O caso Amílcar Cabral. Apontamentos críticos a propósito do princípio e do projecto da unidade Guiné-Cabo Verde. PARTE 4
A evolucão do processo político caboverdiano no período posterior à falência pós-colonial do princípio paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde e do falhado sonho cabraliano consubstanciado no projecto pós-colonial de união orgânica entre as Repúblicas da Guiné-Bissau e Cabo Verde
- 1. Na sequência do colapso pós-colonial do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e do projecto de união orgânica entre as Repúblicas irmãs da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, o patriotismo africano bi-nacionalista retirou a máscara, há muito descolorida, da unidade no quadro de uma pátria sem definição jurídico-constitucional certa e determinada e sem contornos idiossincráticos precisos, e também aliviado, exibiu, em lugar certo e identificado nas brumas dos antigos Rios da Guiné do Cabo Verde localizado na costa de África da margem ocidental do Atlântico, o rosto continental uni-nacionalista da nação africana forjada na luta e, para os lados de cá, do nosso saheliano e morno Atlântico Médio, ostentou o rosto uni-nacionalista da pátria do meio do mar, na poética expressão de Ovídio Martins.
Da pátria crioula, mas também da pátria africana, ou, pelo menos, peri-africana, porque pertença de um povo cuja sagacidade o levou a enveredar, em tempo historicamente oportuno, pelos caminhos da libertação nacional, propiciados pela apreensão da sua maturidade de povo detentor de uma identidade nacional inconfundível e resgatador do seu “destino africano, livremente escolhido”, segundo os termos cunhados e lavrados por Manuel Duarte e adoptados e lidos por Abílio Duarte no Texto da Proclamação da Independência Política e da Soberania Nacional e Internacional da República de Cabo Verde.
Com o espírito perscrutando “o sol, o suor e o verde mar” do nosso chão e rememorando “os séculos de dor e esperança”, iniciados com a chegada do descobridor e a arribada da primeira nau negreira à primeira ilha do nosso arquipélago, e, depois, imortalizados no hino do movimento africano de libertação bi-nacional, pôde o povo de Cabo Verde cumprir a utopia, apenas remotamente sonhada pelos nativistas e pelos claridosos, de obtenção de uma pátria amada na terra dos nossos avôs. Hino que, outrora partilhado com a República irmã da Guiné-Bissau, constituiu o primeiro hino nacional da República de Cabo Verde e, por isso, foi, com “o milho onírico da bandeira” (em verso de Zé di Sant’ y Águ - agora transmutado em Nzé de Sant’y Ago), “esse irmão uterino” (nas poéticas palavras de Corsino Fortes), a justo título um signo maior da soberania nacional caboverdiana. Mesmo se geminada a uma outra, projectada pátria africana, lugar, a um tempo, imaginado como sonho a cumprir-se, vituperado como ressaca da utopia e/ou esconjurado como cemitério da pátria bi-nacional tão exaustamente procurada na utopia de uma pátria gloriosa bi-nacional e tão exaustivamente reencontrada na pátria africana uni-nacional do meio do mar e na nação crioula soberana que a consubstancia.
Cumprido o seu destino de orgulhosa sinalização da história e da dignidade resgatadas no nascimento de dois Estados-nação independentes e soberanos, e em prevenção do pesadelo que da utopia em sangue e ressentimento poderia entrementes jorrar e coagular-se, foi esse hino envolto na bandeira verde-ouro-rubra da estrela negra, do milho e da concha da idiossincrasia caboverdiana, simbolicamente reencontrado e remetido para o lugar digno que, por direito próprio, deve ocupar no presente da estado-nação bissau-guineense, na memória colectiva da nação caboverdiana e na história e na actualidade do Partido Africano da Independência de Cabo Verde.
Outros símbolos, por uns considerados como exclusiva e plenamente crioulos, ainda que também gémeos dos símbolos de uma outra nação irmã, agora situada nas Antilhas ditas holandesas, podiam doravante ocupar os palcos libertos da história caboverdiana.
- 2. Relembre-se neste concreto contexto que a conquista da independência política e da soberania nacional e internacional de Cabo Verde resultou da clarividente liderança do partido-movimento de libertação bi-nacional pan-africanista fundado por Amílcar Cabral e baptizado como PAI (Partido Africano para a Independência-União dos Povos da Guiné e de Cabo Verde) e, a partir de 1960, como PAIGC (Partido Africano para a Independências da Guiné de Cabo Verde) e foi conseguida graças à conjugação de uma série de circunstâncias e fatores históricos dinamizados e potenciados pelo princípio cabralista da unidade Guiné/Cabo Verde e de que se destacamos seguintes: i. uma longa, difícil mas exitosa luta política clandestina levada a cabo nas ilhas de Cabo Verde; ii. Uma tenaz e sacrificada luta política clandestina e uma político-armada de longa duração conduzida no chão do país irmão bissau-guineense com importante e, por vezes, decisiva participação de dirigentes, responsáveis e combatentes caboverdianos, desde os momentos primeiros da fundação do PAIGC até à eclosão da revolução democrática antifascista propiciadas pelo golpe de EAstado militar do 25 de Abril de 1974 protagonizado pelo MFA (Movimento das Forças Armadas), participação caboverdianas esssa que viu a sua relevância acrescida na luta diplomática levada a cabo a partir das duas Guinés e, depois do 25 de Abril de 1974, igualmente de Cabo Verde; iii. Uma luta política abertamente legal e de massas, conduzida, no período pós-25 de Abril de 1974, pelos herdeiros político-ideológicos de Amílcar Cabral no chão das ilhas caboverdianas.
São esses herdeiros político-ideológicos de Amílcar Cabral que, no período pós-colonial, reagem de forma contundente ao golpe de Estado militar perpetrado pelo Comissário Principal e Presidente do Conselho Nacional da Guiné do PAIGC, o Comandante de Brigada João Bernardo (Nino) Vieira, contra o Secretário-Geral Adjunto do PAIGC e Presidente do Conselho de Estado da Guiné-Bissau Luís Cabral contrapondo aos golpistas de Bissau um nacionalismo revolucionário caboverdiano que impede que as consequências do golpe de Estado militar se tornem extensivas ao território e ao povo caboverdianos e às suas diásporas e se tornam, assim, os mentores e autores intelectuais da transformação do ramo nacional caboverdiano do antigo PAIGC bi-nacional destroçado pelo golpe de Estado de Nino Vieira num partido estritamente caboverdiano, o PAICV. É esse novo partido, retintamente caboverdiano, que se declara imediatamente depois da sua constituição como sucessor para o povo das ilhas e das diásporas caboverdianas do legado teórico e da doutrina política revolucionária de Amílcar Cabral bem como do antigo PAIGC bi-nacional considerado como doravante morto e enterrado.
Relembre-se ainda que todos os esforços posteriores dos dirigentes casboverdianos no sentido de expurgar o ramo guineense do antigo PAIGC do C de Cabo Verde (um país africano soberano independente) resultaram totalmente infrutíferos. Com efeito, os líderes e membros do Conselho da Revolução saído do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, também mentores do sobrevivente ramo guineense do PAIGC, posicionaram-se contra a fundação do PAICV, tendo até o Congresso do seu ramo nacional, reunido depois do golpe de força militar de Nino Vieira e da fundação do PAICV, procedido à expulsão sumária das fileiras do PAIGC dos bissau-guineenses considerados directamente implicados nos alegados “crimes do regime de Luís Cabral”, mas também de Aristides Pereira, Pedro Pires, Abílio Duarte e outros altos dirigentes caboverdianos considerados responsáveis pela transmutação do ramo caboverdiano do PAIGC em PAICV (neste caso tendo certamente o vingativo e rancoroso, mas inócuo acto de expulsão partidária natureza meramente simbólica e gesticulatória). De todo o modo, esse procedimento político-disciplinar de purga partidária parece traduzir uma reacção irracional dos dirigentes golpistas bissau-guineenses ao fracasso da sua insana e abstrusa pretensão de transferir para Cabo Verde e para o ramo caboverdiano do PAIGC os resultados consumados do golpe de Estado ninista, assumida e alegadamente dirigido contra uma suposta hegemonia caboverdiana no ramo bissau-guineense do partido único e no Estado soberano e independente da Guiné-Bissau bem como no PAIGC no seu todo supra e bi-nacional. Por isso, esses mesmos dirigentes e mentores bissau-guineenses do golpe de Estado de Nino Vieira, com especial destaque para Fidélis Cabral de Almada (curiosamente, o mesmo jurista e alto dirigente partidário que no II Congresso do PAIGC, de Julho de 1973, tinha proposto Nino Vieira para ser o sucessor de Amílcar Cabral como Secretário-Geral do PAIGC e, assim, como Presidente da Comissão Permanente, o mais importante órgão executivo do PAIGC na direcção da luta na Guiné e em Cabo Verde, bem como de Presidente do Conselho de Guerra, o mais importante órgão executivo na condução da luta armada na Guiné dita portuguesa e, depois, na Guiné-Bissau) insistiam na manutenção da sigla e da denominação bi-nacional do seu ramo nacional do antigo PAIGC supra e bi-nacional com argumentos alegadamente de teor histórico e socio-demográfico, nomeadamente i. que o partido foi fundado em Bissau, cidade-capital guineense em que teve a sua sede durante a fase inicial da sua existência e, depois, durante todo o período pós-colonial; ii. que a luta armada de libertação bi-nacional tinha sido conduzida no território da Guiné dita portuguesa e, depois, na República da Guiné-Bissau parcialmente ocupada pelas tropas portuguesas agressoras, disso resultando alegadamente a independência política dos dois países irmãos e, finalmente iii. que a maioria dos militantes do PAIGC eram bissau-guineenses.
O argumentário partidário bissau-guineense pareceu todavia ignorar alguns factos de grande relevância histórica, política e jurídica, quais sejam i. que o PAI (denominação original do futuro PAIGC) tinha sido fundado por caboverdianos radicados na Guiné dita portuguesa, ainda que dois dos fundadores, designadamente os irmãos Amílcar e Luís Cabral, tivessem nascido na mesma Guiné dita portuguesa, sendo que o nome de Elisée Turpin teria sido posteriormente agregado ao nomes dos verdadeiros fundadores do partido para obtenção de efeitos política e sociologicamente relevantes para a mobilização do povo da Guiné dita portuguesa para a luta da independência ao se emprestar uma conotação irrecusavelmente bi-nacional caboverdiano-guineense ao restrito leque dos fundadores do partido que, desde o início, também se fez conhecer como União dos Povos da Guiné e de Cabo Verde; ii. que a parte final GC (Guiné Cabo Verde) da sigla e da denominação partidária bipátrida somente faria sentido para um partido efectivamente bi-nacional no sentido da sua agregação de dois povos distintos em luta pela independêncoia e, depois, pelo desenvolvimento sustentado “rumo a uma nova sociedade expurgada da exploração do homem pelo homem”, tendo a sua jurisdição sobre dois territórios igualmente distintos, ainda que irmanados pelo mesmo projecto de sociedade consubstanciado numa mesma organização política bi-nacional. Nesta óptica, o PAIGC ter-se-ia definitivamente claudicado e tornado defunto enquanto partido bi-nacional ao ter sucumbido ao golpe de Estado militar de Nino Vieira, de 14 de Novembro de 1980, o qual levara inevitavelmente à declaração de independência do ramo caboverdiano do PAIGC e à sua transformação em partido nacional estritamente caboverdiano. Ademais, argumentava o ramo caboverdiano do antigo e desvanecido PAIGC que essa conclusiva e definitiva resolução política tinha sido tomada pelos órgãos do partido estatutariamente competentes, designadamente a Conferência Nacional de Cabo Verde do PAIGC, o qual consabidamente se erigiu em Congresso Constitutivo do PAICV. Outrossim, argumentavam os mentores e teóricos partidários caboverdianos que era sumamente inadmissível, à luz das normas do Direito aplicável às relações entre países e estados independentes e soberanos e aos respectivos partidos (únicos ou não), manter o nome de um país e de um Estado independente e soberano na sigla e na denominação de um partido (único ou não) de um país e de um Estado estrangeiros, como efectivamente e doravante era a Guiné-Bissau em relação a Cabo Verde. Com a normalização das relações entre os dois Estados lograda na Cimeira de Maputo dos Cinco, a questão da manutenção da denominação PAIGC (considerada ainda mais grave quando feita por extenso) para o antigo ramo bissau-guineense do partido binacional e para o novo partido único bissau-guineense foi remetido para o limbo dos não mais ditos.
- 3. São esses factores e eventos históricos que por sua vez explicam que na altura da mudança dos símbolos nacionais da República de Cabo Verde, a ambiência política em Cabo Verde, primordialmente induzida pelos sectores mais ressabiados e atormentados com o modo como se logrou a conquista pelo povo caboverdiano da sua independência política e da sua soberania nacional e internacional, fosse de um profundo e histérico revanchismo histórico. Esse mesmo revanchismo histórico ficou ilustrado, por exemplo, na desqualificação como ignaros combatentes do mato dos dirigentes e responsáveis do PAIGC, regressados das duas Guinés. Revanchismo histórico todavia tanto mais estranho quando se tem em conta que foram esses mesmos “ignaros combatentes do mato” que promoveram a Abertura Política para o multipartidarismo político e proporcionaram, conjuntamente com o emergente MpD (Movimento para a Democracia), uma transição política exemplar para a democracia plena, a qual conduziu o mesmo MpD a conquistar nas urnas e por vontade popular soberana, ademais num relativamente curto espaço de tempo, a legitimidade democrática para conduzir os destinos do povo caboverdiano e governar o país, concebendo e executando as suas políticas internas e externa constantes do Programa do Governo oportunamente submetido ao escrutínio dos deputados reunidos em plenários parlamentares da Assembleia Nacional soberana devidamente convocados para o efeito.
Como é sabido, na sequência das primeiras eleições legislativas bipartidárias caboverdianas, de 13 de Janeiro de 1991, o recém-nascido e emergente MpD obteve uma maioria qualificada de votos e de mandatos e o PAICV foi remetido para o acossado e insignificante papel de oposição parlamentar, fragilidade política que se agravaria com a esmagadora vitória do candidato apoiado pelo MpD nas eleições presidenciais, de Fevereiro de 1991 (o jurista e antigo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde, António Manuel Mascarenhas Monteiro) sobre o candidato apoiado pelo PAICV (o histórico Aristides Maria Pereira, antigo Secretário-Geral desse partido e sucessor de Amílcar Cabral no cargo de Secretário-Geral do antigo PAIGC bi-nacional) e a vitória igualmente por esmagadora maioria nas eleições autárquicas de Dezembro desse mesmo ano de 1991. É esse cenário político, avassalador para o MpD e desolador e quase devastador para o PAICV, que determinaria que o antigo partido único e fautor da Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990 e da mudança do regime político vigente de monopartidário para multipartidário não tivesse podido impedir a revisão total e integral da Constituição de Setembro de 1980/Fevereiro de 1981 (atente-se que na redacção que lhe foi dada pela revisão constitucional de 1988, de liberalização do sistema económico, e na revisão constitucional de Setembro de 1990, de radical mudança do regime político de monolítico dito nacional-democrático-revolucionário para e pluripartidário e plenamente democrático) e correlativamente dos símbolos nacionais pan-africanistas vindos da luta de libertação nacional e da proclamação da independência e da soberania políticas de Cabo Verde, com grande destaque para a Bandeira Nacional ouro-verde-rubra da estrela negra (tal como, aliás, a Bandeira do PAIGC, a Bandeira Nacional da Guiné-Bissau e a Bandeira do PAICV, mas devidamente munida da concha marítima e da espiga do milho que a singularizavam na sua ostensiva caboverdianidade e a distinguiam de todas as demais três bandeiras anteriormente referidas) bem como para o Hino Nacional “Sol, Suor e o Verde Mar”, que continuava a ser aquele escrito por Amílcar Cabral e que foi Hino do PAIGC bi-nacional e continuava a ser Hino Nacional da Guiné-Bissau e do PAIGC bissau-guineense e continuou, ate à sua substituição pelo novo Hino Nacional caboverdiano “Canta Irmão Canta”, a ser o Hino Nacional da República de Cabo Verde mesmo depois do fim do PAIGC como partido bi-nacional e da correlativa falência pós-colonial do princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e da ruptura total do sempre protelado e adiado projecto de união orgânica entre as Repúblicas da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.
As posturas político-ideológicas e culturalistas contrárias ao pan-africanismo político defendido pelo PAIGC bi-nacional e pelo seu sucessor nas ilhas e diásporas caboverdianas, o PAICV, induzem-nos a concluir que o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde e o projecto pós-colonial de união orgânica entre a Guiné-Bissau e as ilhas de Cabo Verde muito dificilmente teria hipótese de sobreviver à onda de mudanças democrático-liberais ocorridas em Cabo Verde, em 1991, que, depois, contaminou a Guiné-Bissau, mas tão-somente virtualmente e na aparência. Na verdade, estamos em crer que, se porventura tivesse sobrevivido como partido bi-nacional ao golpe de Estado de Nino Vieira de Novembro de 1980, o PAIGC, nesse caso certamente com um rosto bifacial de pendor mais nitidamente bissau-guineense e de feições mais ostensivamente negro-africanas, certamente seria vituperado, causticado e varrido quiçá irremissivelmente do solo das ilhas em razão dos espantalhos chauvinistas anti-africanistas e soberanistas de teor luso-crioulista que necessariamente seriam desfraldados pelos antiquíssimos inimigos e pelos novíssimos adversários islenhos de Amílcar Cabral e do seu sonho de unidade entre a Guiné e Cabo Verde, de indesmentível e genial teor político-estratégico para a obtenção das independências da Guiné e de Cabo Verde, de difícil implementação e de duvidoso sucesso no período pós-colonial da História comum desses dois países irmãos. Cenário idêntico seria passível de se antever na Guiné-Bissau que, como se viu, primeiramente, nos macabros e trágicos acontecimentos que rodearam o assassinato de Amílcar Cabral e, depois, na sequência do golpe de Estado de Nino Vieira, de 14 de Novembro 1980, foram e continuaram a ser muito permeáveis ao atiçamento dos ressentimentos históricos de parte das suas populações e das suas elites em relação aos caboverdianos bem como à exacerbação das posturas políticas alegadamente contrárias a uma suposta hegemonia caboverdiana em relação ao território e às populações primeiramente da Guiné dita portuguesa e, depois, do Estado soberano e independente da Guiné-Bissau.
- 4. É nesse novo contexto político dos anos noventa do século XX, que são reatadas (ou, melhor, são encetadas, pois que a nível de partidos políticos plenamente autónomos e independentes e não mais como ramos nacionais de um mesmo partido bi-nacional) as relações entre o PAICV e o PAIGC bissau-guineense, ambos emergentes no âmbito dos respectivos territórios nacionais e das respectivas diásporas do antigo partido-movimento de libertação bi-nacional denominado PAIGC. Essas relações partidárias passaram, aliás, a ser doravante consideradas como sendo assaz calorosas e de elevada solidariedade e inquebrantável fraternidade, como seria, aliás, aconselhável e expectável nas relações de cooperação e amizade entre partidos-irmãos que, ademais, partilham o património de uma mesma luta de libertação bi-nacional e a memória de “um mesmo líder imortal”. Líder esse doravante considerado Fundador de Duas Nacionalidades, Herói do Povo e o Maior Morto Imortal da Guiné e de Cabo Verde, nas expressivas palavras do também pan-africanista poeta Timóteo Tio Tiofe (como é sabido, um dos três heterónimos literários, a par de João Vário e G. T. Didial, do notável neuro-cientista João Manuel Varela). Agnomes certamente justíssimos pois que, detentor de uma mente reconhecidamente brilhante, Amílcar Cabral elaborou uma obra teórica de matriz marxista das mais conseguidas entre os líderes africanos seus contemporâneos e que fundada no seu indelével humanismo se alicerçou no conhecimento e na reflexão sobre as realidades concretas dos povos e dos países africanos e na assimilação crítica dos conhecimentos produzidos por outros seres humanos em outras latitudes do mundo, sempre visando uma sociedade de liberdade, paz, progresso social e felicidade para os povos das suas duas e igualmente amadas mátrias - a Guiné-Bissau e as ilhas de Cabo Verde - que muito e ardentemente almejou ver unificadas no seio de uma pátria comum africana, una, solidária e progressista representada ao mais alto nível político parlamentar por uma Assembleia Suprema do Povo da Guiné e de Cabo Verde, depois de conquistadas as respectivas independências políticas e soberanias nacionais e internacionais, em tempo oportuno proclamadas pelas Assembleias Nacionais Populares delas representativas, conforme consignado no seu Testamento Político. É esse mesmo Amílcar Cabral que também encarou a possibilidade de as mesmas Repúblicas irmãs da Guiné-Bissau e de Cabo Verde seguirem caminhos independentes e definitivamente soberanistas, caso fosse essa a vontade dos respectivos povos livremente expressa em consulta popular ou por deliberação política soberana dos parlamentos/das Assembleias Nacionais Populares deles representativos, conforme consignado no Memorando dirigido em 1960 ao Governo português com vista à liquidação pacífica e por via democrática do colonialismo português na Guiné e em Cabo Verde, no Programa Maior do PAIGC e na primeira Constituição Política de Cabo Verde (a de Setembro de 1980). Certo é que, tendo adoptado o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde como princípio motriz e eixo estratégico da sua ideologia política e enveredado pela unidade de acção no seio de Movimentos de Libertação Bi-Nacionais e para a união orgânica das forças nacionalistas da Guiné e das forças nacionalistas de Cabo Verde no quadro de uma Frente Unida de Libertação, Amílcar Cabral parece ter sido o único líder político da Guiné e de Cabo Verde que, fazendo uso de todas as mais-valias advenientes da sua biografia e do seu percurso de vida pessoais, assaz singulares, desde muito cedo soube identificar, no período colonial, as potencialidades politicamente emancipatórias no caminho da busca e da obtenção das independências políticas nacionais e, no período pós-colonial, as potencialidades indutoras do desenvolvimento e alavancadoras do florescimento da dignidade humana, do progresso social, do bem-estar e da prosperidade para todos os seus filhos e definitivamente extirpadoras do medo, da ignorância, do atraso, da pobreza e do sofrimento, e que poderiam resultar da conjugação das forças, das energias e das sinergias dos povos da Guiné e de Cabo Verde. Tanto mais que Amílcar Cabral se notabilizou exacta, precisa e justamente por ter conduzido vitoriosamente os povos da Guiné e de Cabo Verde à vitória final sobre o colonial-fascismo português, mesmo se, a um tempo um Moisés negro em demanda da(s) pátria(s) africana(s) e um Jesus Cristo afro-crioulo dando-se em sacrifício, não tendo logrado pisar de corpo inteiro e na total integridade da dignidade da sua presença física, a tão almejada Terra Prometida da Guiné de Cabo Verde totalmente libertada da subjugação colonial e da opressão estrangeira.
Afinal e de todo o modo, o patriotismo africano sempre se alimentou entre nós, ilhéus caboverdianos, do imprescindível pão do quotidiano patriotismo de “se sentir feliz por se ter nascido caboverdino”, como se expressa Manuel de Novas pela voz de Ildo Lobo, também imortalizados na morte iracunda e (in)frutífera.
Ou como exclama o falecido cantor e compositor musical Orlando Pantera, igualmente imortalizado na morte (in)fecunda: “Pátria dja nu ten dja!”.
Referências Bibliográficas
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-“Das Tragédias Históricas do Povo Caboverdiano e das suas Constituição e Consolidação como Nação Crioula Soberana” (versão abreviada da Primeira Parte-Período Colonial, então inédita, integrada no texto introdutório do livro O Ano Mágico de 2006 - Olhares Retrospectivos sobre a História, a Literatura e a Cultura Cabo-Verdianas, IBNL/Ministério da Cultura, Praia, 2007)
-“Das Tragédias Históricas do Povo Caboverdiano e das suas Constituição e Consolidação como Nação Crioula Soberana (Segunda Parte-Período Pós-Colonial)”, in www.tertulicrioula.com (publicado de novo in www.buala.com, numa versão ligeiramente alterada, com o título “Processos Políticos Pós-Coloniais e Dialécticas de Consolidação do Povo Caboverdiano como Nação Crioula Soberana”
- “Cabo Verde - Orfandade Identitária e Alegada (im)pertnência de uma Poesia de Negritude Crioula” in www.buala.org. (publicada em 28 de Março de 2013 em três partes: (1) Discursos da Crioulidade e Síndromas de Orfandade identitária (2) (Im)pertinência Histórica e Actual de uma Poesia Caboverdiana de Afro-Crioulitude e/ou de Negritude Crioula; (3) sem subtítulo (continuação do subtítulo (2) e reeditado, numa versão muito mais desenvolvida (mais de duzentas páginas) como Posfácio e parte ensaística acrescida à primeira parte poemática do livro intitulado Deflagrações (Spleen-Edições, Praia, 2021)
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-”Algumas Reflexões a propósito do livro de João Paulo Tavares de Oliveira intitulado
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Nota 1 do autor sobre Artur Augusto Silva: nascido em 1912 na ilha Brava, radicado com a família na então Guiné portuguesa até aos oito anos de idade.
Concluiu os estudos primários, secundários e universitários em Lisboa.
Foi co-fundador e professor do Liceu-Colégio de Bissau (depois Liceu Honório Barreto e actualmente Liceu Kwame Nkrumah), tendo sigo amigo e colega de Amílcar Cabral no Centro de Estudos da Guiné e autor do livro Usos e Costumes Jurídicos dos Fulas (estudo elaborado depois de ter efectuado visitas de estudo a vários países africanos de radicação dessa etnia africana). Foi um advogado empenhado na defesa de presos políticos na então Guiné portuguesa, vindo a ser Juiz do Supremo Tribunal da Guiné-Bissau a convite do Presidente Luís Cabral e Professor de Direito Consuetudinário na Faculdade de Direito de Bissau.
Curiosamente em Portugal foi também amigo de Fernando Pessoa que lhe dedicou o livro-poema Mensagem, Director do jornal modernista Momento (que pretendia ser a réplica lisboeta da revista coimbrã Presença), conferencista e promotor de saraus literários e conferências culturais na Casa de Imprensa, na Sociedade Nacional de Belas Artes e no Grémio Alentejano, fundador da revista de arte Cartaz, colaborador com um poema da revista caboverdiana Claridade, autor de artigos e reportagens, secretário em 1939 do Governador de Angola, depois de ter sido advogado em várias cidades portuguesas, preso em 1966, no aeroporto de Lisboa, pela polícia política portuguesa que o vigiava desde 1949 por suspeita de ser membro do PCP, e libertado por intervenção de Marcelo Caetano e de outras personalidades ligadas ao regime colonial-fascista, como Adriano Moreira).
Nota 2 do autor: Constitui o presente texto uma versão revista em Agosto de 2013 e aumentada em Janeiro de 2023 do ensaio intitulado “Breves Apontamentos Críticos - O Caso Amílcar Cabral”, publicado em três partes no jornal electrónico A Semana Online dos dias 13, 20 e 25 de Maio de 2007. Uma versão desenvolvida do presente ensaio foi publicada em dez partes no jornal electrónico caboverdiano Santiago Magazine.
Depois da publicação desse texto, o autor publicou no mesmo jornal o ensaio “O Caso Amílcar Cabral - Quarta Parte” e publicou vários ensaios sobre as problemáticas relativas à funcionalização político-ideológica da identidade crioula caboverdiana e aos síndromas de orfandade nos discursos identitários caboverdianos”,
Desde então, foram igualmente editadas e/ou chegaram ao conhecimento do autor várias obras que vieram confirmar, complementar ou contradizer as teses defendidas no presente ensaio, com destaque para os livros Em Busca da Nação - Notas para uma Reinterpretação do Cabo Verde Colonial, de Gabriel Fernandes, O Nativismo em Angola, no Brasil e em Cabo Verde, de José Marques Guimarães, O Mestiço e o Poder: Identidade, Dominação e Resistência na Guiné-Bissau, de Tcherrno Djaló, Amílcar Cabral (1924-1973) - Vida e Morte de um Revolucionário Africano, de Julião Soares Sousa, Um Demorado Olhar sobre Cabo Verde- O País, Sua Génese, Seu Percurso, Suas Certezas e Ambiguidades e Tempos de um Tempo que Passou, ambos de Jorge Querido, Tarrafal/Chão Bom- Memórias e Verdades (Dois Volumes), Aristides Pereira: Minha Vida, Nossa Luta, Onésimo Silveira- Um Mar de Histórias e Cabo Verde-Um Corpo que se Recusa a Morrer, todos de José Vicente Lopes, e Noite Escravocrata, Madrugada Camponesa, de António Leão Correia e Silva.