“Papéis da Prisão”, de José Luandino Vieira: uma “biografia”
por Margarida Carlafate Ribeiro, Mónica V. Silva e Roberto Vecchi.
A “biografia” de uma obra parece um sucedâneo figurado, anómalo de uma convencional biografia do autor. O que percebemos, porém, ao longo dos quase três anos de organização de um projecto entusiasmante e labiríntico, com a presença fortíssima e discreta de Luandino em cada etapa da sua realização, é que o caso dos Papéis da Prisão coloca sob suspeita muitas categorias da crítica literária ou textual. Como não pensar que o material do projecto – uma vida posta em causa nas suas relações e no seu bem-estar em nome de um ideal superior, entrelaçada nos frágeis papéis que compõem um diário minuciosíssimo – é tão biográfico que torna necessário pensar na obra como substância humana que impõe um retrato?
O projecto surgiu com uma espontaneidade e uma complexidade desarmantes. Luandino participando em Coimbra num Encontro, há quatro anos, intitulado “Memórias de tantas guerras: guerras coloniais, guerras de libertação, guerras civis em Angola e Moçambique”, ao lado de José Luís Cabaço, por Moçambique. A ideia dos organizadores do colóquio era trazer os outros lados das guerras de libertação: os clandestinos, os presos políticos, as mulheres. Na sua intervenção, Luandino fez referências ao diário da sua detenção. E levou uma amostra que logo nos pareceu magnífica. Dois ou três cadernos artesanais, constituídos por papel de circunstância, com uma escrita pequena, desenhos, fragmentos colados. O número das peças: dezenas, centenas e centenas de entradas, milhares de fragmentos.
Foi assim que quase naturalmente se constituiu uma equipa na altura deste Encontro, nomeadamente a coordenadora, Margarida Calafate Ribeiro (Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra), Roberto Vecchi (Universidade de Bolonha), Michel Cahen (CNRS/Sciences Politiques, Bordéus) e Phillip Rothwell (Universidade de Oxford). Ficou expresso o interesse dos investigadores neste acervo precioso e desconhecido para, após tratamento, o poder eventual e idealmente publicar em diferentes línguas. Foi esboçada inclusive uma metodologia de emergência que determina uma fase importantíssima: era preciso, como primeira etapa, fixar o texto em português e torná-lo publicável. A experiência noutros projectos de igual grau de complexidade, e de certo modo similares, como por exemplo, a organização do volume de Eduardo Lourenço, Do colonialismo como nosso impensado, publicado em 2014, com a reunião de um grande acervo de textos, naquele caso éditos e inéditos, do professor, deu-nos a infraestrutura necessária para a definição de um programa de trabalho que levasse in primis à edição do texto, em parceria com o autor.
Surgiu assim, com a surpresa por um livro quase inesperado, a construção de um projecto que foi apresentado e aprovado pela Fundação Calouste Gulbenkian e cujo objectivo era a sua publicação por ocasião dos 40 anos da “ dipanda”, da Independência de Angola, em 1975. O projecto contou com a dedicação de uma pequena equipa, coordenada por Margarida Calafate Ribeiro, Mónica V. Silva, também do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e por Roberto Vecchi da Universidade de Bolonha, junto obviamente com José Luandino Vieira. A tarefa era a fixação e edição do texto, sendo que texto em José Luandino Vieira nos Papéis da Prisão é algo muito diverso. Também foi fundamental o apoio do CES de Coimbra, em particular da equipa do programa de doutoramento em Patrimónios de Influência Portuguesa e o envolvimento de um editor apaixonado e decidido, Zeferino Coelho.
Uma biografia de uma pessoa, como de uma obra, necessita sempre de começos. O começo é evidentemente Luanda, Pavilhão Prisional da PIDE, 1962. A data do início da escrita. Mas a biografia dos Papéis da Prisão hoje – uma obra excêntrica para o autor de Luuanda, sendo, porém, entranhada na sua experiência – tem como um começo possível Coimbra, no começo de Abril de 2013, quando a equipa se reuniu com o autor e elaborou um cronograma de trabalho com toda a complexidade do caso perante tantos possíveis papéis. Qual era afinal o quadro dos materiais que se apresentava? O reconhecimento de fontes realizou-se em duas fases: uma permanente ao longo dos dois anos, em Vila Nova de Cerveira, a cidade de residência de Luandino; outra, em Maio de 2014 em Luanda. O tabuleiro do projecto apresentava-se assim em toda a sua força e complexidade com uma enorme variedade de documentos em diferentes formas.
De facto, durante a sua longa detenção, de 1961 a 1972, José Luandino Vieira coligiu um vasto acervo de materiais em 17 cadernos meticulosamente datados, intitulados pelo autor «…ontem, hoje, amanhã…». Estes cadernos são compostos por fragmentos de vária natureza: anotações diarísticas, correspondência (cartas e bilhetes internos), postais e desenhos, cancioneiros populares recolhidos junto de outros prisioneiros, esboços literários e exercícios de tradução, ditos e textos em quimbundo, recortes jornalísticos, apontamentos. A equipa notou logo que o início da escrita não coincide com o começo da prisão, que ocorreu em 20/11/1961. Efectivamente, os primeiros seis meses de detenção, em Luanda, foram necessários para estabelecer ligação com a rede de comunicação dentro da cadeia, rede pessoal e de preparação do processo. Mais o tempo dos interrogatórios, da surpresa da vida suspensa. O processo de escrita destes «diários do cárcere» tem portanto como fronteiras cronológicas e espaciais a entrada do escritor no Pavilhão Prisional da PIDE em Luanda (1961), e a sua saída do Tarrafal (1972), sendo o final da escrita de 6/7/1971. A materialidade destes cadernos é composta por aproximadamente 2000 frágeis folhas manuscritas onde José Luandino Vieira anotou a sua visão do cárcere como observatório excepcional da nação angolana, manifestou os seus projectos políticos e literários, evidenciou o projecto comunitário de Angola como o espaço de união e resistência colectiva, expressou angústias e sonhos pessoais.
Do ponto de vista de uma escrita do cárcere, a acumulação de páginas de notas tem uma linha de corte de leitura muito evidente, a que corresponde em pleno uma geografia carcerária. De facto, aos primeiros anos nas cadeias de Luanda corresponde um tempo de uma mínima proximidade familiar, que sustenta a esperança de reversão do processo e a observação da nação angolana encarcerada manifesta no movimento de presos políticos e de delito comum, com as suas vidas, as suas línguas, as suas geografias, rituais e esperanças.
Esta primeira parte, que vai de 1961 a 1964, caracteriza-se pelo uso do fragmento de texto de autor em que se manifesta a força de projecto literário e político. O projecto literário aqui assinalado é ser escritor, visível na recolha de elementos culturais, nos vários planos de contos e mesmo livros produzidos, nomeadamente Meu Musseque, Luuanda, com o desenho das personagens, as reflexões e a ânsia da opinião da sua primeira leitora, a mulher, com quem negoceia a voz do escritor e, a dela, como leitora; paralelamente ou intersectando-se com o projecto de ser escritor desenvolve-se o projecto político. O projecto político é ser Angola, Angola independente e livre, pleno de outras vozes, manifesto nas cartas, nos contactos, nas solidariedades, nos gritos da tortura que conectam a voz e o corpo e gera a solidariedade de uma comunidade de corpos marcados pelo sofrimento e encarcerados. Pela dor, nas suas várias declinações, cria-se uma matriz de relação de solidariedade do cárcere político, em que o político nasce da dor que aqui quer dizer partilha. Mesmo que a dor seja sempre uma experiência individual, no espaço carcerário a dor é comunitária e, portanto, é política. Mas o projeto político é também a percepção da nação angolana encarcerada nas suas diferentes geografias que no espaço carcerário convergem, nas línguas, nas canções, nas diferentes ordens e entendimentos de justiça, religião e valores que levam o autor a questionamentos múltiplos sobre a densidade do projecto político e do seu potencial literário.
Estas características contextuais e hoje históricas dos Papéis impuseram a configuração de uma metodologia ad hoc. Não se trata, efectivamente e a rigor, de uma edição linear aquela que se organiza junto com o autor. A experiência que tivemos mostra como a fixação do texto ocorre de acordo com um critério de conservação, procurando o que poderia ser considerada, em hipótese, uma transcrição fiel dos manuscritos. A fixação do texto, no entanto, foi só o começo de um processo de constituição dos Papéis sob o gesto de autor de José Luandino Vieira. A operação filológica que proporcionou o texto base foi o limiar da construção da obra por parte do escritor. É neste sentido que a organização do volume se apoia num processo híbrido e, ao mesmo tempo, riquíssimo ao combinar o trabalho de investigação da equipa com um projecto de activa responsabilidade do autor, sem detrimento da restituição ampla e fiel dos textos originais.A substância biográfica subentendida – que poderia ser definida como histórica – é de imenso valor factual sobretudo neste tempo em que comemoramos as independências daquelas que foram as colónias africanas portuguesas de Angola, Moçambique, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau. Esta independência foi conquistada após uma prolongada guerra de 13 anos, de 1961 a 1974, em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. José Luandino Vieira foi preso logo no início das lutas pela independência, primeiro ainda em 1959 e depois, de novo, em 1961, tendo sido condenado, em 1963, por prática de crime contra a segurança externa do Estado, segundo o artigo 141.º, n.º1, do Código Penal de 1961, por intentar, por meio violento ou fraudulento, separar a Mãe-Pátria ou entregar a país estrangeiro todo ou parte do território português. A condenação foi de 14 anos de prisão: paradoxalmente dir-se-ia que é esta circunstância que torna a sua torrencial escrita confessional, num observatório privilegiado dos factos que antecedem, acompanham (com toda a interferência da mediação problemática do cárcere e do campo) e seguem estas páginas de história.
De facto, a edição da obra, após uma atenta recuperação, selecção e organização dos materiais por parte do autor, respeitou, sempre que possível, o manuscrito original. A organização da obra cumpre, portanto, regras textuais por um lado, e por outro lado permite uma abertura do campo para uma releitura que corresponde à reorganização activa da matéria pelo seu autor, a partir da própria ideia material de livro.
Para valorizar a presença de um olhar também actual sobre a construção do volume resolveu-se acrescentar, junto a um amplo aparato que apoia esta decisão, uma longa entrevista realizada ao longo de muitos encontros com o autor. Deste modo, o desdobramento de visão entre o Luandino de então e o Luandino de agora pôde ficar evidente ao exibir as temporalidades múltiplas em jogo.
Uma vez descritas as formas com que a edição se realizou, se quiséssemos discutir o género do livro ou se nos pedissem para classificá-lo, diríamos, como Garrett das suas Viagens na minha terra: uma obra inclassificável. Tão variada é a composição, como dizíamos acima, que se trata realmente de um patchwork riquíssimo justamente pela multiplicação e a diversidade das peças e das formas – não só literárias – que combina. Combinação, aliás, condicionada e produzida pela circunstância biográfica e permanente de excepção em que o escritor se encontra: o cárcere ou o campo. Como equipa, a ideia que amadurecemos durante os meses de constituição da obra foi-se tornando clara: trata-se de um volume decerto modo paraliterário, mas que explicita com uma luminosidade única e solar as fronteiras entre os vários projectos que compõem a obra de um dos maiores autores vivos de língua portuguesa: o político, o literário, o histórico, o testemunhal etc. Documento da história e, ao mesmo tempo registo impecável, também literariamente, da subjetividade e da memória de uma experiência sem iguais.
A recolha de tipos sociais que vão gerar as personagens, a escolha da geografia literária e política do musseque, a percepção de uma língua portuguesa em diferença para as personagens e a sua introdução no tecido literário, a representação de outros valores e de outras formas de justiça e de conhecimento nos seus futuros livros vêm muito da observação deste “laboratório possível” que é a prisão e que permite ao autor ver a já existência da nação angolana. Essa é, aliás, uma das leituras mais expressivas dos Papéis – a constatação da existência de uma nação com séculos de história, e que nunca pode emergir sob forma independente e de Estado-nação. Nos Papéiso espaço carcerário de Luanda parece ter dado a confirmação material dessa existência. Tratava-se, portanto, de organizar a luta no sentido de criar as condições para o reconhecimento dessa evidência e disso fazia parte seguramente o projecto cultural, ou seja, o da construção do Estado a partir das culturas que definiam a nação. Tudo isto converge simbolicamente no esboço de desenho da própria bandeira do país pelos presos e num curioso episódio que envolve a tradução de uma palavra de ordem para todas as línguas angolanas representadas. Concluem que isso é para dizer em todas as línguas de Angola – “carregar as espingardas”. Este projecto político é, portanto, literário e é esta “não disjunção” que lhe confere a dimensão estética. A dimensão humana está permanentemente filtrada por um eu em ruptura pessoal, como fica bem expresso nos desenhos íntimos da família e dos seus auto-retratos, que ao mesmo tempo que sustenta o sujeito, o desfaz em momentos de auto-reflexão profunda.
Esta é a “biografia” sintética de uma obra única que enriquece muito o nosso conhecimento da obra literária de uma grande e única voz das literaturas em língua portuguesa. E tudo isso se capta no fragmento que oferece um divisor de água humaníssimo entre as duas partes dosPapéis, quando dos cárceres de Luanda, Luandino é deportado para Tarrafal: para nós uma espécie de eixo crucial que tudo sintetiza do volume como um todo, um livro do passado, mas que dialoga sempre com o futuro, com a esperança, o desejo, o sonho:
“Encerro aqui esta parte do diário. Agora outra fase se iniciará com esta viagem e depois a permanência em Cabo Verde. Voltarei vivo? Morto não posso voltar… Parto calmo e confiante no futuro. Tenho a K., o Xexe, a minha terra, o m/ povo e uma luta que é uma das últimas em prol da futura vida nova no nosso planeta. Possa eu, agora, em 1964, Angola, África, ser digno sempre desses homens futuros.” (3.VII.64)
Publicado originalmente no “Jornal de Letras”.