A hora poética

O convite para uma conversa no Teatro Nacional D. Maria II sobre “o poético e o político” chegou-me pela Teresa Coutinho, atriz que conheço há anos, antes mesmo da rodagem de A Santa Joana dos Matadouros, filme a partir de Bertolt Brecht, no antigo Matadouro Industrial do Porto, com atores, amadores e uma trupe de cidadãos desempregados, no inverno de 2014. Aproxima-nos uma velha atenção aos laços que unem o ofício das artes à construção da cidade, no mesmo movimento em que se elaboram as formas intensificadoras de vida, no fogo que forja a honesta concórdia entre os humanos, sem derrotados. 

O encontro, balizado pelas categorias vagas do poético e do político, poderia declinar em lugares comuns, na repetição das aspirações e dos lamentos que todos já escutámos. Mas não foi o caso. Antes de tudo, porque a própria reunião, conduzida com mão de veludo pela Teresa Coutinho, foi fraterna e política desde o início. O encontro abriu com a taça de vinho erguida, num brinde aos mortos - a atriz Carmen Dolores e a Lígia Pereira, anfitriã da Lua da Bika, haviam falecido no próprio dia - e à vida, felicitando o Tiago Rodrigues, encenador e diretor da casa que nos acolhia, pelo seu aniversário na mesma data. O círculo em que tomámos acento firmava estacas no agora e na consciência cortante do instante que passa e reúne. O debate, em que participaram também a poeta Gisela Casimiro e a Marta Lança, editora do BUALA, foi permeado pela leitura de textos extraordinários (Primo Levi à cabeça) na voz do João Grosso e de novos atores. Este fim de tarde de 16 de fevereiro, em que, conduzidos pelos poemas, atravessámos séculos e interpretámos os combates atuais, foi inesperadamente denso e mobilizador. Terminámos as três horas de sessão online contagiados por uma energia coletiva, com um grão de melancolia, capaz de virar o mundo. E compreendi que o Clube que a Teresa Coutinho fez nascer e anima no Teatro Nacional D. Maria II é uma autêntica fogueira onde participantes (incluindo do Brasil e de outros países) encontram o gosto da leitura partilhada e da reflexão crítica, com entusiasmo acrescido pelo isolamento social imposto pela pandemia, a precarização generalizada entre os profissionais do espetáculo e outras crises insondáveis que patrulham a nossa porta.  

Talvez pelo prazer da escuta dos poetas na voz inteira dos atores e pelo esprit de corps que nos tomou, a minha intervenção tivesse resultado laça e me deixasse insatisfeito. Aproveito a oportunidade deste texto, no repto amigo da Marta Lança (“não queres passar à forma escrita a tua comunicação, num texto para o BUALA?”), para explicitar os fundamentos da minha reflexão e articular mais claramente algumas questões que procurei abordar, nos breves minutos que me cabiam. E, não por acaso, concluía com o problema filosófico da bondade.

 

Nestes anos 20 do novo século, a taxinomia política em que o Ocidente governava uma ordem mundial aparentemente previsível e provisoriamente estável parece liquefazer-se nos dias. Do combate contra a alterações climáticas mobilizado por uma nova geração ao movimento Black Lives Matter, os dias exaltados que vivemos de um ativismo político à escala global que cresce nos social media e converge nas avenidas das grandes cidades, releva tanto da insurgência contra o inaceitável como é herdeiro da angústia e da ansiedade que dominam o sistema nervoso das sociedades de massas desde a revolução industrial. A exigência da transformação imediata das estruturas sociais, a sede de justiça, o policiamento dos costumes e o levantamento urgente de uma reação conservadora produzem choques culturais fascinantes e envolvem perigos que importa medir e atestar. Que lugar ocupam as artes neste confronto? 

Os artistas ressuscitam o engajamento político que defende as margens onde resistem os “sem voz”, numa atitude que permaneceu residual na produção estética contemporânea mais recente; e envolvem-se de novo em combates ideológicos, mais na agitação mediática da clivagem de imaginários do que no recolhimento meditativo, e acreditam que a arte pode abrigar-se num cavalo de Tróia, e provar-se capaz de iludir a violência dos poderes, abrir com a chave do prestígio e do privilégio a porta ao debate inoportuno e instalar no coração limpo da cidade uma regenerada consciência. O incitamento à transformação nasce geralmente do conhecimento da exclusão pela experiência na carne, da revolta sustentada numa genealogia da humilhação, do universalismo guiado pelas filosofias da emancipação relativamente a toda a opressão que foi conhecendo desdobramentos desde o iluminismo e se foi saldando em sucessivos triunfos de fogos de palha.

'L'Exécution de Maximilien', de Edouard Manet, 1869'L'Exécution de Maximilien', de Edouard Manet, 1869

Há instantes incendiários como a Comuna de Paris que, vencidos com brutalidade, ensinaram mais à história e ao futuro do que outras revoluções que se constituíram em poder. A revolta é uma vaga de fundo que aparece à superfície em contextos locais de saturação das comunidades e de particular fragilidade das instituições. É um continuum de exasperação que atravessa o mundo, voraz, insaciável, necessário – Maria Gabriela Llansol regressou sempre à visão deste tumulto em progresso que atravessa os povos e o tempo -, e demanda o refreamento capaz de impedir que a febre das paixões mais não deixe, à sua passagem, senão uma paisagem carbonizada.

E recorda que nenhuma criatura veio ao mundo para se apagar ao olhar do outro, antes aguarda o olhar dos outros para se erguer numa voz solitária e inconfundível. 

A volúpia revolucionária que pretende recuperar o atraso e apressar a história – não é a derradeira sequência O Homem da Câmara de Filmar de Dziga Vertov, com o pêndulo acelerado do relógio que destrói o ancien regime e inaugura a vida nova, a imagem perfeita da febre revolucionária? - comporta o risco de não observarmos com a devida atenção o fenómeno na totalidade das implicações, a emocionalidade sem gravitas que turva a justeza do gesto, o esbracejar que impede a escuta benévola do adversário ou a auscultação sensível das raízes que crescem em profundidade e alimentam todas as formas torpes de ressentimento e o ódio. Mesmo que a mais radical violência contra o mal insustentável irrompa no desenvolvimento das civilizações, sem aviso e com consequências incalculáveis (e possa a um olhar retrospetivo revelar a sua utilidade), não é conveniente que disponha de condições para se prolongar no calendário e menos ainda para se instalar num estado dominante, sob pena de tornar a fúria em norma, a devastação em rotina, esvair a comunidade de vitalidade e, finalmente, arriscar a dissolução social.

O movimento militante é, mais do que nunca, necessário, na tomada das ruas por novas ideias ao mesmo tempo que nos cabe compor com as emoções e cultivar uma clarividência que se aproxime da distância na meia-colina elogiada pelos gregos. O lugar mais adequado à observação do fenómeno trágico ocorrido no mar não seria a praia nem o cume do monte, mas uma posição algures, relativa, a meio da colina. Nem excessivamente próxima do fenómeno nem demasiado afastada. Se somos livres e responsáveis, somos impelidos ao exercício constante de avaliação da boa distância comparativamente aos fenómenos, a distância produtiva que escapa à colagem (traduzindo, não raras vezes, o fascínio do trauma) e ao egoísmo do alheamento, ambas formas de distorção e esterilidade. A boa condução da vida comum pede contas ao concreto da vida material e a compaixão própria do ponto de vista dos mortos, isto é, uma experiência construída no terreno que se não conforte aos julgamentos sumários, para um equilíbrio ecológico que importa procurar, numa disposição onde o inacabado tem a sua parte. O génio da pintura de Édouard Manet é a reunião da economia de expressão e a respiração moderna do inacabado. É fundamental confrontar as representações – as convencionais e as vivificantes – com a identificação das necessidades elementares, geralmente insatisfatórias: a alimentação, a habitação, o direito ao descanso, ao sonho e ao esquecimento, a presença e a participação no espaço público com consequências reais de troca cultural e efetiva transformação da cidade. 

Comuna de Paris 1871Comuna de Paris 1871

Não é a poesia o exercício milenar de habitar no fio do paradoxo? Não é esta qualidade que faz do poético, entre o pensar, o fazer e o canto, uma atividade que sonda os fundamentos contraditórios da vida das sociedades sem deixar de suscitar uma visão inédita e atuante sobre o que sempre aqui esteve, natural e transparente, diante de nós? Talvez por isso, o reportório poético dificilmente se confunda com o lirismo nem o trabalho político se resuma a hinos revolucionários que terminam na letra da lei. 

A construção de cidade exige a confluência em fogueiras que agregam os adversários dispostos a conversar e a uma experiência do tempo sem tempo em que eu procuro acompanhar as razões do que se me afigura como estranho, inflexível ou irracional. As cidades fazem-se de paciência e de acumulação no transcorrer indiferente dos séculos. É nas dinâmicas tensionais da coabitação e no labor anónimo do quotidiano, no quase-nada em que se negoceiam ganhos e perdas, reputações e amizade, dívidas e gratidão para o resto da vida, a distração prosaica que engendra a saúde de uma cidade que nunca é a mesma. Onde  a fúria, o embate frontal e a rutura têm lugar nobre e merecem atenção.

As nossas cidades são negras, africanas, transatlânticas, a minha família cresceu em Angola e também me atravessa uma negritude que resiste à nomeação. Se isto não importa para este texto, importa-me a mim como património problemático e radioso em que construo a minha subjetividade na relação com o século. 

A inteligência generativa – aquela que vai da pedra bruta deixada à vista, com insolência, na escultura pelo Michelangelo Buonarroti a Édouard Manet ou à pintura americana do século XX surgida dos acidentes regulados do escorrimento da tinta - que salvaguarda o inacabado é quase sempre uma atividade erótica que inclui as possibilidades do riso. O importante é a qualidade das ligações. Não é articulando que se constrói uma palavra e se investe de sentido a frase? Os prazeres da cachupa e da muamba em Lisboa, ou em qualquer cidade, agregam à mesma mesa na condição partilhada dos prazeres. E, com isto, não podemos calar nem a violência sistémica, nem o comércio escravo passado e atual, nem os genocídios, mas a mesa dos companheiros (“companheiro”, do latim, cum “com” e panis “pão”, «o que come pão connosco») permite libertá-los porque os fantasmas necessitam da evocação em condições favoráveis específicas para logo serem devolvidos ao vazio.

A educação para as formas exigentes e o trabalho antropológico do entendimento são um oficio árduo e hoje é o tempo deste labor paciente de um colar de missangas colocadas, uma a uma, no fio que substitui definitivamente as algemas e o açaime. E, como na malha e no tricô, podemos ir elaborando com as mãos enquanto falamos de outras coisas, desconversando, desviando certas representações dos seus sentidos habituais, olhando de viés, deixando que as forças desçam, trespassem as formas e nos afetem sem darmos fé. Enquanto cuidamos de nós e vemos onde pousamos os pés. Não é esta a grande potência da elaboração estética, em qualquer geografia e independentemente das vontades dos governos?

A isto chamamos, também, a hora poética que é abertamente política ao tecer a trama comum onde a luta solicita a alegria.Foi assim no Clube dos Poetas Vivos. E aqui nascem outros Portugais. 

por João Sousa Cardoso
Mukanda | 4 Março 2021 | arte, cidade, comunidade, História, património, poesia, rutura, tempo