Reflexões sobre “A Utopia no Romance 'Biografia do Língua', de Mário Lúcio Sousa”, de João Paulo Tavares de Oliveira - parte II
Ler parte I.
III Breve análise do livro do mestre João Paulo Tavares de Oliveira sobre o romance A Biografia do Língua, de Mário Lúcio de Sousa
Enaltece-se neste preciso contexto a escolha de um romance da já rica e vasta obra ficcional de Mário Lúcio Sousa para ser objecto/matéria da investigação de João Paulo Tavares de Oliveira no âmbito do seu Mestrado em Estudos Portugueses, e, assim, proporcionar-nos um conhecimento mais detalhado e aprofundado da literatura caboverdiana.
E o desiderato parece ter sido plenamente conseguido. Senão vejamos:
1. No primeiro capítulo intitulado “A Literatura Cabo-Verdiana em Face das Outras Literaturas Africanas de Língua Portuguesa”, o autor intenta contextualizar, com sucesso, o surgimento da escrita de autoria caboverdiana e, em especial, da literatura de marca identitária caboverdiana no quadro mais vasto das escritas de autoria lusógrafa africana e das literaturas africanas de língua portuguesa.
Situando o surgimento de todas as poéticas africanas de língua portuguesa na segunda metade do século XIX (com uma única excepção angolana), o autor traz à colação algumas importantes especificidades caboverdianas, quais sejam:
a) A escrita ainda no século XVI de uma literatura de viagens por dois célebres autores naturais da cidade da Ribeira Grande da ilha de Santiago de Cabo Verde (a depois da sua irreversível decadência em face do passado esplendor denominada Cidade Velha, património cultural da humanidade designado pela UNESCO), designadamente André Álvares de Almada, autor da obra Tratado Breve sobre os Rios da Guiné do Cabo Verde (..), e André Dornelha, autor da obra Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné do Cabo Verde.
b) O surgimento no século XIX, e na senda da divulgação e da consolidação na Europa do romance como género literário nobre, para além de também considerado o mais complexo de todos os géneros literários, da narrativa ficcional de temática caboverdiana da autoria, designadamente do português radicado José Evaristo de Almeida e do seu romance O Escravo, e do bravense Guilherme da Cunha Dantas e das suas desenvolvidas narrativas ficcionais, como Memórias de um Pobre Rapaz, e de contos vários, marcante do início do florescimento desse género literário em Cabo Verde, com vários outros nomes, como, por exemplo, o António Arteaga Souto Maior da novela Os Amores de uma Creoula.
c) O importante papel da autoria feminina no surgimento da poética caboverdiana com os nomes de Gertrudes Ferreira Lima, chamada A Humilde Camponesa ou A Paulense, Maria Luísa de Senna Barcelos, chamada A Africana, e de outros nomes femininos, para além do controverso caso de Antónia Pusich que, apesar de ter nascido em Cabo Verde, passou toda a sua infância e o resto da sua vida no então chamado Reino/Metrópole/Portugal continental, tendo escrito uma única obra de temática caboverdiana porque referente à biografia e ao resgate do bom nome do pai, o antigo governador colonial António Pusich.
Deste modo, fica comprovado que a literatura caboverdiana tem uma baptismal marca feminina, além de, nessa fase inicial, também contar com autores masculinos de grande envergadura, como Guilherme da Cunha Dantas, João Augusto Martins, Luís Loff de Vasconcelos, Januário Leite, Eugénio Tavares e outros não negligenciáveis colaboradores do Boletim Oficial de Cabo Verde, do (Novo) Almanaque Luso-Brasileiro de Lembranças e do Almanaque Luso-Africano, como Joaquim Augusto Barreto, Luís Medina de Vasconcelos e o do bilingue Cónego Manuel da Costa Teixeira.
d) O relevante papel dos mitos da Atlântida, das Hespérides e das ilhas arsinárias cultivados pelos nativistas Pedro Cardoso (de seu nome completo Pedro Monteiro Monteiro Cardoso) e José Lopes (de seu nome completo José Lopes da Silva) na criação de uma mitologia alternativa à saga marítima e aos descobrimentos portugueses para a explicação das origens mais remotas das nossas ilhas, inspirando-se para a concretização desse desiderato não só em escritores greco-latinos, lidos e assimilados no Seminário-Liceu de São Nicolau, mas também no Luís de Camões de Os Lusíadas, consabidamente o mestre dos mestres dos dois poetas clássicos caboverdianos acima referidos.
Deste modo, pôde a poesia caboverdiana ancorar-se em mitos greco-latinos para a própria auto-explicação do caso islenho meso-atlântico e, assim, se diferenciar, desde essas suas supostas remotas origens, das demais literaturas africanas de língua portuguesa, que, no demais e tal como nos restantes poetas e, mesmo na restante poesia dos poetas arsinários e/ou hesperitanos desses tempos de outrora, eram muito marcados pelos modelos estéticos europeus, aliás, os únicos epocalmente relevantes e disponíveis e, por isso, os mais adequados para as suas mentalidades eruditas de letrados oitocentistas finisseculares.
Assinale-se, acrescentando, que nos casos dos dois grandes poetas caboverdianos supra-referenciados e sumamente enaltecidos por João Paulo Tavares de Oliveira, a sua poesia, marcada pela cissiparidade pátrida do amor ao torrão natal caboverdiano e à pátria monumental portuguesa (na feliz expressão de Gabriel Fernandes), se espraiou por outras vertentes, i. no caso de José Lopes por várias línguas europeias, quais sejam o francês (por exemplo, no livro Ombres Imortelles), pelo inglês e pelo latim; ii. No caso de Pedro Cardooso, tal como em Eugénio Tavares, pelos idiomas português e crioulo, a isso acrescendo uma vertente de exaltação da dignidade do homem negro e do valor civilizacional da África mediterrânica, faraónica, cartaginesa e esfíngica, plasmados, por exemplo, nos poemas “Ao Egipto” e “Ode a África”, para além da lavra de uma prosa sem precedentes na defesa intransigente e incondicional da língua caboverdiana.
e) E, finalmente, o precoce surgimento em Cabo Verde do modernismo literário, inspirado no realismo crítico nordestino brasileiro e no modernismo português e consubstanciado no movimento claridoso, de feição teluricista e, sob a consigna de fincar os pés no chão, totalmente voltado para a comunhão com a terra e o homem caboverdianos e, assim, para a abordagem crítica dos problemas e das problemáticas que atormentavam a terra e as gentes caboverdianas, quais sejam as secas cíclicas, as fomes, a emigração, a crise do Porto Grande de São Vicente, a incúria do poder colonial, etc, etc.
Peculiar ao movimento claridoso foi a invenção do chamado português literário caboverdiano por forma a vencer o aparentemente inultrapassável dilema sobre a utilização do português e/ou do crioulo para a criação e a consolidação de uma literatura autenticamente caboverdiana, expressão polémica muito em voga nesses conturbados tempos e naqueles que se lhes seguiram e ainda perduram.
2. No segundo capítulo, o autor debruça-se sobre a produção romanesca caboverdiana pós-colonial.
Começa por dissecar o conceito, agora tão em voga, de pós-colonialismo, empreendendo uma sumária revisitação da obra de vários teóricos dos estudos pós-coloniais por demais celebrizados, tais como Orientalism, de Edward Said, The Empire Writes Back: Theory and Practice in Post-Colonial Literatures, de Bill Aschcroft, In My Father`s House, de Kwame A. Apiah, The Location of Culture, de Homi Bhaba, bem como as obras de alguns estudiosos das literaturas africanas de língua portuguesa, como, por exemplo, Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais, de Ana Mafalda Leite, e ”A Literatura Africana e a Teoria Pós-Colonial”, de Russel Hamilton.
Para o caso da literatura romanesca caboverdiana pós-colonial, o autor, devidamente municiado com a bibliografia científica e literária disponível, faz-nos constatar o surgimento no período subsequente à independência nacional de Cabo Verde de novas abordagens estéticas por parte de alguns romancistas e ficcionistas, ilustrados, a título exemplificativo, no romance O Estado Impenitente da Fragilidade, de G. T. Didial (pseudo-heterónimo de João Manuel Varela), O Testamento do Senhor Napumuceno da Silva Araújo, de Germano Almeida, e A Louca de Serrano, de Dina Salústio.
Essa circunstância, de efeitos estético-formais e estético-ideológicos inovadores a todos os títulos da tradicional ficção caboverdiana de marca claridosa (e, acrescentamos nós, de certo modo contra a asserção de Baltasar Lopes da Silva segundo a qual toda a literatura de temática caboverdiana seria necessariamente claridosa, ou, por outras palavras, carregaria inevitavelmente consigo a marca cívica legada pela revista Claridade - ou, se quisermos, pela claridosidade, enquanto atitude e concepção estético-ideológicas -, mesmo se servida por outras metodologias estético-formais), enquadra-se, segundo o autor, num fenómeno mais geral, também por mim assinalado em vários ensaios da minha lavra, qual seja o nítido alargamento da área de jurisdição da narrativa ficcional caboverdiana, tanto do ponto de vista geográfico insular como também no que se refere às temáticas abordadas por essa mesma narrativa.
É o que se pode constatar e comprovar tanto nas obras dos três autores (G. T. Didial, Germano Almeida e Dina Salústio) trazidas à liça e sumariamente analisadas pelo autor do livro ora em apresentação pública, mas também, permita-se-me assinalar, nos romances e contos dos ficcionistas neo-claridosos e nova-largadistas Virgílio Pires, Pedro Duarte, Francisco Lopes da Silva, Luís Romano, Teobaldo Virgínio, Onésimo Silveira, Henrique Teixeira de Sousa, entre muitos outros autores de narrativas ficcionais, grande parte deles proeminentes integrantes das gerações literárias pós-coloniais e dos quais ocorre-me citar os nomes de Orlanda Amarílis, Viriato Gonçalves, Viriato de Barros, Germano Almeida, Tomé Varela da Silva, Manuel Veiga, Ivone Ramos, Danny Spínola, Fernando Monteiro, Dina Salústio, Leopoldina Barreto, Ondina Ferreira, Carlos Araújo, Fátima Bettencourt, Gualberto do Rosário, Eutrópio Lima da Cruz, Joaquim Arena, Eugénio Inocêncio, Carlota de Barros, Vera Duarte, Eurídice Monteiro, Mana Guta (nominho e pseudónimo literário de Augusta Évora Tavares Teixeira) e o próprio Mário Lúcio Sousa.
3. É no terceiro e no quarto capítulos que o autor do livro ora em apresentação pública se debruça mais detalhada e demoradamente sobre a matéria ostentada no título do livro e que reza A Utopia no Romance Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa.
3.1. Assim, no capítulo terceiro o autor debruça-se sobre o tema utopia, procedendo à inventariação de alguns autores que, desde a sua introdução, em 1516, na literatura renascentista por Thomas More, fizeram a sua fundamentação teórica, como Paul Ricoeur, Chris Ferns, Fátima Vieira, Peter Fitting, Darko Suvin, incidindo o olhar do estudioso João Paulo Tavares de Oliveira mais demoradamente sobre a literatura utópica e o seu enquadramento na literatura caboverdiana.
É no enquadramento do mito como proposta utópica que são analisados algumas obras de Pedro Cardoso, designadamente Jardim das Hespérides, de 1926, e Hespéridas - Fragmentos de um Poema Perdido em Triste e Miserando Naufrágio, e de José Lopes, designadamente os livros Jardim das Hespérides, de 1928, e Hesperitanas, de 1933.
(Abra-se nesta circunstância um pequeno parêntese para se referir que mais recentemente G. T. Didial dedicou ao mito das Hespérides uma das narrativas do primeiro volume dos seus Contos da Macaronésia, designadamente o inicial e intitulado “Inscrições”).
Ademais, são analisadas duas obras de autores pós-coloniais caboverdianos, nomeadamente o romance A Louca de Serrano, de Dina Salústio, e três contos de Mana Guta intitulados Outras Pasárgadas de Mim, na óptica de serem consideradas obras distópicas, isto é, anti-utópicas no sentido literal da expressão, na medida em que criticam de forma virulenta o patriarcalismo e o sexismo vigentes na sociedade caboverdiana e pugnam com muita veemência pela emancipação feminina num ponto de vista assumidamente feminista (residindo talvez nessa particularidade da escrita das duas autoras a pertinência para a sua inclusão na análise do autor do livro ora em apresentação).
3.2. Chegado ao capítulo quarto, o autor inicia finalmente e em concreto a análise do romance A Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa, no sentido e com o assumido fito de nele detectar indícios de utopia tal como, aliás, inequivocamente desenhado e propugnado no título do livro ora em apresentação pública.
E neste ponto, permita-se-me a seguinte observação seguida de uma reflexão:
O autor de uma Tese de Mestrado e candidato ao correspondente título de Mestre depara-se certamente ao longo do seu extenuante labor intelectual com vários constrangimentos, o mais sério dos quais poderá ser a obrigação de se cingir estritamente à matéria delimitada como objeto de estudo e pesquisa.
Tal constrangimento vem-se tornando cada vez mais intransponível, pois que depois de Bolonha foram drasticamente reduzidas as páginas a que deve ater-se uma qualquer tese de mestrado.
Estamos em crer que terá sido essa a razão primacial que explica o motivo porque o autor não foi mais generoso na selecção e indicação da poesia caboverdiana passada e contemporânea de algum modo portadora de um teor nitidamente utópico.
Com efeito, para além da poesia hesperitana de José Lopes e Pedro Cardoso, detectam-se na poesia caboverdiana várias tentativas de demanda de lugares utópicos contrastivos com o arquipélago da escravatura, das secas e das fomes que foi sendo sucessivamente o Cabo Verde colonial.
Um primeiro indício verifica-se, conforme assinalado pela saudosa Professora Elsa Rodrigues dos Santos, numa das falas mais importantes do escravo João do romance O Escravo, de José Evaristo de Almeida, ao se referir a um lugar futuro de igualdade entre todos os seres humanos independentemente da sua raça.
Um segundo indício é certamente o pasargadismo cultivado pelo poeta Osvaldo Alcântara (como já referido, pseudónimo para a escrita de poesia de Baltasar Lopes da Silva) no seu ciclo poemático “Itinerário de Pasárgada”, inspirado no poema “Pasárgada”, de Manuel Bandeira, e onde se vislumbra e se almeja chegar a um lugar utópico denominado “A ilha de todos os poemas”.
Um terceiro indício é seguramente o “Poema de Quem Ficou”, de Manuel Lopes, expressivo do evasionismo psicológico que partilha com Jorge Barbosa, mas somente em certa medida, pois que em Manuel Lopes esse evasionismo assume bastas vezes um teor nitidamente anti-terralongista.
Um outro indício é o poema “Onde”, de Jorge Barbosa, no qual o poeta sonha, à maneira dos socialistas utópicos, dos anarquistas, dos socialistas de esquerda, dos democratas revolucionários e, maxime, dos comunistas, com um lugar, onde reinem a justiça social e a dignidade humana e em que as necessidades correntes de todos os cidadãos (com especial relevância para o pão, o lar, a educação, a saúde, a paz, a dignidade, a liberdade) estariam satisfeitas, numa verdadeira transfiguração do lugar presente de desmedidos sofrimento e injustiça no lugar outro sonhado por António Nunes no seu emblemático “Poema de Amanhâ” e n`uma outra terra dentro da nossa terra, tal como propugnada por Aguinaldo Fonseca no seu poema “Sonho” e politicamente assumida para ser cumprida pela praxis concreta dos caboverdianos progressistas mediante a emancipação política e a radical transformação social do nosso arquipélago por Amílcar Cabral, esse verdadeiro fazedor de utopias como faz constar António Tomás do título do livro que dedicou à biografia desse Morto Imortal dado à luz pelo povo das ilhas e diásporas caboverdianas e pelo povo do estado-nação imaginado e forjado na luta político-militar de libertação bi-nacional.
E, nesse contexto, é também mister lembrar-nos do poema “Ilha a Ilha”, de Ovídio Martins, publicado na revista Raízes e certamente complementar da sua visão anti-pasargadista (no sentido de anti-escapista e anti-evasionista) do mundo.
1. No capítulo quarto, o autor intenta caracterizar a actividade literária do autor Mário Lúcio Sousa, dividindo-o em vários ciclos, quais sejam: i. O ciclo poético, com várias obras publicadas, designadamente O Nascimento de um Mundo (1990), Sob os Signos da Luz (1992) e Para Nunca Mais Falarmos de Amor (1999). ii. O ciclo dramatúrgico também com várias obras publicadas, nomeadamente Saloon, Adão e as Sete Pretas de Fuligem, Sozinho no Palco, Vinte e Quatro Horas na Vida de um Morto, Um Homem, Uma Mulher e Um Frigorífico, Adão e Eva, Teatro (Colectânea). iii. O atual ciclo de novelista e romancista que, tendo-se iniciado no ano 2000, parece concentrar o essencial da actual actividade literária do autor e perfaz-se nas seguintes obras: Os Trinta Dias do Homem mais Pobre do Mundo (2000), Vidas Paralelas (2003), O Novíssimo Testamento (2010), Biografia do Língua (2015), a que vieram juntar-se nos tempos mais recentes O Diabo Foi Meu Padeiro (2019) e A Última Lua de Homem Grande (2022).
Anote-se que todos os acima referidos ciclos literários se conjugam permanentemente com a faceta de músico/compositor de grande relevo que, para além de artista plástico e gráfico, também é Mário Lúcio Sousa, quer como líder do grupo Simentera e de outras bandas musicais, quer como músico/compositor e intérprete a solo.
Nessa sequência, tenta o autor detectar o lugar utópico engendrado no romance Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa.
E estamos em crer que logra concretizar em grande medida o seu desiderato.
Com efeito, o autor analisa e consegue (com)provar que o romance Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa se estrutura em duas narrativas paralelas e largamente intercaladas, quais sejam:
a) Uma primeira narrativa, chamada primária ou englobante, de teor analéptico, inspirada na obra Escravo em Cuba (Biografia de um Chimarón), do autor cubano Miguel Barnier e que consiste na simples fixação não literária, testemunhal e na primeira pessoa da história de vida do biografado Esteban Montejo, um antigo escravizado negro cubano, e que na démarche literária de Mário Lúcio Sousa mescla eventos ocorridos nas sociedades colonial-escravocratas e nas sociedades delas diversamente emergentes em Cabo Verde e em Cuba, e que poderiam ter acontecido em qualquer outra sociedade crioula do Atlântico, das Caraíbas ou do Índico, como, aliás, explica o narrador de Biografia do Língua, dizendo que essa primeira narrativa poderia ter ocorrido em qualquer arquipélago-mundo crioulo, como Falésia, Aruba, Curaçao, Cabo Verde, São Tomé ( acrescentamos nós: e Príncipe), Bonaire, Guiana, Reunião, Santo Domingo, Louisiana, São Bartolomeu, São Martin…
A propósito da extensa influência exercida pelo livro do antropólogo, escritor e biógrafo cubano sobre o romancista caboverdiano, escreve o estudioso João Paulo Tavares de Oliveira:
“Confrontando as duas obras, constatamos que de facto houve uma forte influência da obra de M. Barnet no romance sousiano. Em ambos os livros a história do escravo Esteban Montejo é narrada linearmente segundo o seguinte roteiro: o seu nascimento num engenho, a sua infância e adolescência a trabalhar nas plantações e a viver nos barracões com os outros escravos, a sua fuga aos dezassete anos e a sua vida solitária no monte durante aproximadamente uma década, o seu regresso à cidade após a abolição da escravatura, a sua vida como cidadão livre, os fortuitos casos amorosos que teve até encontrar o seu verdadeiro amor e finalmente o seu desaparecimento físico”. (p.103)
Acrescenta ainda imediatamente a seguir o mestre João Paulo Tavares de Oliveira a propósito dessa sensível questão:
“As semelhanças entre as duas narrativas não ficam por aqui nesta simples imitação do processo narrativo. M. L. Sousa também se apropriou de vários elementos e dados da obra de M. Barnier. Desses destacamos os seguintes: (1) elementos antroponímicos, tais como Esteban Montejo (nome do protagonista), Gin Gongo e Suzana (nomes dos seus padrinhos); (2) elementos toponímicos e referências espaciais: enfermaria de Santa Teresa, engenho de Santa Teresa, plantações, barracões; (3) referências étnicas de alguns grupos de escravos: gongos, lucumis; (4) referências temporais: 26 de Dezembro (dia do nascimento do protagonista); (5) sequências descritivas de lugares (…)” (vide a propósito comparação das duas narrativas na p.105 do livro em apresentação com remissão para a p. 16 da obra cubana e para a p.116 da obra caboverdiana); “(6) elementos relativos aos hábitos e costumes dos escravos.” (vide a propósito comparação das duas narrativas na p.106 do livro de João Paulo Tavares de Oliveira).
É, aliás, o próprio romancista Mário Lúcio Sousa que, numa atitude de muito louváveis sinceridade e honestidade intelectuais, desvela as circunstâncias da sua influenciação pelo autor cubano na sua nota introdutória ao romance Biografia do Língua, denominada “Pré-História”, ao escrever que foi em 2010 que lhe surgiu a ideia de “escrever sobre a vida de uma das profissões mais ingratas que homem algum pôde exercer, a de Língua. Este era um negro que ia como intérprete nos navios dos brancos para a compra de escravos”.
Acontece que, iniciada a escrita da história do Língua, chega-lhe às mãos, em formato de ficheiro informático oferecido por um amigo francês, o livro acima referido da autoria do antropólogo e escritor cubano Miguel Barnier, circunstancialismo que o coloca imediatamente em estado de maravilhamento e muda radicalmente todo o seu projecto de escrita. É, aliás, o próprio Mário Lúcio Sousa que diz sobre o seu romance Biografia do Língua na acima citada “Pré-História”:
“Parte deste livro é verídica (…). Inspirou-me a vida de um homem de rara estirpe, talvez o único neste mundo que viveu o colonialismo, a escravatura, a Abolição, a guerra da independência, a independência, a ocupação, o capitalismo, o imperialismo e o comunismo, sucessivamente e no mesmo lugar. Quando Barnet o entrevistou em 1963, esse homem tinha 103 anos e dizia chamar-se Esteban Montejo. Eu escolhi a ficção para recontar a vida desse homem porque os factos da vida de um escravo ultrapassam qualquer realidade e qualquer imaginação actuais. É algo assim comparável à vida de um perpétuo condenado à morte”.
Por ser uma narrativa ficcional, o romance de Mário Lúcio Sousa comporta na parte referente ao antigo escravo cubano Esteban Montejo uma série de especificidades que superam o mero testemunho pessoal sobre a sua história individual de vida e as suas memórias a propósito de uma sequência de épocas da história de Cuba para abalançar-se à construção do protagonista como um menino-prodígio que, com apenas sete meses de idade, aprende a falar como se fosse um gramático e, por isso, é contactado, ainda criança, pelo Rei de Portugal, também um infante, o qual fora previamente informado desse autêntico milagre pelo Governador de Cabo Verde. Nessa sequência, o Rei de Portugal emite as devidas instruções no sentido de se escrever a biografia oficial desse menino-prodígio de sete meses de idade, instruções que são cumpridas e levadas a bom termo pelo Governador da colónia que nomeia um soldado como biógrafo oficial do menino-prodígio doravante chamado Língua.
E de facto é de uma imensa, inusitada e extraordinária criatividade o modo como o romancista Mário Lúcio Sousa enverga a pele de narrador e biógrafo oficial de alguém ainda sem nenhuma biografia relevante, pois que tendo somente sete meses de idade. Mesmo assim, as páginas enchem-se de descrições e narrações dos primeiros vagidos de um bebé repletos de pormenores que atestam os seus primeiros contactos com o mundo circundante e com as criaturas humanas, os seres vivos e os entes inanimados que o habitam, o povoam e o preenchem.
Tudo se complica quando este recusa a sua nomeação para servir como língua (intérprete) no comércio de escravos negros resgatados na costa africana vizinha, pois que esta recusa e desobediência do Língua faz-lhe merecer (ou, melhor, faz recair sobre ele) a pena de condenação a trabalho, obviamente escravo, nas plantações.
Todo o resto desta história primária desenvolvida no romance Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa, que, como se já viu, é largamente baseada na vida verdadeira de Esteban Montejo, isto é, na biografia desse invulgar e insólito ser humano (uma verdadeira personalidade histórica) contada pelo próprio ao antropólogo e escritor Miguel Barnet, é envolvido por uma atmosfera na qual o realismo mágico (também chamado realismo maravilhoso e tão característico da escrita de Mário Lúcio Sousa, diga-se que largamente inspirado em autores latino-americanos que o autor caboverdiano parece conhecer sobremaneira) dá as cartas por força desse atributo prodigioso (a precocidade na aquisição de atributos cognitivos e de outras aptidões e habilidades) que, desde a mais tenra idade, caracteriza a personagem principal da narrativa primária integrante do romance do autor caboverdiano.
b) Uma segunda narrativa que, enriquecida e intercalada de vários episódios trabalhados pelo autor segundo a técnica de mise en abîme, decorre no sítio denominado Falésia e que tem como génese o inusitado pedido do biógrafo oficial do Língua de, antes de, como previsto, ser fuzilado, poder narrar a história do seu biografado.
b.1) É à volta da narração da história de vida do Língua (protagonista, como já referido, da história principal ou englobante narrada pelo seu biógrafo oficial nomeado pelo Rei de Portugal e colocado defronte do pelotão de fuzilamento para o cumprimento da pena de morte a que foi condenado) no lugar chamado Falésia que se vai formando e estruturando uma nova sociedade até se constituir numa comunidade fraternitária de iguais dentro de uma ilha que está dentro de uma colónia que, por sua vez, é parte de um reino que é Portugal e de um império que é o império colonial português.
Nesse contexto, a narração da história do Língua surge como sendo a palavra oral fundadora dessa comunidade utópica habitante do lugar chamado Falésia, numa clara equivalência com a palavra de Deus que, para os crentes, é o verbo bíblico fundador do nosso mundo e de todos os outros mundos
conhecidos e desconhecidos.
b.2) É essa comunidade que, aos poucos, vai adquirindo atributos de um verdadeiro, ainda que minúsculo, estado-nação, a começar pela sua denominação escrita com maiúscula e sem artigo (Falésia, como Portugal, Itália, Alemanha, etc.), devidamente dotado de um substracto pessoal constituído de cidadãos falesianos e de cidadãs falesianas, passando pela organização social, marcadamente de seres humanos dignos e livres, e pelo mero simbolismo do exercício do poder político representado por antigos agentes e representantes da potestade colonial (como o Ministro do Ultramar, o governador da colónia, etc., etc.). O curioso é que essa primeira denominação fundadora de Falésia como pátria, nação, quase-república e lugar utópico identitário porque escrita com maiúscula é-lhe atribuída originalmente e pela primeira vez pelo próprio Ministro do Ultramar vindo em missão de soberania colonial e, depois, (auto)transfigurado por força da magia adveniente da audição da história do Língua em ilustre cidadão falesiano.
Sintomático a este propósito é a confraternização com associações comunitárias cujas autoridades e entidades mais representantivas e emblemáticas são titulares de atribuições e de poderes também em larga medida meramente simbólicos, como os reis, as rainhas, os governadores, os doutores, os carabessos, os ladrões, as pombas, etc., das tabancas.
b.3.) Neste contexto de emergência de uma sociedade nova e que torna Falésia o locus de consubstanciação de uma verdadeira utopia, as mulheres parecem ocupar um lugar especial.
Diz o autor da obra ora em apresentação, João Paulo Tavares de Oliveira, que “dentro das ideologias utópicas modernas, existe uma corrente desde os anos 70 do século XX, denominada utopia feminista, que reclama por mais liberdade e direitos para as mulheres. E no campo ficcional também várias utopias passaram a atribuir um papel mais preponderante às mulheres, principalmente nas utopias de autoria feminina”.
Todavia, defende o estudioso que não seria o caso do romance Biografia do Língua no que se refere ao papel estatuído para as mulheres. Com efeito, afirma João Paulo Tavares de Oliveira de modo peremptório, quiçá algo decepcionado:
“Afastando-se dessas correntes progressistas, está esta utopia de M. L. Sousa que reproduz o modelo social patriarcal”.
E para fundamentar esse seu ponto de vista (diga-se que assaz controverso), aduz o autor os seguintes argumentos:
i) “As figuras mais importantes nessa sociedade utópica são masculinas: o comandante (chefe militar), o governador (chefe político), o ministro (representante do rei) e até o próprio condenado (espécie de líder espiritual). ii) São as personagens masculinas dantes referidas as únicas “cujas individualidades se destacam do colectivo “povo falesiano””.
ii) “As personagens femininas, quando conseguem particularizar-se do genérico “as mulheres”, são meros nomes indicados no retrato global feminino, como, por exemplo, no caso da personagem Benícia” inserida num episódio anedótico de cariz mágico-maravilhoso.
iii) “Não obstante o facto de nesta utopia de M. L. Sousa a mulher não ser submissa ao homem, o papel que lhe é atribuído é “doméstico” que é o mesmo que dizer que “na sociedade falesiana as mulheres executam os trabalhos domésticos”. Sustenta o autor esse último ponto de vista citando o próprio autor da Biografia do Língua que escreve literalmente que na sociedade falesiana “as mulheres fincaram os seus afazeres“, sendo todavia a sua principal ocupação “cozinhar, lavar a loiça, lavar as fraldas, dar banho, desembaraçar o cabelo e pentear”, numa clara divisão natural (sexual) do trabalho.
iv) Finalmente, a natureza patriarcal da sociedade falesiana residiria, segundo o autor João Paulo Tavares de Oliveira, na prática da poligamia masculina, sendo expressas e explícitas as menções a essa prática, por exemplo, quando se faz referência no romance Biografia do Língua às inúmeras mulheres e à numerosa prole do ministro e representante do rei de Portugal.
Não obstante a sua relativamente extensa fundamentação, a argumentação do estudioso João Paulo Tavares de Oliveira quanto ao carácter patriarcal da comunidade falesiana (relembre-se que de propensão utópica) parece-me padecer de algumas incongruências, a mais importante das quais é certamente o facto de o próprio autor admitir sem margem para dúvidas que nessa mesma comunidade não haver uma qualquer submissão da mulher em relação ao homem, imperando aí pelo contrário uma sociedade igualitária para todos e em todas as classes de idade. Anote-se ademais que mesmo sendo os cargos principais exercidos por homens esse exercício é, segundo o próprio autor do livro ora em análise, largamente simbólico, artificioso e fantasista, devendo ser entendido como mera herança ou contaminação da sociedade colonial envolvente e da qual provinham os primeiros moradores do lugar utópico em construção chamado Falésia, o qual mesmo ostentando muitos atributos de um estado-nação nunca quis ou soube separar-se formalmente da sociedade colonial envolvente e proclamar expressamente a sua emancipação, a sua soberania e a sua independência políticas em relação à ilha, à colónia, ao reino/país e ao império coloniais circundantes e dos quais era jurídica e politicamente parte integrante.
Não obstante considerar a sociedade falesiana como uma sociedade patriarcal, não deixa todavia o autor João Paulo Tavares de Oliveira de considerar fundamental o papel das mulheres no quadro e no âmbito dessa sociedade, designadamente na preservação dos saberes tradicionais, como exemplificado no caso da personagem Felícia, cujo papel é equiparável somente ao papel desempenhado pelo próprio contador da história do Língua, que, afinal, funciona como o verdadeiro e autêntico (e não somente como um artificioso, fantasioso e simbólico) líder da comunidade utópica falesiana.
b.4) Completamente nova nessa sociedade falesiana é a invenção de uma nova língua chamada língua caluda, porque concebida e processada para responder aos múltiplos afazeres do quotidiano, sem todavia interromper a actividade principal dessa utópica sociedade nascente como um verdadeiro mundo novo que é escutar as ininterruptas histórias contadas pelo biógrafo oficial do Língua e condenado à morte por fuzilamento, afinal o único que parece ter direito à utilização da palavra falada e audível, pois que os demais cidadãos e as demais cidadãs parece que só têm direito à linguagem gestual, da qual parecem estar excluídos somente os deficientes visuais. A adopção e a generalização do uso da língua caluda pelas cidadãs falesianas e pelos cidadãos falesianos fazem reinar na sociedade falesiana um profundo e envolvente silêncio aliado a uma aparente atmosfera de paz, concórdia, serenidade e tranquilidade. Silêncio que também perpassa a própria linguagem dos animais domésticos de Falésia que, por imitação dos seres humanos, também passam a comunicar por meros gestos não emitindo, como seria normal, quaisquer sons que pudessem quebrar o silêncio reinante na povoação de Falésia e perturbar o desenrolar da ininterrupta narração da biografia do Língua.
Como todas as línguas vivas, a língua caluda está sujeita a um constante processo de evolução, processada igualmente mediante empréstimos linguísticos. Assim, novos vocábulos-gestos são adoptados em resultado dos contactos com os comerciantes ambulantes vindos do exterior da comunidade falesiana. Do mesmo modo, são criados novos vocábulos-gestos para nomear as novas profissões nascentes das necessidades e das vicissitudes relacionadas muito concretamente com a audição com maior ou menor grau de integridade da narração da História do Língua.
É exactamente para assegurar e garantir a contínua fluidez da história contada pelo biógrafo oficial do Língua e condenado à morte por fuzilamento (todavia sempre adiada em nome da continuidade e da fluidez da narração acima referidas) que o mesmo passa a assumir o papel de professor de todos os cidadãos/ moradores de Falésia e em todos os níveis de ensino, deduzindo-se assim que, além do monopólio da fala, o contador da história do Língua passa também a deter o monopólio do saber.
Será mero acaso essa inusitada coincidência com o que efectivamente se passou numa ilha (precisamente aquela onde Mário Lúcio Sousa frequentou e completou os seus estudos universitários) e em que uma única pessoa (não por acaso chamada e consagrada como O Líder Máximo) parecia deter não só o monopólio do exercício efectivo do poder político e dos modos de disseminação do saber, mas também o monopólio da narrativa e da fala forte, armipotente e altissonante sobre as vicissitudes da História toda, incluindo da mais recente história revolucionária da ilha?
De todo o modo, e segundo citado pelo autor da obra ora em apresentação, em Falésia “a história é um direito humano”, sendo “a arte de ouvir a nossa identidade primária”, pretendendo-se com isso significar que as pessoas nascem e crescem a escutar e a contar histórias, passando esse atributo social quase que a fazer parte do seu património, não só genético, como também cultural e identitário.
Nesta óptica e segundo o estudioso João Paulo Tavares de Oliveira, a narrativa primária da obra Biografia do Língua representa a reposição da palavra oral dos griots africanos (grosso modo, equivalente em Cabo Verde, como se sabe, à finason das profetisas do batuco e às histórias/estórias das narradoras dos contos tradicionais, por isso, chamadas contadeiras/contadoras de estórias) no quotidiano e nas vivências mais imediatas das pessoas, significando ademais uma espécie de baptismo espiritual de todos os habitantes/moradores desse lugar utópico em construção chamado Falésia.
b.5) Interessante é que na comunidade falesiana a formação, a instrução e o ensino formais são ministrados na língua materna (supõe-se que do biógrafo oficial e contador da história do Língua, hipoteticamente bilingue, e/ou do próprio Língua, por isso, inequivocamente o crioulo falado pelo povo da ilha circundante da povoação da Falésia) e na língua gestual correspondente, isto é, na denominada língua caluda, sendo os currículos totalmente adaptados às necessidades dos discentes que, sem estarem sujeitos a exames e a retenções na mesma classe por reprovação, podiam estudar até atingirem os mais altos graus académicos, como a licenciatura, o mestrado e o doutoramento, consoante as suas aptidões, as suas necessidades e as suas escolhas, numa sociedade utópica em edificação em que todos os adultos estavam já alfabetizados.
Neste contexto e chegados aqui, torna-se quase imperativo pensar-se nas comunidades de rebelados que se foram formando na ilha de Santiago a partir dos anos quarenta do século XX, tendo subsistido durante as últimas décadas da dominação colonial portuguesa e sem quaisquer contactos relevantes com (e/ou, até, erigidas contra) a sociedade envolvente de natureza feudal-capitalista (a não ser com os aparelhos institucionais repressivos do Estado e os aparelhos ideológicos, igualmente repressivos, da Igreja Católica), transitando essas mesmas comunidades depois para a ordem social caboverdiana independente e soberana do período pós-colonial. Teria o autor Mário Lúcio Sousa sido influenciado na sua concepção da emergente sociedade falesiana com o seu respectivo líder espiritual pela organização social dessas comunidades de rebelados localizadas sobretudo no seu concelho natal do Tarrafal bem como também pelos quilombos que se formaram em várias sociedades insulares e crioulas (incluindo em Cuba e em Cabo Verde, onde se celebrizou o quilombo dos Valentes de Julangue) contra a clausura escravocrata e a sua degradante e estigmatizante estruturação social?
b.6) Acrescente-se que, como em todas as sociedades utópicas, o tempo laboral em Falésia é reduzido ao mínimo necessário, sendo os bens materiais e os seres humanos (sobretudo as crianças) pertença de todos e administrados/cuidados por todos, ostentando os antigos agentes do poder colonial, agora integrados na sociedade falesiana como seus cidadãos de pleno direito, poderes meramente simbólicos, como já referido, tal como, ocorre, como os reis, as rainhas, os governadores e outras entidades emblemáticas e representativas das confrarias de ajuda mútua das ilhas de Santiago e do Maio chamadas tabancas. O curioso é essas mesmas entidades comunitárias não deixam de visitar a comunidade utópica falesiana, sua quase-congénere, sendo que a diferença essencial entre as associações comunitárias denominadas tabancas e a comunidade utópica falesiana reside no seguinte:
i. Sendo embora associações de carácter permanente de comunidades rurais e/ou suburbanas integradas por membros dedicados a outros múltiplos trabalhos e lavores para a sua subsistência e respectiva reprodução social, as tabancas concentram o essencial das suas actividades e dos seus rituais em calendários pré-estabelecidos, primacialmente nos meses de Maio (para as tabancas da ilha do Maio que festejam com coloridos e vibrantes desfiles, aparentados ao carnaval, e outros rituais o dia de Santa Cruz) e de Junho (para as tabancas da ilha de Santiago que também festejam com coloridos e vibrantes desfiles, semelhantes ao carnaval, e outros rituais os dias dos seus santos padroeiros, designadamente Santo António a 13 de Junho, São João a 24 de Junho e São Pedro a 29 de Junho, por isso mesmo denominando-se festas juninas).
ii. Pelo contrário, a comunidade utópica da Falésia foi estabelecida para perdurar de forma exclusiva, duradoura e a tempo inteiro num pequeno recanto à margem de uma ilha de um território arquipelágico integrante do império colonial português.
b.7) Também interessante parece ser o surgimento de uma nova religião de natureza sincrética na comunidade falesiana. À semelhança dos traços sincréticos das religiões dominantes nas sociedades crioulas com a conjugação e, até, o amalgamento, das crenças e dos rituais das religiões cristãs trazidas pelos colonos europeus com as crenças e os rituais mágico-animistas das religiões afro-negras dos povoadores negros escravizados (e eventualmente das religiões das comunidades originárias indígenas remanescentes, o que consabidamente não é o caso de Cabo Verde, bem como das religiões trazidas por serviçais e emigrantes relativamente recentes vindos de outras paragens ou, ainda, das mundivisões, mundividências, cosmovisões, cosmogonias e filosofias de vida colhidas e assimiladas por caboverdianos mediante leituras ou vivências em outras paragens, como parece ser o caso de Cabo Verde), a religião dominante na comunidade falesiana é o catolicismo apostólico romano, mas muito amalgamado com outras filosofias de vida e crenças religiosas, tais o budismo e o animismo mágico africano. Nessa óptica, os preceitos religiosos fundamentais na comunidade falesiana parecem continuar a ser o amor ao próximo e o respeito de todos os seres vivos, reduzindo-se Deus, segundo o estudioso João Paulo Tavares de Oliveira, a um mero figurante cuja nomeação e cuja designação na língua caluda se aproximam das formas de nomeação e designação da criatura humana, próxima, semelhante, vizinha e companheira nas vicissitudes da vida comunitária falesiana.
Importantes nos rituais cultivados pela comunidade falesiana são as festas e os ritos relacionados com as chuvas. Conhecendo-se o papel que as chuvas desempenham na realidade cruelmente nua, crua e assaz estéril das nossas ilhas e, consequentemente, no imaginário caboverdiano como fautores de engendramento do chamado paraíso das as-águas (no feliz dizer do poeta telúrico Nzé de Sant´y Ago), isto é, do paraíso da fertilidade e da abundância num país periodicamente assolado pelas as-secas (para usar uma expressão cunhada pelo romancista Onésimo Silveira) em ciclos cada vez mais curtos e estreitos, essa estratégia autoral de Mário Lúcio Sousa desloca de novo o foco da narrativa de um lugar previsivelmente cubano (país/ilha lugar onde efectivamente decorreu o percurso de vida do protagonista e personagem principal da história narrada em Falésia) para um lugar tipicamente caboverdiano, tanto mais que a quase totalidade das comunidades crioulas do mundo (incluindo Cuba) se originaram em sociedades escravocratas engendradas e edificadas em climas equatoriais e tropicais húmidos, sendo assaz especial o caso de Cabo Verde (e, quiçá, o caso das ilhas ABC - Aruba, Bonaire e Aruba - das chamadas Antilhas Holandesas), de clima tropical seco com escassa e irregular pluviosidade.
b.8) Na óptica do autor João Tavares de Oliveira, a comunidade falesiana, construída à volta e no decurso da narração da biografia do Língua, parece ter todos os atributos de uma comunidade utópica, quais sejam:
i. O abandono dos antigos hábitos e costumes remanescentes do locus miserabilis, horribilis e horrendus que eram a sociedade escravocrata e a sociedade que historicamente a sucedeu e de onde provinham os primeiros moradores de Falésia;
ii. A partilha em comunhão espiritual do estilo de vida da nova sociedade falesiana, sendo que o objectivo prosseguido não é a abundância de bens materiais, como é característico das sociedades desenvolvidas de bem-estar e consumo, ainda que equitativa e justamente distribuídos, como pretenderam as sociedades construidas segundo os parâmetros do chamado socialismo real em férrea - e bastas vezes mortal - competição com as sociedades capitalistas altamente desenvolvidas, e como é característico e usual nas demais construções utópicas, mas, a contrario, primacial ou exclusivamente a obtenção da paz interior e do sossego íntimo dos seus moradores, como também propugnado por certas concepções igualitaristas do socialismo ou o estilo de vida demandado pelo budismo, todos certamente conhecidos do romancista Mário Lúcio Sousa e vivenciados por ele.
É exatamente por isso que, segundo João Paulo Tavares de Oliveira, a sociedade falesiana enquadra-se numa utopia pós-materialista.
b.9) No que se refere à governação da comunidade falesiana, o estudioso cita o narrador da Biografia do Língua que explica:
“Em Falésia, nós nos governamos mutuamente e tudo que indica domínio de um sobre o outro está extinto por convivência e por esquecimento”.
Segundo o autor João Paulo Tavares de Oliveira, o que caracterizava as construções utópicas clássicas era a sua propensão para o delineamento de forma acabada e conclusiva de sociedades ideais e perfeitas, rigidamente organizadas e politicamente preparadas para repelir quaisquer ameaças exteriores, sendo ademais “excessivamente legisladoras”, valendo como exemplos desse tipo de sociedades utópicas tanto A República, de Platão, e a ilha da Utopia, de Thomas More, como também outras ficções utópicas delas contemporâneas, nas épocas da Antiguidade Clássica e do Iluminismo europeus.
Na opinião do estudioso João Paulo Tavares de Oliveira, a obra Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa, encontra outras vias alternativas, preferindo primacialmente enveredar pelas metodologias mais correntes nas utopias modernas. É assim que, segundo o mesmo autor, “vivendo à margem do resto da colónia portuguesa, a comunidade falesiana não tem leis e regulamentos estabelecidos para aqueles que escolheram lá viver. Os falesianos não têm uma constituição formada, nem têm um parlamento (nem nada que a isso se assemelhe) para aprovar ou refutar qualquer proposta de lei”. Prossegue o estudioso João Paulo Tavares de Oliveira: “Nesse sentido, B. L. segue a tendência das modernas utopias que são narrativas que não estão excessivamente preocupadas com a ordem”, nessa sua consideração seguindo de perto os passos e os argumentos do teórico Chris Ferns da obra Narrating Utopia: Ideology, Gender, Form in Utopian Literatur.
Assevera em modo conclusivo o autor João Paulo Tavares de Oliveira que “na utopia de M. L. Sousa as únicas leis que existem são as “leis naturais”, que diríamos, nascidas da concórdia e do respeito mútuo entre os moradores. As pessoas deixam-se reger pelo princípio do bom senso e da familiaridade. Cada um faz decorrer a sua vida na mais singela simplicidade, enquanto se deleita com a maravilhosa narrativa do condenado”.
b.10) Depois de passadas décadas desde a chegada ao lugar ermo chamado Falésia do condenado biógrafo oficial do Língua e do pelotão encarregado do seu fuzilamento, a comunidade utópica falesiana parece ter chegado ao auge da sua evolução. Esse momento áureo parece coincidir com o fim da história narrada do Língua.
Com efeito, já muito idoso, o contador da longa história do Língua e condenado a uma morte sucessivamente adiada, dá a história finalmente por finda e diz-se preparado para ser executado como inicialmente previsto, ao que os moradores do lugar, isto é, os agora cidadãos e cidadãs da comunidade utópica falesiana ripostam que a palavra designativa de tal acto não existe na praxis social nem tão pouco no léxico falesiano.
Terminada a narração da vida do Língua e, assim, aparentemente desaparecido o móbil e cimento agregador da comunidade utópica falesiana, esta se vê previsivelmente colocada perante um (in)esperado dilema, qual seja:
i. A sua estagnação com todas as consequências daí advenientes e resultantes, como, por exemplo, as suas inelutáveis desagregação e implosão, ou
ii. A sua transformação numa coisa outra, ainda que munida dos (e , até, enriquecida nos) seus atributos utópicos, como, por exemplo, a efectiva igualdade no acesso ao lugar da fala e aos saberes nela consubstanciados, isto é, a generalização e a democratização do poder de contar histórias por todos, sem excepção alguma.
Como oportunamente assinalado pelo próprio romancista Mário Lúcio Sousa e tempestivamente detectado pelo estudioso João Paulo Tavares de Oliveira, a história de Falésia parece permanecer em aberto, devendo a sua narração ser continuada por quem melhor souber contá-la e lhe acrescentar um ponto, para merecer a devida fortuna dos Céus, como vaticinado nas histórias tradicionais caboverdianas…
E acrescento eu que o mesmo se pode dizer de outras histórias por demais reais e tão nossas conhecidas e facilmente assimiláveis à história desse lugar utópico chamado Falésia, edificado pela imaginação criativa de Mário Lúcio Sousa à volta da narração do percurso de vida de quem foi vítima da mais vil e abjecta forma de coisificação do ser humano e da mais crassa, repulsiva e repelente negação da dignidade da condição humana que é a escravatura, ademais dirigida contra uma categoria específica da humanidade que é “a grande raça negra”, como diria Manuel Duarte para nomear uma das matrizes fundamentais da nossa irredutível identidade de seres humanos abertos aos mundos de todos os outros seres humanos, não fôssemos nós caboverdianos das ilhas (ou, por outras palavras, exactamente por sermos caboverdianos das ilhas) e, por isso, necessariamente crioulos, e crioulos africanos ou, quando deles descendentes em pátrias natais de acolhimento situadas em outros continentes, muito provavelmente de matrizes culturais e identitárias afro-latinas…
IV Notas finais e conclusivas
1. A terminar, cumpre-me assinalar que as duas narrativas ou histórias paralelas que compõem o livro Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa, seguem de perto a estrutura da célebre obra Utopia, de Thomas More, obra essa datada de 1516, felizmente referida, mas infelizmente não analisada na sua completa substância no livro ora em apresentação, datada de 1516 e cujo título completo em latim, a língua na qual foi originalmente escrita, é Libelus vere aurens, nec minus salutaris quam festivus, de optimo rei publicae statu deque nova insula utopia (e que em tradução para português resulta no seguinte título: Um pequeno livro verdadeiramente dourado, não menos benéfico que entretedor, do melhor estado de uma república e da nova ilha utopia).
Com efeito, tanto numa obra como noutra são assinalados um locus horrendus, de que se quer impreterivelmente escapar, e um locus amoenus, que se almeja e se quer construir como sociedade/comunidade alternativa.
É assim que na primeira narrativa da obra de Thomas More é ferozmente criticada a Inglaterra do tempo do seu autor, enquanto na segunda narrativa é apresentada uma sociedade alternativa, a partir da narração da viagem de Rafael Hitlodeu, curiosamente nascido em Portugal, à ilha Utopia e o que ele pôde observar nessa mesma ilha tida por realmente existente enquanto sociedade idílica (apesar de o nome utopia significar precisamente um não-lugar, um nenhures), isto é, como foi, de facto, observado por vários viajantes em várias terras de vários continentes aonde aportaram os europeus durante a expansão marítima europeia a partir do século XV.
A Inglaterra contemporânea de Thomas More, um jurista, diplomata e alto funcionário/dignitário régio com o título de Lorde Chanceler, é descrita como uma sociedade profundamente injusta, marcada pelo êxodo dos trabalhadores dos campos para as cidades, pela proliferação de bandos de criminosos, por um sistema institucionalizado de justiça cega e cruel, por uma realeza ávida de guerras e riquezas, por intermináveis perseguições religiosas, por um povo vivendo na mais atroz miséria e duramente oprimido pelo trabalho extenuante para manter o exército e uma multidão de ociosos e para sustentar o luxo e a luxúria da nobreza e das classes possidentes parasitárias.
A sociedade alternativa da ilha da Utopia, imaginada como estando localizada no Novo Mundo, é caracterizada como sendo governada pelo rei Utopos e desconhecendo a propriedade privada. Nessa ilha, os bens são guardados e conservados em grandes armazéns para servir exclusivamente as necessidades do povo. Nessa ilha todos trabalham por períodos de dois anos e exercem complementarmente uma das outras actividades principais, quais sejam a tecelagem (exercida principalmente por mulheres), a carpintaria, a alvenaria e a ferraria. Nessa sociedade igualitária, todos os trajes caracterizam-se pela sua simplicidade reflectindo a igualdade social reinante, abrindo-se uma excepção para os idosos e os governantes, os quais podiam usar trajes mais ou menos luxuosos. Não existe desemprego e todas as pessoas capazes são obrigadas a trabalhar (ou, melhor, sentem-se na obrigação de trabalhar).
A sociedade reinante na ilha da Utopia caracteriza-se pelos seguintes traços característicos:
a) Prevalece um estado de igualitarismo e de relativo bem-estar com escolas e hospitais gratuitos e com comida igual para todos.
b) Prevalece uma grande repulsa ao ouro, sendo que os penicos e as correntes que prendem os criminosos são feitos de ouro.
c) A riqueza somente é importante para comprar mercadorias aos países estrangeiros e para incentivar guerras entre eles com o fito de enfraquecê-los.
d) Existe liberdade religiosa com admissão de religiões monoteístas, de religiões que tenham como objectos de culto o sol, a lua, a terra e os mortos e existe igualmente tolerância em relação ao ateísmo.
e) É admitido o casamento dos sacerdotes.
f) É permitida a eutanásia.
g) São punidos com a escravidão o adultério e a prática do sexo antes do casamento.
Contra o expectável para uma sociedade fundada na utopia de um igualitarismo quase total e absoluto, existe escravatura na ilha da Utopia, possuindo cada família dois escravos. Todavia, trata-se de uma escravatura sui generis, pois que
i. Os escravos ou são criminosos ou são estrangeiros ou são adúlteros, e
ii. Os criminosos são periodicamente libertados por bom comportamento.
A título de curiosidade, diga-se que Thomas More foi condenado à morte por se recusar a posicionar-se a favor do rei Henrique VIII (e da por ele fundada Igreja Anglicana , da qual se tornou o chefe) nas suas disputas e dissensões com o Papa e a Igreja Católica Romana, a que permaneceu sempre fiel e leal.
Anote-se que o livro Utopia de Thomas More teve imediatas repercussões, a mais relevante das quais foi a implementação de algumas ideias nele inscritas pelo bispo Vasco da Quiroga numa comunidade fundada em Michoacán, no México, como, por exemplo, a jornada de trabalho de seis horas, a autogestão e a contribuição igualitária dos cidadãos para o bem comum.
2. Sendo mais que provável que o livro Utopia, de Thomas More, inspirou a concepção e a construção da sociedade e do mundo novos falesianos delineados na Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa, cumpre assinalar que é esse mesmo livro de Thomas More que igualmente inspirou os chamados socialistas utópicos do século XIX, como Pierre-Joseph Proudhon, Charles Fourier, Robert Owen e Saint-Simon, sendo que esse mesmo socialismo utópico é considerado uma das fontes fundamentais do marxismo.
3. É igualmente sabido que, pretendendo superar o chamado socialismo utópico, quis o marxismo dotar a sua critica das sociedades baseadas na subjugação do ser humano pelo ser humano e na exploração do homem pelo homem nos conhecimentos disponibilizados pelas ciências suas contemporâneas e ser, assim, entendido como socialismo científico, o qual em razão disso pudesse aquilatar-se à concepção de uma sociedade futura, altamente desenvolvida, desprovida de classes sociais e do correlativo estado, auto-gerida e edificada sob a consigna de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades. É essa sociedade vindoura chamada comunista que é considerada a alternativa mais viável e consistente ao derradeiro dos modos de produção fundados na subjugação e na exploração do homem pelo homem, o capitalismo, devendo a emergência dessa mesma sociedade comunista ser precedida e previamente intermediada por uma sociedade de transição, a sociedade socialista, governada por expressões várias da ditadura do proletariado e devidamente regida pela consigna de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo a sua prestação (segundo o seu trabalho). Por sua vez, e não obstante a sua transitória componente ditatorial alegadamente dirigida contra a resistência das antigas e ainda subsistentes classes exploradoras e opressoras, a ditadura do proletariado era considerada como integrando, consubstanciando e visando a um tempo uma forma superior de democracia, a democracia socialista, superadora do rotativismo político-partidário e de outros formalismos eleitorais da chamada democracia burguesa, que, na óptica marxista, no fundo visa a preservação e a ampliação da dominação e da opressão das classes exploradoras. A superioridade qualitativa da democracia socialista em relação à democracia burguesa residiria na circunstância de o mesmo tipo novo de estado ser primacialmente fundado no poder efectivo da maioria laboriosa da população representada pelo seu partido de vanguarda e/ou por um bloco/frente progressista de partidos das classes trabalhadoras constituídas em torno da aliança operário-camponesa com os intelectuais revolucionários e os pequenos proprietários doravante organizados em cooperativas.
4. Como é também sabido, na esteira do marxismo e segundo as várias versões e interpretações posteriores do marxismo-leninismo (sendo que o leninismo foi considerado pelos seus ideólogos, próceres e apóstolos como o marxismo da época do imperialismo, por sua vez caracterizado como capitalismo monopolista com preponderância do capital financeiro transnacional e qualificado como o derradeiro estádio de desenvolvimento do capitalismo), a ideologia comunista, entendida enquanto utopia emancipatória de construção do paraíso na terra, veio a concretizar-se na prática em roupagens diversas do chamado socialismo real, de teor burocrático-administrativo e feições totalitárias e autoritárias, e nas suas muitas e variegadas dimensões, funestas umas nos seus malfazejos e maléficos teores estalinistas e neo-estalinistas, positivas outras nas suas benfazejas e benditas feições nominalmente humanistas e largamente defensoras das classes laboriosas e da dignidade de todas as criaturas humanas.
Algumas correntes marxistas nascidas e tornadas hegemónicas em países do chamado Terceiro Mundo, como a China ou o Vietnam, quiseram adaptar o marxismo-leninismo às condições concretas das revoluções vitoriosas nos respectivos países, caracterizados pelo seu estado de subdesenvolvimento profundo e crónico e pela manutenção das suas populações na pobreza, na miséria, na ignorância, no obscurantismo e no medo generalizados, sendo que se ajuizava que todas essas maleitas sociais eram engendradas pela dominação imperialista nas suas formas clássicas de colonialismo, neo-colonialismo e semi-colonialismo. Por isso, consideravam essas correntes marxistas que os respectivos países estavam desprovidos de bases industriais e técnico-materiais que pudessem sustentar uma transição imediata para a fase da construção do socialismo (ou, por outras palavras, para a fase socialista), sequente à fase democrático-popular da revolução vitoriosa, tal como experimentada por um período mais ou menos longo nos países do Leste europeu após a estrondosa vitória contra o nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial. Alguns dos seus mais icónicos ideólogos e dirigentes formularam algumas teorias e doutrinas políticas que, sem implicarem necessariamente o abandono do marxismo e do marxismo-leninismo por parte dos respectivos partidos e regimes políticos ou, mesmo quando entendidas como alternativas democrático-revolucionárias a essas ideologias classistas de base materialista dialéctica, foram profusamente inspiradas nas mesmas, sobretudo na sua abordagem materialista histórica dos fenómenos e conflitos sociais, pudessem sustentar a edificação de modelos e sistemas político-sociais baseados em amplas alianças patrióticas das classes e categorias sociais nacionais e dirigidos primacialmente contra as várias formas de dominação imperialista e as suas componentes internas neo-coloniais, burocrático-compradoras, gran-capitalistas e (semi)feudais.
Como é também sabido, as várias tentativas de renovação das concepções marxistas e marxistas-leninistas mediante a conceptualização de um estado democrático-revolucionário socializante de transição, alternativa à - ou complemerntar da - concepção da ditadura do proletariado como o estado típico e insubstituível de transição revolucionária, acabaram por soçobrar e frustrar-se, falindo na prática concreta dos países que transitoriamente as experimentaram, na medida em que cedo foram submergidas pelo cerco imperialista e pela alegadamente premente necessidade do agravamento e da agudização da luta interna e internacional de classes, da aceleração dos processos revolucionários em curso e da correlativa exacerbação da luta política e da repressão contra os vituperados inimigos internos e externos do povo, da pátria e/ou do partido de vanguarda. Dessas circunstâncias históricas e político-ideológicas resultou, como é sabido, um desmedido reforço não só dos aparelhos ideológicos político-partidários e institucionais de controle das mentes e dos espíritos das populações oprimidas e todavia esperançadas na eclosão de uma nova sociedade liberta da exploração do homem pelo homem, como também dos aparelhos repressivos do Estado, doravante abertamente dominados por uma nomenclatura político-partidária e burocrático-administrativa omnipotente, omnisciente e omnipresente e por cujos interesses incumbia ao Estado dito revolucionário e/ou socialista velar de forma o mais ciosa e crassamente possível.
Idêntico destino tiveram as até então assaz inéditas experiências de transição pacífica e multipartidária para o socialismo, denominadas de democracias populares e engendradas nos países do Leste da Europa na sequência da demolidora vitória da União Soviética e dos Aliados ocidentais e terceiro-mundistas contra o nazi-fascismo alemão, o fascismo italiano e o militarismo nipónico na Segunda Guerra Mundial.
1. Desde a falência por implosão, explosão, extinção e/ou superação das sociedades construídas segundo os modelos totalitários e autoritários do chamado socialismo real e dos seus avatares e imitações estalinistas tropicais e terceiro-mundistas que o chamado socialismo científico se viu irremediavelmente desacreditado em razão dos notórios excessos repressivos cometidos em seu nome e dos seus mais que evidentes e congénitos falhanços, falácias, faltas e falhas na satisfação dos direitos humanos de liberdade. Concomitante e consequentemente, viu-se o socialismo científico reduzido, também ele, a uma mera (ainda que poderosa) utopia, que, exactamente por o ser nessa sua dúplice natureza de utopia libertária de construção do paraíso na terra pelo próprio ser humano (e agora necessariamente conjugada com a premente e universal demanda dos direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais nas suas inadiáveis, imprescindíveis e imprescritíveis integridade, inteireza, universalidade, indivisibilidade e plenitude enquanto integrantes de um Estado de Direito Democrático e Social, aliás, considerado por quase todas as correntes humanistas e progressistas de todo o mundo como das mais recentes e valiosas conquistas civilizacionais da Humanidade), continua a nutrir e a alimentar os sonhos de liberdade, de igualdade, de fraternidade e de justiça social dos seres humanos por todo o mundo.
Tal como a nós, caboverdianos das ilhas e diásporas, também continuam a alimentar e a sustentar a esperança e o sonho lavrados no “Poema de Amanhã”, de António Nunes, de construirmos uma outra terra dentro da nossa terra como almejou e quis Amílcar Cabral em muitas palavras poéticas e político-filosóficas de lavra sua e com recurso às nutridas palavras acabadas de referir do seu camarada e confrade poeta Aguinaldo Fonseca.
São esse mesmo sonho e essa mesma esperança que parecem ter ficado também plasmados na comunidade utópica delineada no romance Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa, analisado de forma assaz competente e proficiente pelo Mestre João Paulo Tavares de Oliveira, que também me deu o prazer e a honra de ter igualmente em conta o meu olhar (diga-se que ainda assaz policlínico) de autor/actor, amante e estudioso da literatura e da cultura caboverdianas e inseriu algumas citações de textos ensaísticos da minha lavra no seu muito bem escrito e elaborado e assaz laborioso livro.
Nota do autor: constitui o presente texto a versão desenvolvida mais completa do texto de apresentação pública do livro de João Paulo Tavares de Oliveira intitulado A Utopia no Romance Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa (Editorial Novembro, 1ª edição de Outubro de 2021), ocorrida no Centro Cultural Cabo Verde (Rua de São Bento, nº 640, Lisboa) a 6 de Outubro de 2022.
No acto de apresentação pública do livro acima referido, tive a oportunidade de reiterar os nomes de escritores caboverdianos referidos na sessão de lançamento em Lisboa do livro A Última Lua de Homem Grande, de Mário Lúcio Sousa, que, segundo penso, são legítimos postulantes/candidatos ao Prémio Camões, o maior galardão literário de língua portuguesa, em razão da qualidade e da dimensão da obra até agora produzida, designadamente e por ordem de idade: Oswaldo Osório, Dina Salústio, Jorge Carlos Fonseca, Valentinous Velhinho, Mário Lúcio Sousa e José Luiz Tavares, para além (e sem farsa modéstia) do autor do presente ensaio, na altura referido, com muita e sincera modéstia, como poeta épico-telúrico, existencialista e lírico sem concreta nomeação do seu nome civil, do seu nome literário, do seu pseudónimo e dos seus muitos pseudo-heterónimos.
Na versão publicada do texto de apresentação pública do mais recente romance de Mário Lúcio Sousa foram ainda acrescentados os nomes dos escritores (sempre por ordem de idade) Filinto Elísio Correia e Silva, Danny Spínola e Joaquim Arena como futuros possíveis candidatos/postulantes a considerar, bem como dos investigadores e escritores de ideias Gabriel Fernandes, António Leão Correia e Silva e José Vicente Lopes.
A esses nomes ousei aditar por ocasião da apresentação pública do livro de João Paulo Tavares de Oliveira, intitulado A Utopia no Romance Biografia do Língua, de Mário Lúcio Sousa, o nome do professor universitário jubilado Manuel Veiga, em razão não só da sua condição de escritor bilingue com importante obra ficcional vazada nas línguas portuguesa e caboverdiana, mas também como o linguista considerado a maior autoridade actual na crioulística caboverdiana e ensaísta com uma vasta obra publicada no domínio dos estudos da literatura, da cultura e do bilinguismo caboverdianos e escrita nas línguas portuguesa, caboverdiana e francesa.
Agora, durante a elaboração da versão final do presente ensaio, ouso acrescentar aos nomes acima referidos o nome de uma importante personalidade do panorama literário caboverdiano das ilhas e diásporas, designadamente da poetisa, contista, romancista e cronista Carlota de Barros, autora de uma relevante obra literária e cuja escrita se distingue daquelas cultivadas pelas demais autoras caboverdianas suas contemporâneas por uma exuberante e cativante leveza lírica, a qual, aliás, perpassa toda a sua obra literária ainda em consolidação, com destaque para a sua poesia, mesmo aquela aparentemente de teor mais desesperançado e trágico.