Esta guerra não é tua (2)

Mariamo Miguel | 2019 | Paulo Faria (cortesia do autor)  Mariamo Miguel | 2019 | Paulo Faria (cortesia do autor)

Na primeira conversa que aqui tivemos, há um mês, neste mesmo cubículo do centro comercial da Costa da Caparica, Maurício (Guiné, 1972-1974), engenheiro na vida civil, não me falou da cadeira eléctrica de Bula. Contou-me outras histórias da guerra, muitas histórias. Sentados à volta da mesa estavam ele, o Marco Mané e outros veteranos. Nesse encontro procurei o mesmo que aqui me traz hoje: histórias exemplares. «Exemplares» no sentido em que Sophia de Mello Breyner empregou o termo quando escreveu os seus Contos exemplares. Histórias breves em cujo enredo esteja condensada a cartografia de todo um universo, de toda uma angústia, de toda uma época. No meu caso, quero histórias que contenham em si toda a guerra colonial, todo o colonialismo. Histórias assim são pepitas raras, é preciso peneirar muito cascalho para as encontrar. Mas Maurício é um contador incansável e, nesse primeiro encontro, que durou horas sem fim e se prolongou pela noite dentro, ofereceu-me vários diamantes em bruto. Como oficial de reabastecimento e oficial de acção psicológica de um batalhão de cavalaria, cabia-lhe, periodicamente, organizar uma acção especial.

— Em Bula havia uma casa de prostitutas. Tudo manjacas. As famílias vendiam-nas para a prostituição, mas elas eram bonitas e tinham apetência para aquilo. De dois em dois meses, ou assim, o médico dizia-me que estava na altura da inspecção. Eu levava um pelotão, ou uma secção, pelo menos, e, de surpresa, cercava a casa logo pela manhã. Metíamos as prostitutas numa Berliet, trazíamo-las para a enfermaria do aquartelamento, e o médico e os enfermeiros passavam revista a elas todas. Já tinham prontas as injecções de Penadur, penicilina, porque todas as mulheres que víssemos que tinham blenorragia… esquentamento… dávamos logo a injecção. No braço? Não, era na nádega. Em cima, do lado direito. Mas a seringa é enorme, a agulha também, a injecção dói que se farta. E eu tinha de lá estar para manter a ordem naquilo, porque algumas barafustavam, gritavam. E tinham de abrir as pernas, como é evidente. O médico metia-lhes um aparelhinho na vagina, um espéculo. Usava uma lampadazinha na testa, olhava lá para dentro e, quando via pus… Às vezes até me dizia: «Aponta a luz e olha, vês ali?» Quase todas tinham pus, só uma ou outra é que não tinha. Essas só tomavam umas pastilhas, devia ser um preventivo, ou não sei o quê.

Quando as histórias que contam são particularmente escabrosas, os próprios veteranos se sentem compelidos a tecer um juízo moral sobre os seus gestos de há cinquenta anos.

— Elas tentavam fugir. Quando cercávamos a casa, algumas até saltavam pelas janelas, era preciso agarrá-las à força. E eu dizia-lhes: «Nós estamos aqui a fazer-vos bem, não estamos a fazer-vos mal. Estamos a fazer-vos bem por causa dos soldados, mas também por vossa causa. Nós queremos tratar-vos.» E apanhávamo-las todas, todas. «Vá… camião, camião… Prà Berliet, prà Berliet…» Quando os tratamentos acabavam, íamos levá-las de volta à tal casa e pronto.

Os pormenores são repugnantes, mas não consigo deixar de sentir um júbilo secreto por ter deparado com mais uma história exemplar do colonialismo, no sentido mais lato da palavra «colonialismo». O colonialismo é fazermos a alguém aquilo que entendemos como «bem», mas que essa pessoa sente como «mal», para que essa pessoa nos possa servir melhor. Reformulo: o colonialismo é instrumentalizarmos o outro, fazendo-lhe bem somente na medida em que esse benefício nos possa beneficiar a nós. Resta dizer que o carácter exemplar de uma história escapa quase sempre ao seu narrador.

Maurício não me falou da cadeira eléctrica de Bula, no entanto. Apenas me disse, depois de o Marco me ter contado algumas atrocidades a que assistiu, que lá no aquartelamento havia uma prisão, e que às vezes, de manhã, o cabo que fazia de carcereiro o chamava: «Ó meu alferes, venha cá. Venha cá ver isto.» A cela tinha as paredes cobertas de sangue fresco. E Maurício perguntava: «Mas quem é que esteve aqui?» E o outro: «Foi o capitão tal-e-tal, esteve a interrogar um prisioneiro, veja como ele deixou isto.» E também neste ponto, depois de sublinhar que os prisioneiros certamente morriam, tal a quantidade de sangue que lambuzava as paredes, Maurício se sentiu obrigado a tecer um juízo moral, como que antecipando-se ao meu próprio juízo moral, que deve ter adivinhado por trás do meu olhar atónito:

— Mas agora eu vou dizer uma coisa. Isto hoje choca, mas é preciso entender. Quem fazia aquilo eram tipos da pide e tipos do… pronto, do exército. Mas era com as informações que eles extraíam dessa maneira, e não tinham outra maneira de as extrair, que salvavam muitos dos nossos. Não sei se me faço entender. A guerra é uma coisa tramada. Porque é assim: comete-se um acto que é mau em si, mas que é feito para salvar vidas. É que podiam morrer dez ou doze ou vinte, e afinal morreu só um… Isto tem de se perceber. Quem lá está tem de perceber as coisas.

Como que a dizer-me: «Quem não esteve lá tem de perceber as coisas.» Com esta nova história exemplar, Maurício expôs-me os fundamentos da lógica guerreira, que é o corolário inevitável da lógica colonialista: fazer mal aos outros para impedir que eles nos façam mal a nós. Reduzido aos seus fundamentos mais crus, dir-se-ia que o mundo é um lugar simples, afinal. As prostitutas abrem as pernas quando lhes mandam, as vidas não valem todas o mesmo. As informações extraem-se da carne dos homens como dentes cariados que é preciso arrancar. O que vimos e calámos há cinquenta anos passou a fazer parte de nós. Não nos peçam que o reneguemos, não nos peçam que deitemos fora as nossas vidas inteiras só porque o mundo mudou entretanto, não nos peçam que troquemos de lugar com os outros. Mesmo que quiséssemos, não seríamos capazes. Não nos deitámos numa cama de pernas abertas, não deixámos que a luzinha do médico nos devassasse o pus das entranhas. Não esparrinhámos de sangue as paredes da cela. Outros, com mais apetência para isso, o fizeram em nosso lugar.

Dezembro de 2020

–––––—

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

por Paulo Faria
Mukanda | 16 Janeiro 2021 | colonialismo, guerra colonial, Memoirs, testemunhos