PARECER do grupo de trabalho da Comissão Científica da Delegação da ALMA-CV em Portugal
sobre o Manual de Língua e Cultura Cabo-verdiana – 10.º ano (2025), Ministério da Educação de Cabo Verde e Universidade de Cabo Verde
Nota prévia
O Parecer que ora apresentamos, enquanto membros da Comissão Científica da Delegação da ALMA-CV em Portugal, é a face visível, condensada, de um conjunto mais alargado de documentos, produzidos na sequência de uma minuciosa análise, apoiada em bibliografia relevante, do Manual de Língua e Cultura Cabo-verdiana - 10º ano (2025). Esta análise incidiu, nomeadamente, sobre os pressupostos subjacentes à “norma pandialetal de escrita” aí proposta e sobre o modelo pedagógico e didático adotado para o ensino da língua materna, em todas as suas componentes linguísticas e dimensões sociolinguísticas.
O grupo que elaborou o Parecer, no seu conjunto, tem uma história antiga (em alguns casos, remonta a 1979), de investigação linguística sobre o crioulo cabo-verdiano, de intervenção ativa na política e planificação linguísticas (promovendo a valorização e a instrumentalização da língua, e em particular a sua representação gráfica), de produção de materiais pedagógicos e didáticos e de ensino do cabo-verdiano, em vários níveis de escolaridade (desde a educação de infância, ao primeiro ciclo, ao ensino universitário, passando pela alfabetização de adultos…), bem como de formação de professores nessa área.
Foi, pois, com essa motivação que nos empenhámos no estudo e na análise crítica do referido Manual, convictos da importância que pode ter como instrumento de afirmação do cabo-verdiano e das suas variedades, sobretudo enquanto não se implementa o tão recomendado ensino da língua materna, desde o primeiro ano de escolaridade.
1. Introdução
O presente parecer da CC da DALMA-CV em Portugal incide sobre o Manual de Língua e Cultura Cabo-verdiana – 10.º ano (2025) (doravante designado Manual), no contexto da introdução da língua cabo-verdiana (LCV) como disciplina opcional no ensino secundário, a partir do 10º ano. Trata-se de uma iniciativa pioneira e louvável que pretende valorizar e institucionalizar a LCV no espaço educativo cabo-verdiano, integrando o património linguístico e cultural de Cabo Verde no sistema de ensino.
No entanto, a análise atenta do Manual revela fragilidades de ordem pedagógica, linguística e sociolinguística que deveriam ser consideradas antes da sua adoção plena. Este parecer visa destacar os aspetos positivos da obra, identificar os seus principais constrangimentos e propor recomendações para a sua melhoria e adequação ao contexto educativo e sociolinguístico cabo-verdiano.
2. Contributos
São vários os contributos positivos do Manual, nomeadamente, o facto de constituir um marco importante no reconhecimento da LCV como língua de escolarização; valorizar a diversidade linguística e cultural do arquipélago, ao incluir referências a todas as variedades insulares (embora não considerando as variedades sociais, estilísticas e regionais, em cada ilha); abordar ao mesmo tempo a oralidade, a escrita, a gramática e a literatura e estimular uma visão comparada e metalinguística sobre a LCV, contribuindo para o desenvolvimento da competência linguística dos alunos.
3. Limitações
3.1. A “Norma Pandialetal d Skrita”
Um dos aspetos mais controversos do Manual diz respeito à introdução, a título experimental, de uma forma de escrita inédita e que se apresenta como ‘norma’. Ocorre unicamente no discurso das autoras (“na komands d’ezersis y na text splikativ”, p. 205), não sendo objeto declarado de ensino.
Presume-se que, com esta ‘norma’, se procure neutralizar as divergências entre as variedades das diferentes ilhas de Barlavento e de Sotavento, escolhendo representações gráficas de aparente compromisso. Veja-se, como exemplo, a proposta de menin para representar as formas fónicas mininu e mnin, kansad para representar kansadu e kansod, kabuverdian para kabuverdianu e kabverdian ou fala para fla.
Isso redunda numa mistura, no mesmo segmento textual, de traços das diferentes variedades da LCV, sem correspondente real em nenhuma delas. Sendo uma construção híbrida, artificial e pouco funcional, coloca o aluno perante uma realidade linguística e discursiva que não existe fora do Manual. Deste modo, a interação autoras-alunos é feita através de uma proposta de escrita que estes desconhecem, pois não se trata de uma “maneira de falar” vertida em registo escrito, muito menos de uma variedade da LCV.
A ‘norma pandialetal’ levanta ainda outros problemas:
- Não estando prevista no programa oficial da disciplina, não apresenta uma fundamentação teórica sólida para a sua adoção;
- invoca o critério de ‘frequência de uso’ como condição para as tomadas de decisão sobre a grafia, tendo como base de contagem as ilhas e não, como seria devido, o número de falantes;
- são inúmeros os casos problemáticos de reconhecimento e leitura de palavras, mesmo quando em contexto, que decorrem, em geral, da opção pela total ausência de acentos e pelo apagamento de vogais átonas e do ditongo final -iu (er ‘erro’, jener ‘género’, proses, ‘processo’, inper ‘império’, patrimon ‘património’), o que potencia ambiguidades (como em son, ‘som’ ou ‘sono’, dos ‘dois’ ou ‘doce’, pas ‘paz’ ou ‘passo’);
- o argumento apresentado de ser fácil a descodificação lexical para quem é falante nativo não tem em conta o contacto dos alunos com palavras novas, no processo de aprendizagem. Muitas delas, sobretudo em contexto académico, importadas diretamente do português (o Manual é prova disso). Com a ‘norma’ proposta, mascara-se essa relação entre as duas línguas, aumentando as dificuldades de reconhecimento das unidades lexicais (veja-se indis ‘indício’ ou ‘índice’, aton ‘átono’, omis ‘omisso’ ou ‘homens’, patris ‘patrício’);
- os próprios enunciados do Manual evidenciam inconsistências na aplicação das regras de escrita que são explicitadas na sua parte final (pp. 202-205), como:
- grafias divergentes para a mesma unidade lexical (mens/menus; sinpls/sinplis; sinbl/sinbol; storia/istoria; stil/xtil; titl/titul; minin/menin)
- não apagamento de vogais átonas nos contextos definidos pela ‘norma’ (akordu, bindi, batuku).
Consideramos, ainda, que a diversidade de grafias presentes no Manual (escrita definida pelo Alfabetu Kabuverdianu, escrita ‘pandialetal’, escrita etimológica) confunde os alunos e compromete o desenvolvimento de competências de escrita.
3.2. Carga teórica excessiva
O Manual apresenta conteúdos avançados de linguística, a nível da terminologia e dos conceitos teóricos, nomeadamente na área da crioulística, com vocabulário técnico e referências bibliográficas desajustados do perfil linguístico e do percurso escolar de alunos do 10.º ano, que ainda não possuem hábitos de reflexão metalinguística sobre a LCV.
A extensão temática e a densidade de alguns conteúdos comprometem a sua abordagem aprofundada em sala de aula e o ensino adequado da LCV.
Na verdade, o foco excessivo nas questões teóricas contrasta com a falta de referência, por exemplo, a mecanismos de produção do texto escrito, em comparação com o discurso oral; a processos de criação de palavras em crioulo; às variantes estilísticas e sociais e a aspetos pragmáticos e culturais associados à língua.
Este Manual surge, assim, mais como um manual de linguística geral e cabo-verdiana do que de língua e cultura cabo-verdianas.
3.3. Falta de apoio didático
O Manual não é acompanhado de instrumentos complementares de apoio, como o livro do professor, nem de orientações didáticas que mostrem como deve ser usado. Pressupõe, assim, que os docentes da disciplina de LCCV tenham formação específica, nomeadamente, em crioulística, ortografia da LCV ou didática da variação, áreas para as quais a esmagadora maioria dos docentes não tem suficiente preparação.
Também não dá orientações claras sobre o tipo de escrita a que os alunos devem recorrer e sobre a variedade por que devem optar quando dão resposta às atividades propostas. Consequentemente, recai sobre o aluno a decisão sobre o modo de representar os seus próprios enunciados, sem que para isso lhe sejam dados modelos. Essa indefinição faz antever repercussões negativas nos momentos de avaliação interna e externa.
3.4. Desafios tecnológicos
A aposta do Manual em atividades realizadas através de recursos digitais (aplicações e plataformas) pode reforçar desigualdades entre alunos de zonas urbanas e rurais, por não estar garantido o acesso a uma rede informática que funcione de igual modo em todo o universo escolar cabo-verdiano.
4. Considerações sociolinguísticas
Com a introdução, no Manual, mesmo que a título experimental, de uma ‘norma’ de escrita nova, não se tem em conta todo o trabalho anteriormente desenvolvido na produção de normas ortográficas para a LCV, quer a nível científico, quer a nível oficial.
Não sendo consensual, nem previamente testada noutros contextos, essa ‘norma’ tende a gerar resistência na comunidade linguística e na comunidade educativa, podendo assim pôr em causa o sucesso do ensino formal em língua materna.
Qualquer normalização deverá ter no horizonte a aconselhável introdução da LCV desde o primeiro ano de escolaridade, num contexto educativo bilingue. Isso implica que nenhuma nova proposta deva avançar sem ser testada na alfabetização e sem que se criem as melhores condições para a promoção da biliteracia (da leitura e escrita proficientes em LCV e em português).
De notar que a alfabetização é facilitada por sistemas ortográficos mais transparentes, mais regulares e menos ambíguos, e com um grau elevado de correspondência entre som e grafema, o que não é o caso da escrita ‘pandialetal’ proposta no Manual.
5. Recomendações
Dado o exposto nos pontos anteriores, sugerimos que:
- a escrita ‘pandialetal’ seja abandonada, recomendando-se, entretanto, estudos experimentais robustos e uma verdadeira e ampla consulta à comunidade linguística, educativa e científica;
- se adote uma abordagem multidialetal clara, com uso diferenciado das variedades insulares, respeitando as formas reais e conhecidas dos alunos;
- sejam produzidas versões do Manual nas principais variedades (por exemplo, em edição bidialetal), promovendo o diálogo interdialetal;
- os conteúdos linguísticos sejam simplificados, dando prioridade às competências comunicativas e funcionais e ao conhecimento sobre a língua;
- se invista na formação contínua dos professores, com foco na didática da LCV, na escrita da língua cabo-verdiana (recorrendo ao Alfabetu Kabuverdianu), no conhecimento da gramática cabo-verdiana e das suas variedades e na gestão da variação linguística na sala de aula;
- sejam desenvolvidos recursos complementares de apoio à docência e à aprendizagem, tais como guias didáticos e materiais lúdicos e acessíveis, uma terminologia gramatical, pequenas descrições gramaticais, vocabulários temáticos, dicionários que fixem a forma das palavras, etc.;
- seja realizada uma avaliação sistemática da experiência-piloto, com recolha de dados junto de docentes e alunos sobre o uso e impacto do Manual.
6. Conclusão
O Manual de Língua e Cultura Cabo-verdiana – 10.º ano é um passo simbólico e institucionalmente relevante na afirmação da LCV como língua nacional e de escolarização. Contudo, a adoção prematura da escrita ‘pandialetal’, sem validação científica, didática e social, pode comprometer os objetivos da política linguística e educativa. Propõe-se que quaisquer definições ortográficas ou propostas experimentais de ensino da língua materna sejam conduzidas com rigor, participação comunitária e fundamentação científica sólida.
O ensino da LCV ganha em favorecer o reconhecimento identitário e a coesão nacional.
Lisboa, 28 de julho de 2025.
O grupo de Trabalho da Comissão Científica da Delegação da ALMA-CV em Portugal
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(Alice Matos)
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(Ana Josefa Cardoso)
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(Dulce Pereira)
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(Lonha Heilmair)
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(Nélia Alexandre)