Antropocênica 2: alerta para a seca extrema na região central da Amazónia brasileira e lança Carta Aberta aos Três Poderes da República Federativa do Brasil.

Entre os dias 22 de agosto e 2 de setembro 2023, realizou-se na região amazónica brasileira, Santarém do Pará, o segundo encontro da série internacional Antropocênica. O primeiro encontro de estudos transdisciplinares - entre as esferas da Filosofia, Arqueologia e Arquitetura - aconteceu, o ano passado, em Évora, Vidigueira e Lisboa. O terceiro encontro está previsto que tenha lugar em Cabo-Verde, em 2024.

Antropocênica 2 foi uma realização conjunta da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), da Wenner-Gren Foundation, da Fundação Calouste Gulbenkian, da Fundação para a Ciência e Tecnologia, do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e da produtora Nômade, com apoio institucional do Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Patrimônio da Universidade de Coimbra.

Neste segundo encontro, os três eixos estruturantes propostos foram: Ancestralidades (I), Territórios (II) e Travessias (III). Eixos que proporcionaram a abordagem de um amplo contexto temático, pelo qual se interconectam: as memórias e experiências humanas no tempo (I), de culturas que habitam e transformam as paisagens (II) e que lá chegaram por antigas migrações e viagens, inclusive sob a violência da escravatura, por exemplo das travessias transatlânticas desde África à América do Sul no período colonial (III).

O programa do segundo encontro recebeu, em Santarém do Pará, convidadas e convidados de Portugal, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Moçambique que, junto com os participantes locais, tiveram oportunidade de viajar pelo rio Tapajós no navio-hospital da Universidade Federal do Oeste do Pará, visitar a aldeia Solimões da etnia Kumaruara e o quilombo Murumurutuba.

Diante do panorama atual de seca extrema observada na região central da Amazónia brasileira, a coordenação geral da Antropocênica - constituída por Silvio Luiz Cordeiro, arquiteto brasileiro, Dirk Michael Hennrich, filósofo alemão e Maria da Conceição Lopes, arqueóloga portuguesa - decidiu elaborar e tornar pública uma Carta Aberta, que será enviada aos Três Poderes da República Federativa do Brasil após um período de recolha de assinaturas voluntárias durante o mês de outubro. 

Anabela Roque 

Navio-hospital da UFOPA na Comunidade Pedra Branca, Rio TapajósNavio-hospital da UFOPA na Comunidade Pedra Branca, Rio Tapajós

Carta Aberta aos Três Poderes da República Federativa do Brasil

Nós da coordenação geral da série internacional Antropocênica, motivados pelas apresentações e diálogos no segundo encontro da série, recém concluído em Santarém do Pará, com apoio de integrantes da comissão científica e participantes do evento e demais pessoas que subscrevem esta carta, tornamos pública a nossa posição diante da destruição em marcha sobre o que chamamos de território-síntese do Antropoceno: a Amazônia.

Sabemos pela arqueologia que a história da presença humana na Floresta Amazônica remonta a mais de 12 mil anos. Ao longo desta história, os povos originários desenvolveram uma convivência profundamente harmônica com a floresta e seus seres, essencial ao modo de vida destas sociedades.

No entanto, alastra-se cada vez mais as ações humanas destrutivas, promovidas por invasores: a forma como se relacionam com a floresta, com os seus seres e com as comunidades indígenas e tradicionais é caracterizada pela violência extrema, explícita no cenário atual de degradação do bioma e na arraigada presença de facções criminosas que atuam em várias frentes de exploração econômica neste vasto território.

A gravidade do problema, como a ciência do Sistema Terra há tempos alerta, é de simples entendimento: as atividades predatórias, em vetores múltiplos de atuação na região amazônica – com forte influência do capital em demandas que transcendem as fronteiras – impactam no processo de ruptura deste complexo sistema, levando a uma irreparável destruição da Amazônia, com impactos sentidos à escala planetária.

As consequências diretas dos impactos desta ruptura do bioma que, por sua dimensão, influi diretamente nas dinâmicas da biosfera, são motivadas por interesses econômicos predatórios e extrativistas e serão conjugadas na instalação de um cenário distópico generalizado, com a extinção em massa de espécies e a tragédia de uma civilização que se distanciou da Natureza, ao extrair dela tudo para ser produzido e consumido em um modo de vida urbano.

O desmatamento, os incêndios, a abertura de pastos, as hidrelétricas, os garimpos em atividade clandestina, as monoculturas de plantas exógenas, o envenenamento das águas e das terras, a violência contra os povos originários e tradicionais, além do atual delírio em se promover a exploração petrolífera na foz do Amazonas, são as evidências expostas nesse quadro temerário de um porvir próximo e sombrio.

Exortamos o Brasil que mostre e manifeste a sua capacidade de participar na construção de um Mundo com respeito e responsabilidade perante as gerações vindouras – humanas e não-humanas – e que assuma a sua possibilidade de ser um país capaz de proteger a sua dimensão natural e cultural de forma não predatória; e que os Três Poderes da República Federativa do Brasil atuem em harmonia para reconhecer, assegurar e fortalecer direitos que promovam a nação biodiversa e multiétnica, inclusive os saberes ancestrais que ensinam neste sentido.

Somos solidários às lutas sociais e aos direitos dos povos originários e tradicionais que habitam a Amazônia e todo o território nacional.

Denunciamos os interesses econômicos violadores da Terra, amplamente divulgados, que se manifestam com expressivos impactos na Amazônia e são exercidos e promovidos a partir da difusão das variadas formas de violência, cujo limite ou resultado final é a morte das comunidades humanas e não-humanas em contexto de ampla degradação ambiental, evidente no envenenamento de rios amazônicos por mercúrio, na devastação da flora e fauna por incêndios, entre outras resultantes da exploração econômica predatória.

Frente a este cenário, como cidadãos do Mundo, exortamos o Brasil enquanto Estado signatário dos tratados e convenções em defesa dos direitos humanos e do ambiente, para que responda à altura e à escala da geografia e dos problemas que não cessam de se agravar.

Tendo isto em conta, na urgência de ações efetivas, apelamos especificamente:

1) à imediata demarcação e titulação dos territórios dos povos originários e quilombolas.

2) a que o Brasil incorpore em sua Constituição os Direitos da Natureza, à semelhança do que ocorre com outros países sul-americanos, como o Equador, a Bolívia e o Chile, com a participação dos povos originários e tradicionais, incluindo os saberes ancestrais na educação e tomada de decisões sobre a Natureza.

Coordenação Geral Antropocênica

Silvio Luiz Cordeiro, arquiteto brasileiro

Dirk Michael Hennrich, filósofo alemão

Maria da Conceição Lopes, arqueóloga portuguesa

Comissão Científica Antropocênica

Ailton Krenak, escritor e filósofo brasileiro

por vários
Mukanda | 16 Outubro 2023 | Amazónia, carta aberta