na construção da nossa sociedade?”

         Ungulani Ba Ka Khosa, 2010

Combatente do PAIGC Isabel Leal. DAC - Documentos Amílcar Cabral (1963 - 1973)Combatente do PAIGC Isabel Leal. DAC - Documentos Amílcar Cabral (1963 - 1973)Os acontecimentos que carimbaram o mês de Abril como um dos selos da liberdade e “democratização” de Portugal, têm sido essencialmente dominados por silêncios enigmáticos e narrativas omissas, ancorados na impossibilidade de pensar a democratização como uma imposição neoliberal burguesa e um processo que resulta das lutas do resto do mundo contra o Ocidente (Shivji, 20111).  

Como tal, os processos de “descolonização” de Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe foram, antes de tudo, impulsionados pelas lutas políticas dos movimentos independentistas e de libertação desses países, intransigentes e irreverentes nas suas relações com o despotismo do estado colonial português que, ao mesmo tempo que se mobilizavam para traçar os seus próprios referentes de orientação política, estremeciam também o regime ditatorial vigente no império português resistente às mudanças da segunda metade do século XX.

Quem já ouviu falar do “Massacre da Baixa de Cassange”, quando a 4 de Janeiro de 1961, colonos portugueses dizimaram milhares de camponeses angolanos que reivindicavam os seus direitos, hoje lembrado como “Dia dos Mártires da Repressão Colonial”, e tendo servido como um dos motes impulsionadores da luta armada de libertação nacional? 

Quem já ouviu falar da “Operação Nó Górdio”, que Kaulza de Arriaga (comandante das Forças Terrestres em Moçambique) encabeçou em 1970, da qual se apurou a morte de 651 guerrilheiros moçambicanos e a captura de 1840, a destruição de 61 bases e 165 campos, e a captura de 40 toneladas de munição? 

Quem já ouviu falar da “Operação Mar Verde”, que Alpoim Calvão (oficial das Forças Armadas Portuguesas), apoiado por António Spínola (primeiro presidente da República Portuguesa após o 25 de Abril de 1974), concebeu e executou a 22 de Novembro de 1970 para atacar a base dos militares do PAIGC, na capital da República da Guiné? 

Estes massacres e operações militares exemplificam o isolacionismo que Portugal representava na comunidade internacional, ao querer manter as suas colónias a todo o custo, tendo travado guerras coloniais por mais de uma década. A ausência de contra-memórias sobre este período de sangue nas narrativas oficiais sobre a história de Portugal, coloca-nos as seguintes indagações:

Registos do processo da Libertação Colonial Angolana, 1974-75, Luanda (Angola)Registos do processo da Libertação Colonial Angolana, 1974-75, Luanda (Angola)
 

 

  • Que discursos de justiça, liberdade e revolução disseminamos quando marchamos pelas ruas a sustentar que o 25 de abril correspondeu a um evento pacífico sem sangue? 

  • Que líderes (da liberdade e da libertação) ficam esquecidos e desconsiderados quando homenageamos os capitães de Abril de 1974 numa perspectiva centrada apenas em Portugal? 

  • Que histórias ficam silenciadas quando a narrativa oficial defende que as guerras de libertação terminam com um golpe militar de esquerda em Lisboa, que derrubou o regime do estado colonial e declarou imediatamente a sua intenção em conceder as independências? 

As independências não foram uma concessão deliberada e solidária do novo regime, foram uma conquista que resultou da coragem e determinação de homens e mulheres que lutaram pela libertação e soberania territorial dos seus países e enfraqueceram o regime colonial português até ao limite das suas possibilidades humanas e militares. Além disso, o movimento anti-colonial nunca foi assumido e articulado pelas agendas políticas portuguesas do novo regime (tanto as de esquerda como as de direita) de uma forma assertiva e consequente, e essa negligência histórica tem repercussões e continuidades até aos dias de hoje, no que diz respeito à segregação, exclusão e obliteração racial em Portugal.

Somos livres e independentes mas não podemos, no entanto, deixar de reafirmar que, acreditando que não é de conformismos e condescendências que se reconfiguram narrativas, a nova ordem política portuguesa, inaugurada com o 25 de Abril, só atingiu a realidade porque o itinerário deste acontecimento foi desenhado pela certeza incontestável do sangue derramado e das vidas tombadas na construção das histórias recentes de Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. 

Pensar no 25 de Abril contemporâneo exige-nos questionar as narrativas oficiais que continuam a ser distorcidas de modo a oferecer-nos um discurso histórico-unitário; ter a responsabilidade social e política para assumir as desigualdades sociorraciais como uma herança do tráfico escravocrata transatlântico; considerar que as populações africanas e respectivas diásporas participam livremente na escrita das suas próprias histórias; reconhecer as violências físicas, simbólicas e de espoliações económicas a que estiveram sujeitas, com vista a desenvolvermos políticas concretas de reparação.

Samora Machel na independência de Moçambique [Foto Daniel Andrade Simões]Samora Machel na independência de Moçambique [Foto Daniel Andrade Simões]

Neste momento em que se comemora oficialmente o aclamado 25 de Abril nós, Núcleo Antirracista de Coimbra (NAC), sugerimos que celebremos sempre as nossas independências e, acima de tudo, as dos diversos coletivos negros e antirracistas que têm consolidado o movimento negro em Portugal desde o início do séc. XX, e proposto políticas públicas para o enfrentamento do capitalismo racial. Sugerimos que celebremos as nossas lutas por justiça! Lutas que visam evitar a segregação racial sistemática; superar políticas migratórias racistas; garantir o reconhecimento dos direitos de todos os cidadãos e as cidadãs nascidos/as em território nacional; impedir a violência e repressão fascistas e racistas por parte da polícia do Estado;  insistir na representatividade da diversidade nacional em todos os espaços de poder; implementar uma educação antirracista que revisite as narrativas oficiais considerando outras perspectivas históricas; e, finalmente, garantir o acesso aos bens fundamentais como saúde, educação, habitação, saneamento básico, alimentação e cultura para todos os cidadãos e todas as cidadãs em Portugal.

Somos livres e independentes, mas não podemos deixar de afirmar que, passados 46 anos, a democracia e a liberdade continuam a ver raças em Portugal, e continuamos a lutar para que um dia possamos gritar em uníssono: 

25 de Abril Sempre! Fascismo Nunca Mais! Racismo Nunca Mais!


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  • 1. Shivji, Issa G. (2011), “Democracy and democratization in africa: interrogating paradigms and practices”. Paper presented in the seminar on Electoral Democracy - “What can make Electoral Democracy Effective?”, organised by MS-Training Centre for Development Cooperation (MS- TCDC), 7-9th November, 2011.

por Núcleo Antirracista de Coimbra (NAC)
Mukanda | 26 Abril 2020 | 25 de abril, contra-narrativas, independências, revolução