E sei, meu amigo, que nos instigas a adivinhar a graça do amor

(de Maria João Teles Grilo)

Guimarães Rosa disse que “viver é rasgar-se e remendar-se”. E quando se acaba a linha?

Num desesperado grito silencioso, Miguel Gullander, deixou-nos abandonados a este mundo que flutua como um grão de poeira no vazio da noite, confirmando que os homens crescem inconcebivelmente sós. Há aqui um caminho, mas parece transviar-se. Os caprichos da estrada podem, contudo, ter um significado; é assim que nos torturamos. 

Quando alguém morria, os gregos faziam a unica pergunta que lhes parecia fazer sentido: se tinha vivido com paixão. Aqui está um ser humano que responde inteiramente à pergunta. O Miguel era Paixão e dentro dela, vivia. Soletrava o verbo Viver em todos os modos, derramava o seu sangue sobre o papel e com ele, escrevia-nos. Aprendia ensinando-nos, este pássaro, tremendo em plena tormenta. E que nos perguntamos nós, que aqui ficámos? Que vivos somos nós, que andamos construindo cemitérios para as almas livres, sensíveis, pensantes, que rejeitam esta desumanidade e o neo-liberalismo, pornográficos, por onde nos arrastamos, simiescos e sonâmbulos? É legitimo partir para um universo que esteja para além da imaginação humana, insistindo em sustentar, imperioso e nu, o infinito da distância que se introduz na mais extrema proximidade, esse paradoxo de que se faz precisamente o Amor. Sonho a que ele não quis renunciar, esse lugar misterioso a que chamamos a instância de Amar. E sei, meu amigo, que nos instigas a adivinhar a graça de uma palavra, o instante de uma carícia, a comunhão de um sorriso.

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HEAVY MANTRA 

(de Carla Isidoro, Lisboa)

No encontro de celebração e homenagem ao escritor e professor Miguel Gullander (Casa do Comum, 23/3)  decidi ler algumas frases do prefácio do livro A minha voz pela liberdade. Este livro marcou-me profundamente e iniciou uma jornada de busca espiritual apadrinhada pelo Miguel. Antes de partilhar as frases do prefácio, contei brevemente a história da entrada deste livro na minha vida.

Estávamos em 2009 e o Miguel convidou-me para o concerto de uma monja nepalesa em Lisboa. Na altura, apesar da sua insistência, não dei importância ao evento e arranjei uma desculpa para não ir. Apesar do meu respeito e familiaridade com a vida monástica e convívio com monjas, por ter estudado num colégio de freiras, não percebi o interesse de ver uma freira a cantar.

Passado algum tempo, no meu aniversário, o Miguel presenteou-me com o livro A minha voz pela liberdade. “Toma, lê!”, ordenou-me. Na capa vemos o retrato de uma monja do budismo tibetano. Era a autobiografia da tal monja que veio cantar a Lisboa. Pensei com os meus botões: “A tal monja outra vez?”. O Miguel lera o livro e fazia questão que eu ficasse com ele.  Desfiz-me em agradecimentos, meti o livro na mala, e a nossa conversa de café continuou. Mal eu sabia…

Nessa noite dei uma oportunidade ao livro. Se o Miguel fez questão que eu o lesse, seria pouco sensível da minha parte não o fazer. Costumo demorar meses a ler qualquer tipo de livro, independentemente do volume, e estava mentalizada para passar pelo mesmo. Comecei a ler a autobiografia sem qualquer expectativa e, surpreendentemente, devorei-a em poucos dias, tal me impactou a vida de Ani Choying Drolma e a forma clara e leve com que a escreveu. Trata-se da história de superação de uma menina que sofreu sucessivos espancamentos por parte do pai e que se transformou numa monja de renome internacional, dando concertos pelo mundo fora. É uma empreendedora ímpar. Foi a primeira monja no Nepal a tirar a carta e a conduzir, construiu um convento e escolas para albergar miúdas vindas de situações familiares e sociais dramáticas e também clínicas de saúde para o cuidado de pacientes renais. Foi financiando os seus projetos paulatinamente com a verba que arrecadava nos concertos. A sua voz cristalina conquistou o mundo, até a exigente Tina Turner, com quem cantou ao vivo e, mais recentemente, Wyclef Jean, entre outros artistas. É uma mulher de coração puro que facilmente nos toca. 

Voltemos a essa época. Era Verão, e eu não tinha perspectivas de trabalho para a temporada de praia. O dinheiro chegava para me aguentar três meses sem trabalhar. Tal foi o meu fascínio pelo trabalho de Choying Drolma que desejei partir imediatamente para o convento trabalhar como voluntária. Tinha dinheiro para a viagem de ida e depois logo se via como desenrascava o regresso. Só queria ir. E este sonho repentino deu grande impulso à minha vida. Estava entusiasmada com a ideia de ensinar inglês, português ou outra disciplina às miúdas e de poder contribuir para um dos projetos de Choying Drolma, em vez de desperdiçar-me em mais uma silly season portuguesa. Partilhei este sonho com o Miguel e ele, naquele tom de quem via as coisas muito antes dos outros, disse: “Pois, eu já sabia!”. Passou-me o nome de uma pessoa que poderia ajudar a agilizar o contacto com a monja para quem, durante as seguintes semanas, disparei emails, que nunca me respondeu, e para o convento, que tampouco respondeu. Entre insistências e impasses, passaram-se três meses. Sem respostas nem dinheiro, tive de resignar-me a um sonho vazio e a voltar ao trabalho.

Choying Drolma canta, essencialmente, mantras. Alguns anos depois, fiquei surpreendida quando o Miguel me convidou, de novo, para ir com ele e com o José Luís Peixoto a um concerto de heavy metal, ambos aficionados por este género musical… Mas eu não. Desta vez o convite levou-me a perceber uma das verdades do Miguel, onde todos os mundos eram possíveis sem atritos nem estranhezas: quem vai a concertos de monjas também ouve death metal. Não fui ao concerto, mas ficou a lição. 

Ter descoberto esta monja e o caminho que trilhou fora do status quo social do Nepal mostrou-me como desconhecemos a vida e o percurso de quem escolhe seguir a vida monástica. Diria que a sua autobiografia foi o pontapé de saída do meu caminho espiritual que começou na meditação Vipassana - graças ao Miguel que me garantiu “eu sei que estás pronta”, antes de eu saber, e sentir que estava - e que depois desembocou no meu desvelar como praticante do budismo tibetano onde fui “batizada” com o nome Drolma, tal como a monja, para minha feliz surpresa.  

Até hoje sigo o trabalho desta incrível mulher nas redes sociais. Nunca mais regressou a Portugal para dar um concerto e confesso que me arrependo de não ter aceite o convite do Gullander. 

Ele sabia.

Escrito por Matthieu Ricard, monge do budismo tibetano popular no mundo ocidental, o prefácio da autobiografia de Choying Drolma contém mensagens que tocam na essência que sempre reconheci no Miguel: amor profundo pelo próximo, compaixão e entrega à vida em liberdade.

São estas as frases que escolhi ler no encontro de homenagem:

“Em tibetano, a palavra nyingjé, que se traduz por «compaixão», significa «o senhor do coração», ou seja, aquele que deve reinar sobre os nossos pensamentos. De acordo com o budismo, a compaixão é o desejo de remediar todas as formas de sofrimento e, sobretudo, as suas causas - a ignorância, o ódio, a cobiça, a inveja, etc. O amor altruísta é, segundo ele, o desejo de que todos os seres sejam felizes e encontrem motivos para a felicidade.

(…) Regra geral, a nossa compaixão e o nosso amor dependem da atitude de boa vontade ou de agressividade dos outros para connosco e para com os que nos são próximos. É por isso que nos é extremamente difícil ter um sentimento de compaixão para com aqueles que nos magoam. A compaixão budista, no entanto, tem que ver com o desejar, de todo o coração, que todos os seres, sem distinção, sejam libertados do sofrimento e das suas causas e, de modo particular, do ódio.

(…) quando (…) experimentamos um sentimento forte de empatia para com o sofrimento dos outros, a resignação impotente dá lugar à coragem, a depressão ao amor, a estreiteza de espírito a uma abertura para com todos os que nos rodeiam.

(…) O pássaro que levanta voo e se vai embora não «renuncia» à sua gaiola, ele liberta-se dela num voo alegre.”

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O MARINHEIRO DE ESTRADA

(de José Domingos Guemil, Lubango – Angola)

Gullander pôs os seus pés pela primeira vez em solo angolano em 2008: casaco de cabedal, tatuagens, calça jeans, auriculares e livros na mala. Confidenciou que devido à sua irreverência e simplicidade, no seu primeiro dia de trabalho, foi impedido de entrar no Isced-Benguela. Mas era mais a sua irreverência mental e sua intelectualidade singular que se destacava, por isso fazia questão de abordar isso nas suas aulas: “Pensar pela própria cabeça” ou “primeiro pensamento, melhor pensamento”.  Dali arrumou as malas para o Namibe a convite do projecto “Saber Mais”. Nessa altura, inevitavelmente, marcou uma geração de alunos que tinham a sua companhia e o seu modesto apartamento como um “santuário da literatura”. Ao visitar-se o Gullander nunca se saía de mãos vazias. Se não era a oferta de um clássico da literatura universal podia-se ficar sentado na sua sala a ouvir Mozart ou a assistir a um belo documentário de Carl Sagan, enquanto o mesmo terminava a sua sessão de Meditação Vipassana. De todas essas vivências ficou a “amizade”, mesmo depois de se ter feito à estrada, rumo à Cabo Verde, São Tomé, Moçambique, Portugal, etc., Gullander, já ausente de Angola, nunca deixou de manter contacto com os seus discípulos, procurando saber de novidades da vida pessoal e, claro, “o livro que se estava a ler”.

Queriam Deus que o Mestre viesse despedir-se dos seus discípulos que hoje se fazem professores de literatura, porque decidiram seguir-lhe as pegadas, e cuja principal lição de vida profissional era: “ser uma luz ao meio do obscurantismo do mundo”. Em 2023, de volta a Angola, Gullander aceitou o desafio de encabeçar os cursos de “Pedagogia e didáctica da Literatura infanto-juvenil” e “escrita criativa: construir narrativas para crianças e jovens”, onde, com a lucidez e reflexão que caracterizavam as suas aulas, ensinou novas metodologias de ensino da gramática por meio da literatura, por ele criadas. Na província da Huíla, por exemplo, com a sua voz gutural, ideias cativantes e bela performance, conquistou novos discípulos com as “técnicas de gatilho”, “ritual vudú”, “escrita de um argumento” ou a “leitura nas entrelinhas” e dessa forma, formou a sua própria “tribo”, na verdade, como já fizera noutras paragens, pois defendia que pertencemos todos à “mesma matriz humana, conectados pela mente e espírito”, independentemente da raça ou nacionalidade. 

Nunca deixou de partilhar as suas referências literárias: Henry Miller, George Steiner, Roberto Piva, Carlos Ceia,  Knut Hamsum, George Orwell, Dostoievsky, Buda, Jesus, Simone Weil, ou então na literatura angolana, Ruy Duarte, Agualusa, Ondjaki, Paula Tavares, entre outras. Muitos alunos saíam da sua casa, com livros desses autores e voltavam com resumos feitos, a seu pedido.  Gullander não se coibia de ser um professor disciplinado e altruísta, dedicando-se à escrita e leitura voraz, além da atenção pessoal aos seus alunos. Na verdade, aplicava na sua vida o que os clássicos da literatura lhe ensinavam: o amor pela arte, o engajamento social e o uso da educação como a arma mais poderosa para se mudar o mundo, parafraseando Mandela. 

“Hoje feio e fétido - cismava o charco – amanhã serei nuvem”, escreveu Hermógenes, palavras milenares que nos ensinam acerca da transitoriedade e imanência da vida, infelizmente, muitas vezes vivida “através da chuva”. Em suma, acreditamos que o MESTRE apenas está a caminho de casa, afinal, tal como ele ensinou, não há morte, nem fim, mas um processo de crescimento, de evolução ética, cultural e espiritual contínuos.         

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GULLANDER

(de Damião Silva da Cruz, Angola – Lubango)

Tu não vendias sonhos 

Eras o sonho que vagava por África

És o sonho irrestrito 

 

O sonho transformou-se em luz

A nuvem condiciona os meus olhos

Ou encobriu o teu brilho?

Procuro-te fora do coração

Pranteio por não te alcançar com as mãos

 

O que era intenso

Ainda é

As lágrimas 

não são átomos

é o amor a transbordar de onde nunca houve muito 

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O SONHO DA MARTINHA

(de Verónica NganduBenguela - Angola)

Em Benguela, muito, muito longe das cidades, de tudo o que era civilização, havia um campo seco, cheio de arbustos desfalecidos e muitas pedras por onde se escondiam lagartos, escorpiões, e todos aqueles animais típicos de lugares assim. Havia nesse campo uma gruta muito escura e muito profunda. Dentro da gruta encontrava-se, presa em seu casulo, uma lagartazinha de nome Marta. Tudo o que Marta conhecia da vida era aquele apertado casulo. Mas apesar de quente e apertado, sentia-se mesmo confortável lá dentro. E era tudo o que conhecia da vida. 

Os segundos se passavam, viravam minutos, que viravam horas, que viraram dias. Agora Marta sentia que algo de extraordinário se passava com seu corpo, mas não entendia o que era. Que seu corpo já não parecia tão mole, nem tão macio assim. Que lhe crescera qualquer coisa neste lado do corpo e no outro. Percebera também que junto com as mudanças, nascera dentro de si um enorme desejo de não mais estar aí. Que existia, pois sentia, um outro lugar bem melhor. Mas como sair? Pensava Marta. Tudo o que conhecia era o casulo dentro da gruta. E haveria um outro lugar para onde ir? A gruta era tão escura, que nem mesmo Marta se via. Mas o desejo de sair dela era forte e tão certo, que ela não hesitou: com um pouquinho de esforço, Marta se soltou do casulo, mas em vez de cair ao chão, viu-se a flutuar. Meu Deus! Pairava plena no ar! 

Agora mais decidida do que nunca, convencida de que aquele não era mesmo o seu lugar, começou a tatear de um lado para o outro em busca de uma saída. Nesse mesmo instante, uma luz brilhou lá dentro da enorme e negra gruta e todo o seu interior se tornou visível. Marta pôde enxergar-se. Encantou-se com a luz que brilhava cada vez mais forte, encantou-se com o seu lindo corpo que refletia a cor da luz. Estava tão feliz porque era a primeira vez que se enxergava, contemplando-se com grande admiração e felicidade. 

De repente a alegria era tanta que ela sacudia as duas laterais que lhe haviam crescido e deu-se conta de que estava a voar, a mover-se no ar com acrobacias de mestre. Como se tivesse nascido para isso mesmo. Enquanto voava para lá e para cá, a luz ia subindo e enfraquecendo, quase a desaparecer. Sem perder tempo, Marta seguiu-a. Subiu, subiu e subiu, até chegar à saída da gruta. Estava escuro lá em cima. E a luz desaparecera. Era noite lá fora. Mas dava para ver o vulto dos arbustos e de algumas pedras gigantes. Foi de uma dessas pedras gigantes que Marta ouviu uma voz que a chamava com simpatia: “anda, voa para cá. Aqui à direita.” Orientou-lhe a voz, tão suave como um algodão doce. Imediatamente dirigiu-se para ela. “Quem és tu?” Perguntou ao sentar-se junto da voz. “Verônica”, disse a voz doce como um algodão doce. “O que fazes aqui? E o que tu és?” quis saber Marta. “Somos borboletas, minha linda querida. E te esperava.”

“Borbo o quê?” Gaguejou Marta, com um misto de admiração paz e felicidade. “Borboletas,” repetiu Verônica. “Eu sou a Marta. E porque me esperavas?”

“Calma, descansa.” Disse Verônica sorridente. “Amanhã teremos uma longa e linda jornada pela frente, voando, voando, voando. Há um mundo muito bonito, cheio de flores lindas e borboletas de todas as cores e insetos de todos os tamanhos que nos aguardam. É para lá que temos de ir. 

“Mas, não entendo.” Disse Marta com uma expressão um tanto confusa e triste. “Era escuro o meu mundo, confortável, mas escuro. De repente uma luz brilhou e com ela nasceu-me um grande desejo de sair de lá. E ela guiou-me até a saída. Mas posto cá a luz desapareceu. E continua escuro neste mundo. Porque me tirou a luz de um lugar escuro para outro escuro?” 

“Tem calma”, disse Verônica. “É só a noite. Não tarda o dia vem. Aí estará tudo claro para a nossa expedição. Ele tirou-te da lá porque não era o teu lugar. Serviu-te apenas para cresceres e ficares forte. E te trouxe até mim para que juntas voemos e exploremos o mundo. Eu estou aqui há mais tempo do que tu. Esperei com paciência pela tua transformação. Nesse tempo ele contou-me sobre muitos lugares lindos a visitar. Tenho muito desejo de os conhecer, mas me falta a coragem de voar. Tenho medo. De cair e me magoar. E ele disse-me que tu tens a coragem de um leão e a força de um hipopótamo”. 

“Ah, lá isso é verdade!” Disse Marta com um ar de satisfação. “Coragem é o meu sobrenome.” Verônica sentiu-se tão contente! 

As duas borboletas passaram a noite toda tagarelando, cantando e sorrindo, felizes uma com a outra. Quando chegou finalmente o dia e a hora da partida, prepararam-se para partir. Antes de baterem as asas, Martinha lembrou-se de que a noite toda quisera fazer uma pergunta, mas eram tantas tagarelices, canções, entre outros, que acabara se esquecendo. Perguntou logo antes que se esquecesse de novo: 

“Verônica, quem era o tal ele que te falou da minha coragem?” 

“Ah, sim. Ele, a luz que te mostrou o caminho para fora da gruta. E que me fez companhia enquanto te esperava.” 

“E a luz é macho?” Perguntou Martinha. 

“Sim.”

“E a luz tem nome?”

“Sim”. 

“E qual é o nome da luz?”

Verônica apontou para as asas de Marta. “Vê” disse agora com a voz mais doce que um algodão doce. 

Martinha olhou para ambas as asas e viu que numa delas havia uma letra M maiúscula de cor amarela, e na outra havia uma letra G igualmente maiúscula de cor azul. Ficou encantada, pois eram muito bonitas e brilhavam. 

“É o nome da luz?” 

“É sim. Mas primeiro temos de aprender a ler. Depois, vamos ao jardim da Grande Borboleta. É ela quem decifra estes códigos.” 

E lá se foram as lindas borboletas, voando alegremente e cantarolando. Partiram em direção ao arco-íris, atraídas pelas suas cores fascinantes, pois tinha chovido há instantes. Viajaram e conheceram todos os lugares que desejaram. Mais tarde, depois de todas as aventuras felizes ao lado de sua irmã, Marta, já adulta, e já sabendo a ler, chegou perto do ouvido de sua irmã, esvaziou o peito num suspiro de gratidão, e sussurrou-lhe bem baixinho olhando para o seu próprio par de asas, descodificando feliz aquelas cintilantes iniciais maiúsculas: Miguel Gullander!!!

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O FEITICEIRO

(de Marta Lopes, Angola – Benguela)

Ao feiticeiro que dizia que tudo é dor… Tudo era amor.

Enfeitiçou-nos com a luz do seu coração Viking, porque de valhalla vinha para mostrar ao mundo o amor além-fronteiras. 

Só existiam pessoas, para o cidadão do mundo.

 Em perdido de volta achou-nos trazendo um mar de esperança.

Tinha na alma uma luz que se via através da chuva, nem a dor, nem o sofrimento o fizeram mudar

Aquele escandaluso, foi para valhalla, navegar por aqueles mares que tanto amava.

O seu coração ficou com cada alma que tocou.

Aquele que só deixava obras acabadas em cada alma que tocava.

Amor, deveria ter sido o seu nome. Talvez fosse…. Para quem o soube ler.

 Trouxe por essas estradas as baladas onde sempre foi marinheiro, uma saudade que não cabe nos corações que amou…

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CELEBRAÇÃO

(de Carlos Ceia, Lisboa)

Celebro a vida de Miguel Gullander. Não escrevo o seu obituário, mas a sua celebração. A vida de um professor é feita de descobertas. Às vezes descobrimos um aluno que nos transforma e nos faz sermos melhores professores e melhores pessoas. Às vezes temos a sorte de “perfilhar” um aluno e ajudá-lo a crescer profissionalmente, porque há nele ou nela talento tão grande que seria absurdo não fazermos tudo o que for possível fazer para que ele ou ela possam brilhar talvez mais do que nós próprios. Foi assim com o Miguel Gullander, que começou por ser meu aluno na licenciatura. Depois quis ir fazer um mestrado em educação na Suécia, o que fez com o mesmo brilhantismo com que tinha feito a licenciatura portuguesa. Foi muito elogiado na Suécia, mas quis que o mérito fosse da formação que obteve na FCSH. O Miguel somou sempre sucessos por mérito próprio sem dar muito valor a isso. Aqueles que o conheciam e que com ele se cruzavam reconheciam-lhe mais facilmente o seu enorme valor do que ele próprio. 

Aventurou-se por vários países africanos de expressão portuguesa e ainda por Timor-Leste. Sempre que me telefonava parecia ser de um sítio diferente. Às vezes, era apenas para ouvir uma voz amiga. Vejo agora que esses simples telefonemas e as vezes em que foi possível o reencontro na FCSH tinham mais importância do que imaginava. É difícil compreender que em pessoas tão claramente reveladoras haja uma espécie de solidão obscura que é capaz de nos destruir lentamente sem ninguém ver. 

África não foi só o lugar de vários portos de abrigo. África tornou-se a sua pele e o seu coração. Passou por muitos sofrimentos apertados por causa das várias doenças que o martirizaram, mas saiu sempre mais vivo de cada uma delas. Mesmo quando a sorte não o protegia. Queria mais, não para si, mas para poder dar aos outros sempre mais. Por outras palavras, queria aprender mais para poder ensinar mais e melhor. É isto que é verdadeiramente ser professor. Quis fazer um doutoramento. Tinha de ser comigo. Chamava-me mentor e mestre, mas eu é que aprendia sempre mais com ele. Deixava-me muitas vezes desarmado com o enlevo com que lia os meus livros e o valor que dava aos meus conselhos. Sempre que me escrevia, começava com “Meu muito estimado professor…”. Mas foi tão pouco o que lhe dei para merecer essa estima extrema se comparado com o muito que ele soube depois aproveitar e passar a muitas gerações de outros professores e futuros professores. Deixou uma marca única. Eu digo sempre aos meus alunos futuros professores: se querem ser professores, devem deixar a vossa marca, pois é o que vão levar de melhor desta profissão: saber que nunca alguém esquecerá o que ensinámos. Porque também nós somos o produto de outros que nos ensinaram antes. Quanta paixão pela literatura o Miguel levou por tantos lugares onde parecia ser impossível ela poder revelar-se. Cada um de nós/vós guardará esse testemunho único. 

Tinha a legítima ambição de voltar a Portugal e deixar de ser sempre o eterno Marinheiro-de-Estrada. Insisti que devia acabar o doutoramento várias vezes adiado, por causa dos muitos obstáculos que a vida lhe foi colocando à frente. Foi uma alegria muito grande tê-lo terminado com grande mérito. Estava à espreita de uma oportunidade de concurso em alguma universidade portuguesa que precisasse de um professor de literatura, sem descuidar das suas missões sempre ao serviço do Instituto Camões, que lhe deve muito e que lhe devia prestar uma homenagem justa. Nunca apareceu essa oportunidade e prosseguiu o seu caminho errante, assumidamente errante, construindo ao mesmo tempo uma breve mas sólida carreira literária, com livros de grande qualidade, reservando já um lugar na nossa literatura portuguesa contemporânea. Através da Chuva devia ser leitura obrigatória em todas as escolas angolanas. Miguel fez-se africano na escrita e soube elevar-se nessa africanidade pura. Nunca fui a Angola, mas conheço Angola pelo olhar e pela escrita de Miguel Gullander e, como seu leitor e ouvinte amigo, fez-me sempre querer conhecer esse lugar onde habita a Palanca Negra Gigante. Na obra de ficção de Miguel, podemos acreditar que os mitos aprenderam também uma forma de habitação entre nós. 

Já não fui a tempo de lhe oferecer o meu último livro. Tínhamos combinado enviar-lho por correio, mas preferíamos que fosse uma entrega pessoal, como mais um pretexto para falarmos do ensino da literatura e de quanto o livro fazia falta em Angola. Mas agora é o professor Miguel Gullander que faz muita falta a Angola, à Africa de língua portuguesa e a toda a lusofonia. São os livros dele que vão fazer sempre falta, porque é a única forma de um professor-escritor não morrer verdadeiramente.

Um outro escritor, John Berger, em Here Is Where We Meet, diz que os mortos vivem sempre quando nos lembramos deles, por isso Miguel Gullander viverá nas nossas lembranças para sempre. Estarei sempre contigo, meu muito estimado Miguel.

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(de Jorge Pimentel, Angola – Benguela)

ao feiticeiro o feitiço

que me ensinaste

 

não há para ti missa

de corpo presente

e Valhala não será suficiente

 

não era só viking era escandaluso

 

soube sempre o que queria ser

eu que nunca soube

agora sou Gullander.

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PALANCA NEGRA GIGANTE

(de Matilde Real, Lisboa)

Escreve, escreve! Dizias. O mesmo livro cinco vezes. Depois queima-o.

E escreve mais.

E queima. 

Até que o fogo hesite e te devolva uma letra gasta, um sentido, a quinta vez que fixaste cada palavra na folha. Até à tatuagem. 

Foste um relâmpago impossível de esquecer, de apanhar. E desde que morreste tem aparecido nos meus sonhos uma Palanca Negra Gigante.

Esse antílope que pensavam não existir mais. Escreve! Dizias. Mas que palhaçada é esta? Escreve. Se não fôr amor, é mentira. 

A primeira vez que estivemos frente a frente não consegui olhar-te nos olhos. Sentia-os a percorrerem-me por dentro e tinha medo. Tu vias tudo. E uma vez, muito tempo depois, sentei-me à tua frente e disse: agora já consigo olhar-te. Que alívio! Tu riste e as duas lanças azuis que trazias continuaram apontadas para mim, com a firmeza selvagem de sempre. 

Tem-me visitado em sonhos uma Palanca Negra Gigante. Fica ao fundo, não entra na história. Deixa que tudo aconteça como se lá não estivesse. Mas está. Entre a folhagem ou na esquina de um prédio do meu inconsciente. Espera na estrada de terra por baixo de casa, na curva ou do outro lado do rio. Instala-se no sonho e deixa-se ver. Não está atenta aos meus grandes dramas, à acção principal daquela noite, embrenha-se na paisagem, na distância.  Não proíbe que eu percorra cada centímetro seu, e há qualquer coisa nada-humana na forma como se deixa ver. Como se eu fosse o vento ou os raios de luz que lhe pousam no dorso. A coisa mais natural da natureza. Uma Palanca Negra Gigante que não me pertence, nem àquele sonho, que olha de volta e me confunde. Já não me lembro do sonho que estava no momento de sonhar. Como se desaparecesse tudo o que sei. Terá vindo ver-me? Isso era o que eu queria… mas não. Veio deixar-se olhar, lembrando: a humana aqui és tu, criptozoóloga. Humano é sempre quem olha.

Quando nos conhecemos eu tinha 16 anos, tu milénios. Não conseguia olhar-te sem pudor. Desde esse primeiro instante soube que olhava uma coisa rara, espécie quase extinta, e que isso teria de ser merecido. Teria de atravessar uma selva para te ver. E dez anos mais tarde, quando te disse à mesa do café: finalmente já consigo olhar para ti. Que alívio. Tu riste e deixaste-me percorrer cada centímetro teu, como se eu fosse o vento ou o sol a pousar-te na pele. E também deixei que me visses com esses olhos que vêem por dentro, nada a temer, e larguei tudo para que nos olhássemos um momento. E isso fez-me, para sempre, um pouco menos humana, não sei dizê-lo de outra maneira. Um pouco mais essa coisa que me tem visitado em sonhos.

por vários
Mukanda | 27 Março 2024 | Miguel Gullander