Veracidades (prosopoema de Erasmo Cabral de Almada): excertos sobre a vida e a morte de Amílcar Cabral
Veracidades
(poema de Erasmo Cabral de Almada)
excertos sobre a vida e a morte de Amílcar Cabral
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dos tempos das fomes e da usura da (des)esperança
Saudoso,
ficas recriando
as paisagens altas e enevoadas da Serra Malagueta,
enamoradas das chãs de Achada Falcão,
das detalhadas fracturas da infância
do filho de Nho Juvenal Cabral,
da sua precária, conquanto sã e nobre genealogia,
da sua Casa-Grande, do seu amplo quintal
de debulha do milho, do feijão e de outros cereais
das colheitas de Novembro e Dezembro,
da sua terra vermelha circundante
do remanso e da alegria das águas
de Boa-Entrada e Fonteana,
das suas árvores de fruto sinalizando
os infalíveis cronogramas da vida e da morte,
dos seus passeios guarnecidos de acácias rubras,
de floridos cardeais e buganvílias,
das suas criaturas colectoras das purgas
das plantas e do destino,
das suas oleaginosas acossadas
pelas navalhas dos moços de Sedeguma,
pelas facas dos homens de Tomba-Touro,
pelas pedras das crianças do Birianda,
pelos machins e pelos machados
das mulheres de Ribeirão Manuel,
dos seus arbustos assediados
pelos órfãos esfaimados
das colinas de Cruz Grande.
Indefectível,
ficas emoldurando o percurso islenho
do menino de sua mãe, do seu corpo pudico
emaranhando-se castanho-escuro às lembranças
do verde imprescritível da sua Bafatá natal, da densa
vegetação da sua outra terra amada, da foz do Geba,
dos seus músculos atletas movendo-se hábeis
nas ruelas insalubres de Ponta-Belém,
das suas pernas ganhadoras campeando
nos poeirentos campos de futebol
dos subúrbios da cidade da Praia,
das suas mãos amorosas da máquina de costura
e dos dedos fatigados, dos ombros crepusculares,
da fronte anoitecida e transpirante de Nha Iva,
dos seus olhos cultivados nas lentes tímidas, renegados
pelos enfatuados companheiros das lides literárias,
embrenhados na dissecação dos apodrecidos
cadáveres das ossadas de odes e sonetos,
na explanação dos males da terra abandonada
pela rima e pela grandiloquência dos velhos vates das ilhas,
erodidas pela incúria, pela ignorância e pela desflorestação,
da sua pupila marítima alongando-se prolífera pela baía
vazia de barcos e de carvão do Porto Grande de São Vicente,
pelas distâncias do vasto mundo defronte,
pelas rotas conducentes aos templos do saber
da multisssecular capital do Império,
ao clandestino tirocínio da Lisboa insubmissa,
às cicatrizes abertas das terras do Alentejo,
à dor calada, implosiva, dos trabalhadores forçados
das roças e das plantações coloniais de Angola,
às fainas agrícolas no solo escalavrado de Cabo Verde,
às memórias guerreiras dos camponeses da Guiné,
às indagações universais do lato mundo alado em mudança.
Solícito,
ficas moldando o rosto recto
de Amílcar debruçado
sobre as límpidas nascentes de Txororó,
depois acabrunhando-se enlutado
sobre as memórias destroçadas
das muitas vítimas das as-secas,
das inúmeras fomes e mortandades,
depois definhando-se enluarado
sobre as valas comuns da década de Quarenta,
depois erguendo-se palavra plena, repleta
do cerimonioso silêncio dos campesinos
de Pingo-Chuva e Txuba Txobe,
da solenidade metafórica dos anciãos
das aldeias de Achada-Além e Águas Belas,
da sombra ínvia dos lavradores do Colonato de Chão Bom,
dos vultos cinzelados pela quotidiana ignomínia enlaçando
as vozes metropolitanas contestatárias aprisionadas
na colónia penal vizinha, na reclusão
do famigerado e temido, do tristemente
célebre Campo de Concentração do Tarrafal,
da dúbia desmesura dos seus muros e desalentos
caiados do branco da sua amaldiçoada
reputação de campo de morte lenta,
repercutindo nos tempos abafados em receio,
saturando-se nos tempos recheados de silêncio.
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Dos tempos da festa e do júbilo
Eufórico,
ficas revivendo os dilatados tempos
da circunvalação da ilha maior,
da circum-navegação das suas íngremes
estações, das suas estradas imprevisíveis
construídas sobre a (in)visibilidade
da precariedade, da afronta e do desaire,
da expectativa do desastre iminente
sobre os verdes desfiladeiros
de Figueira das Naus e Figueira Muita,
dos tempos serpenteando com as gentes
do planalto da Assomada, de Fundura,
do fundo dos Engenhos, das angras
da Calheta de São Miguel, das hortas
de Santa Cruz, do sol citadino, convulsivo,
convincente, da Praia-Maria até às portas abertas,
descobertas escancaradas do presídio do Tarrafal
e à aparição das efígies altas e heróicas
dos seus presos e reclusos políticos,
das suas silhuetas atónitas, libertas
para o regaço das multidões entusiastas,
das suas vestes talhadas para a urgência dos tempos
de acolhimento do sangue e do coração de Amílcar,
dos seus tempos da Novíssima Largada das ilhas,
dos seus tempos do definitivo e conclusivo enterro
dos mitos passados, persistentes, coloniais,
dos seus tempos da reafricanização dos espíritos,
da profusão da súmbia, do feminil bubú, da balalaica,
dos panos da terra, da sulada, das camisas djila,
dos penteados afro, das barbas densas e irreverentes
e de outros inconfundíveis sinais do reencontro
com o rosto escuro, aberto, descoberto
das origens, desde há muito sonegadas,
dos tempos grunhos ritmados pelo batuco
e pela incandescência dos cabelos crespos,
arredondados para a dimensão da dor
do mundo e da controvérsia,
tais negros algodoais crepitando rebeldes
sobre as ruínas dos tempos outros, latifundiários,
das palavras finas, mofinas, das expressões mercantis,
do verbo timorato, da pátria antiga agónica, renegada,
da longínqua pátria peninsular remordendo-se
no despertar da nova nação lusitana, convulsiva
e sonhadora, em abril pluviosa, em maio solidária,
em setembro esperançosa, em novembro sorridente.
Entusiasmado,
ficas rememorando
os celebrados tempos juninos
da eruptiva eclosão da História,
dos seus profetas e mártires,
dos seus filhos dilectos, audazes,
pródigos de razão e de valentia,
dos seus míticos heróis regressados,
abraçados ao ritmo esfusiante das ruas
fervilhantes de slogans e protestos anticoloniais,
da explosão da alegria no reencontro
com as pombas da tabanca,
com o saracoteio dos seus olhos gratos,
com o frenesim dançante, lascivo,
não mais pecaminoso,
das ancas no colá sanjon,
com os pilões ecoando
as chuvosas gargalhadas
do milho e do tambor
nos soçobrados alicerces
do sobrado e do morgadio,
nas fissuradas faces
da branca ganância
deglutindo a lava e o café,
com o desmedido orgulho
da ostentação das faces crioulas,
nossas, diversas, profusas,
dos cabelos muitos, sumptuosos,
das gentes das ilhas todas,
com a devassa dos labirintos
da amnésia e da ocultação do quintal
e do nosso tetravô africano,
escravo insulado com o mar e a terra,
desnaturado e desterrado
entre a nau das Américas
e a cana-de-açúcar das ilhas,
expatriado e deslocado
entre a nau catrineta
e a infinita pescaria
do amargor da humilhação,
da sua tristiose curtindo-se
à beira dos funcos e dos casebres
feitos de pedra basáltica nua
e cobertos de palha e carriço,
do banzo dos seus irmãos
de raça e desgraça,
das suas caladas angústias,
dos seus inaudíveis lamentos,
das suas saudades da casa paterna,
longínqua, devastada
na terra firme africana,
para nunca mais perdida,
dos seus levantes, da sua
inicial e renitente comunhão
com a terra nossa insular
árida e exaurida,
da sua exumação
na sua nova mátria madrasta,
dele e dos seus rebentos
negros e mulatos,
dele e da sua amada,
arredada do seu aconchego
na esteira de palha
para o desvario da luxúria
do clã dos seus senhores,
dele e dos filhos negros e mulatos
do ventre das suas companheiras
da dor e da intemperança,
dele e dos filhos claros e escuros,
dos filhos brancos, mulatos e negros
do branco leite das tetas negras
exauridas das mulheres escravas.
Comovido aprendiz,
ficas cultivando os castanhos
nutrientes do sol e da substância
do mundo dos nossos pés andarilhos
do nosso Cabo Verde da esperança,
da terra retornada às fontes primevas
da desidratação da alma e do ser,
intentando afastar-se da distância
do mar gentio da terra-longe,
esparramando-se com morabeza
pelo jubiloso som dos trovadores,
pelo canto chão dos poetas populares,
pelo verbo alto e sonoro, pela palavra
acutilante, indómita e destemida,
dos vates de intervenção social,
pelas épicas narrativas dos percalços,
das desventuras, dos sucessos
dos filhos do Povo de Notcha,
dos seus heróis anónimos, dos seculares
protagonistas da edificação da Macaronésia
árida, tropical, saheliana, crioula, nossa,
pelo redondo e pujante metaforismo
dos desvendadores dos herméticos
códigos da subsistência e da floração
do verde paraíso islenho imaginado
sobre a cabeça calva e árida de Deus,
da árvore e do tambor, do pão e do fonema
eclodindo no cântico do habitante,
embevecido com Cabo Verde,
armadamente em derrisão,
comovido com Cabo Verde,
amadamente em construção,
com os seus sentidos letrados em crioulo,
com os seus lazeres e afazeres
laborando o poema de amanhã
para os tempos de quando a vida nascer,
com as suas gestas, com as suas crenças,
com os seus pastores, pescadores, lavradores,
pedreiros, marceneiros, catraeiros e feiticeiros,
com as suas panelas de milho vermelho, púbere,
raríssimo, com os seus alguidares de milho branco,
importado, molhado de véspera para o cuscús
e para o prazer dos meninos das suas mães
e de todos os outros meninos seus colegas
e condiscípulos da vizinhança amiga,
com as suas crianças todas
diversas, iguais e diferentes
castanhas, negras, brancas,
crespas, frisadas, lisas, loiras,
pétalas da mesma flor arquipelágica,
com as suas frágeis auréolas
de imaculados cordeiros de Deus,
com as suas confissões afinadas
nas noites livres de África,
com os seus sons revirando-se
com as alvíssaras das folhagens de setembro
e das novas conjunturas divisadas germinais
nos traiçoeiros tempos de outubro,
nos incertos dias de novembro,
nos chuvosos dias de janeiro,
batendo com estrondo
nas batentes do arquipélago,
aconchegando-se com doçura
no portão das nossas ilhas.
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Dos tempos do luto
Surpreso,
ficas planando
sobre os rostos
de repente crispados,
retesados sobre as bocas
de repente amarguradas
dos antigos companheiros
do Militante Número Um
do Nosso Glorioso Partido
do Fundador das nossas
Nacionalidades Africanas
proclamado para sempre
Herói dos Povos Soberanos
da Guiné e de Cabo Verde,
e a sua nunca acabada rememoração
dos incomensuráveis sacrifícios consentidos
na longa e extenuante luta armada de libertação,
dos muitos feitos e das muitas façanhas praticadas
na frente político-diplomática, na eficiente logística
de apoio aos militantes armados, no tempestivo e eficaz
abastecimento das populações das zonas libertadas
durante a guerra de guerrilha de longa duração
levada a cabo solidária e conjuntamente com
a força física principal da luta constituída
pelos bravos combatentes da Guiné-Bissau.
Convicto,
ficas dissecando todas as outras arroladas provas
da genialidade político-estratégica do princípio da unidade
fundado nos laços históricos e de sangue, na duradoura comunidade
de aspirações entre as populações subjugadas da Guiné e de Cabo Verde,
na permanente comunidade de interesses estratégicos dos povos dos dois
territórios africanos submetidos à multissecular dominação estrangeira
do mesmo poder colonial, na sua complementaridade geográfica, orográfica,
ecológica e geo-económica, tanto no período colonial, como na actualidade
dos dias das nossas vidas e das vidas futuras das gerações vindouras, com vista
ao desenvolvimento acelerado e auto-sustentado das duas nações irmãs e dos seus
povos soberanos e independentes, donos das suas terras e do seu próprio destino.
Convencido,
conformas-te com as rezas e as palavras lavradas nos obituários, nos elogios e orações fúnebres, nos cartazes dos activistas ocidentais da solidariedade anti-colonial, nos comunicados de guerra repetidamente lidos na Rádio Libertação e na Rádio Conacry,
empenhas-te na descodificação dos muitos enigmas pendentes e ficas desencobrindo
todas as provas, genuínas e cabais, na prática comprovadas, da duradoura validade do magno princípio libertador teorizado por Amílcar Cabral, depois solidificado na aliança fraternitária e na luta comum encetada com o povo heróico do país irmão, na busca da nossa vocação para a plena soberania política, na demanda do nosso destino africano, livremente escolhido pelo povo das ilhas, sob a esclarecida direcção do nosso glorioso partido e do nosso líder imortal, barbaramente assassinado por agentes infiltrados a mando das forças mais retrógradas e obscurantistas do colonial-fascismo português, em desespero de causa do seu Estado colonial e do seu exército agressor, ainda administrante das ilhas de Cabo Verde e ocupante de uma pequena porção do solo sagrado da nossa terra firme da Guiné, incluindo da sua capital Bissau e dos seus outros importantes centros urbanos.
Consternado,
ficas pesando as faúlhas das pelejas,
a sua estranheza entranhada
na insondada História das nossas
ilhas crioulas afro-atlânticas,
consciencioso,
ficas sopesando as eventuais cores
ouro-verde-rubras da repulsa e do vitupério,
da desesperança na balança das mitologias
e dos seus sumo-pontífices, das suas dissensões,
das suas desnorteadas geografias, das suas
antigas raivas desenterradas das passadas
desavenças das guerras coloniais de pacificação,
das suas trocas de palavras inflamadas,
desembocando demolidoras e difamatórias
nas silhuetas dos rios atiçados
de ódio e de ressentimento,
navegando nas praças repletas
de entusiásticos regozijo e alegria,
atingindo caluniosas os rostos pardos
dos homens e das mulheres das ribeiras
envoltas em pranto, remorso e consternação,
depois revolvidas em alívio, depois
sussurrantes de orgulho e gratidão,
depois devastando as efígies dos guardiões
dos cemitérios, dos coveiros das contemporâneas
ossadas dos comandos africanos e de outros
vilipendiados mercenários da pátria lusa,
e de outros sofisticados guerreiros aliciados
pelo fúnebre odor do sangue e da impunidade,
e de outros verdadeiros e supostos colaboracionistas
do mais velho e obsoleto dos impérios coloniais,
amaldiçoados pela veemência da derrota,
sua e dos seus tempos dos gritos desventrados
das mulheres grávidas de pano preto,
sumariamente executados em praça pública,
no sigilo dos matagais, na inconfidência
dos cárceres improvisados e nauseabundos,
e com outros pronunciados fautores
da discórdia, da dissensão e do morticínio
fuzilados sem o devido processo penal,
abruptamente e sem julgamento prévio
retirados do mundo dos seres vivos
e da comunhão com os homens justos
por deliberação unânime e por aclamação
do Conselho Executivo da Luta, depois
sufragada pelo Conselho Superior da Luta,
efusivamente aplaudida pelos militantes do Partido
dos vencedores da guerra na nossa terra
da Guiné, ainda em transição para a paz
e em estado de prevenção revolucionária,
e com outros estropiados congeminadores
do dissídio e do litígio, e com outros conspiradores
implicados no bárbaro assassinato do nosso Líder Imortal,
e com outros actores, autores e fautores das muitas tentativas
de invasão e de derrube do nosso regime progressista,
reiteradamente a soldo das sórdidas e repugnantes
forças do neocolonialismo, do imperialismo
e da sempre contrafeita reacção internacional,
da nunca satisfeita contra-revolução mundial,
e com outros antigos e convictos responsáveis
da muito flagelada e sacrificada Zona Zero
das combativas estruturas clandestinas
do nosso grande e heróico Partido libertador,
e com outros (in)gratos beneficiários das comutações
de penas de morte em penas de prisão perpétua
em razão das políticas humanistas de clemência
e de recuperação do homem para uma vida digna
pensadas, propugnadas, difundidas e concretizadas
pelo nosso Partido e pelo seu genial líder Amílcar Cabral
e alavancadas desde o glorioso I Congresso de Cassacá
contra a assassina arrogância, as cruéis posturas
e o mercenário militarismo dos senhores de guerra
infiltrados nas fileiras patrióticas e revolucionárias
dos militantes armados do nosso partido
e de outros melhores filhos do nosso povo,
e com outros perpetradores da desunião
das hostes cerradas do nosso povo em luta,
uníssono na implementação dos altos
e generosos ideais humanistas
do nosso grande e invicto Partido
e dos seus verdadeiros e autênticos
militantes, dos seus anónimos combatentes
tanto da nobre, inalienável e imprescritível causa
de libertação bi-nacional quer dos povos irmãos
da Guiné e de Cabo Verde e dos demais povos africanos
subjugados pelo saloio e sórdido colonialismo português
como também pelos valores e pelos desígnios mundiais
consignados na Carta das Nações Unidas e em outras
pertinentes resoluções e declarações da ONU
tal a Declaração Universal dos Direitos do Homem
comungados pelo nosso saudoso Líder
para a concretização da justa aspiração
do nosso povo à construção na paz
do progresso social e da felicidade
para todos os seus filhos nas nossas
terras africanas da Guiné e de Cabo Verde,
conforme continuamente difundiam e asseveravam
conforme peroravam os discursos oficiais da época
e nos termos devida e tempestivamente registados
nas reportagens e nos noticiários radiofónicos
captados no país irmão e reproduzidos ipsis verbis
e literalmente no seu tom inequivocamente dissuasor
nos jornais oficiosos Nô Pintcha e Voz di Povo,
nas revistas partidárias O Militante e Unidade e Luta,
na Radiodifusão da República da Guiné-Bissau
e na Emissora Oficial da República de Cabo Verde,
nos boletins mimeografados, nas folhas policopiadas,
nos murais e jornais de parede dos comités do Partido
e das organizações sociais e de massas, em especial
da organização juvenil de vanguarda do partido,
a Juventude Africana Amílcar Cabral (JAAC),
e das suas muito activas Secções Estudantis
nos poucos Liceus dos nossos Países e nas muitas
Universidades dos Países amigos e solidários dos nossos
Estados livres, soberanos, independentes e não-alinhados.
Compreensivo,
ficas perscrutando
as faces enrugadas
dos comandantes islenhos
retornando às agruras
dos tempos impacientes
da luta político-militar
conduzida com denodo
em terra alheia, irmã,
das suas repercussões
alongando-se ditirâmbicas
sobre os tempos actuais
da pacatez e da legendária morabeza
dos moradores das ilhas de Cabo Verde.
Calado e apreensivo,
ficas contemplando
as virtuais cores verde-oliva
das vestes escuras preventivas
dos antigos combatentes e comissários políticos,
exilados em terras estrangeiras, hospitaleiras,
treinados e fortalecidos
entre povos amigos, aliados,
acolhidos e ajuramentados
ante a continência da mão
generalíssima de Amílcar Cabral
para a aventura da Operação Esperança,
do aguardado desembarque armado
na nossa terra africana do meio do mar,
para a eventual implantação
e disseminação de focos guerrilheiros
entre os camponeses da Serra Malagueta,
do Topo da Coroa, do Monte Gordo,
dos Engenhos, da Chã das Caldeiras,
depois traídos pela denúncia desertora
de um antigo companheiro recrutado
pela polícia política colonial-fascista,
depois mobilizados e levados
para a inexorável fraternidade
de armas, sangues e idiomas
com os heróicos Combatentes
da Liberdade da Guiné-Bissau,
conforme consignado,
conforme escrito, lavrado
e repetidamente reiterado
nos notas e nos ofícios confidenciais,
nos relatórios reservados e ultra-secretos
dos responsáveis e dos agentes das polícias políticas
e de diversos e múltiplos serviços de contra-inteligência
dos estados-maiores das forças colonialistas e imperialistas
então em confronto nos movediços terrenos das duas Guinés
contras as forças anti-imperialistas de libertação bi-nacional.
Compassivo,
ficas intentando
pôr-te no seu lugar heróico,
todavia trágico e solitário,
e injectar-te da turbulência
das suas máscaras abandonadas
aos auspícios da defecação
do secreto fel das sonegadas
turbulências e das ocultadas
estórias da História,
da desinibida exposição
da vileza e do pus dos tempos,
das incicatrizadas feridas
das tardes de Ziguinchor,
dos seus nervos desiludidos
vindos dos dias de Conacry,
das suas gestas e gentes solidárias,
das suas díspares intentonas,
das suas inúmeras inventonas,
das suas noites torcionárias,
dos seus insalubres pesadelos,
dos seus dias fúnebres,
das suas pressas carcerárias,
dos seus torturados silêncios,
dos seus persistentes rumores
deambulando pelas esquinas das ruas,
explodindo na sua eterna noite de pranto,
ainda carpindo, voraz e retrospectiva,
sobre as sombrias instigações para
o genesíaco fratricídio, à deicida
vilania, ao horror homicida,
de Amílcar tombando,
de Abel Djassi dando-se
em sacrifício na noite de Conacry,
de Amílcar três vezes baleado,
de Amílcar por três vezes
se redimindo da alheia falta
na nocturna mesa das macabras
celebrações, na tardia indigestão
dos comensais do azedo
e aviltante pão da ignomínia,
de Amílcar Cabral transfigurando-se
em Moisés negro da vara sagrada
dos mandamentos da dignidade,
do inesgotável manancial da liberdade,
da terra prometida gizada,
não mais repisada
pelos pés lavradores
dele, Abel Djassi,
não mais gozada
pelas mãos generosas
dele, Amílcar,
não mais tocada e acarinhada
pelo corpo verdejante
dele, Abel,
da terra prometida antevista,
dele, Amílcar Abel,
por três vezes
instituindo-se chama fraterna,
inextinguível, da veracidade
dos tempos premonitórios
dele, Isaías revelando-se
nas palavras proféticas dele,
Amílcar Lopes Cabral,
cumprindo-se nos estalidos letais
das cápsulas da morte
dele, de Abel Djassi
dando-se em holocausto
ante o sacrilégio do Kaifás Kani Pilatos
da expurgação do Emanuel nosso,
do messianismo dele, Amílcar,
Messias negro dos Rebelados de Santiago
entre as mãos irresolutas do Caim
da ocasião propícia, repelente, irrepetível,
repetida entre os lábios do Judas Cani
do amaldiçoado momento comprado,
com o perdão e o beneplácito dele, Amílcar,
das cordas insolentes do desencapuçado
e frustrado captor, do fatigado monóculo,
da delinquente e longínqua proficiência,
da espancada delação frutificada
com o fascínio do amo e senhor carcereiro
entre as sombras muradas do concentracionário
e famigerado presídio de Chão-Bom do Tarrafal
da ilha de Santiago no arquipélago de Cabo Verde,
rejeitados,
dos tortuosos caminhos que navegam
amarrados de Conacry a Bissau,
rejeitados,
da forca simbólica, do impávido gume
do infinito vilipêndio aguardando
nas calçadas amordaçadas
da Capital do Império agónico,
rejeitados,
das multidões ignaras ululando
sobre as pedras frias do Rossio de Lisboa,
rejeitadas,
da rejeitada evidência da nova nobreza
e da plebe de sempre, da canalha toda rindo-se
do corpo enforcado do Rei da ilha de Santiago,
do orgulho capturado, dos olhos atónitos
do Rei Vátua exilado numa ilha das imediações
dos mares e das terras das batalhas libertadoras
do Marechal Negro Tricolor, enganado
e feito prisioneiro na Bastilha escravocrata,
das cadeias tenebrosas, do cárcere cerimonioso,
da coroa de espinhos traiçoeiros,
rejeitados,
prefigurando a paixão dele, Amílcar,
vertical na honra e na ternura,
radical na observância dos princípios,
aceso na recusa do rebaixamento dele,
Amílcar, oferecendo-se
Cristo negro à polvorosa cruz,
ofertando-se à lança lancinante,
avessa às cores pan-africanistas
da igualdade, da liberdade, da fraternidade,
asfixiante das vestes da soberania,
de Inocêncio Kani, Momo Touré,
Aristides Barbosa, Mamadu Ndjay,
João Tomás Cabral, Koda Nabonia,
Inácio Soares da Gama, Saido Baldé,
Baciro Touré, Malan Nanco, Bacar Cani
e de outros vivos mortos, e de
outros futuros mortos morridos,
irrecuperáveis para o Panteão
da Nacão Africana forjada na Luta
e da Pátria Africana futura e una,
inermes para a História,
todavia salvos para o limbo,
para os ignóbeis resquícios,
para a pequenez dos sinistros rodapés
do paradoxo conspurcando
o memorial das criaturas valorosas,
todavia irreparáveis para a inocência,
dele, Amílcar traído e interpelado
pela raivosa impotência
de antigos companheiros de armas
aliciados pela parva moeda da ambição,
desmesurada, de uma pátria vil e pequena,
mercenária, adulterando a paixão dele,
Amílcar entregando-se à eternidade
das cores ouro-rubro-verdes
da bandeira da unidade e luta,
da estrela negra tremeluzindo,
futura e opulenta, nos céus soberanos
da Guiné e do Cabo Verde dele,
Abel Djassi, Cristo africano erecto
agonizando em Conacry,
para a redenção dele,
Amílcar Cabral, luminosa flor
defumada em lume de ouro,
riso perfumado na prata
e no incenso do odor
das estrelas da liberdade,
no seu canto cativo da glória,
na perenidade da palavra justa,
imorredoura dele, Amílcar Cabral,
estatuíndo-se Morto Imortal,
possuído pela paixão de uma Pátria
à medida inconspurcável e inalienável
da dignidade da pessoa humana,
à imagem e semelhança dos homens,
africanos livres do sonho libertário
dele, Abel Amílcar Djassi Cabral,
da casa e da semente fecunda
de Juvenal Lopes da Costa Cabral,
da adoptiva genealogia das gentes dos Reis Borges
da rebelde Achada Falcão de Santa Catarina,
do parentesco dos Lopes Cabral e dos Costa Lopes
da insubmissa Ribeira dos Engenhos de Santa Catarina,
da raça negra heróica do nome denunciando em Londres
o indescritível desmazelo da vil condição de colónia,
do apelido ressuscitando com o corpo indómito
do primeiro combatente caído em Tite,
para sempre Comandante Rui Djasssi,
da gerada e ressuscitada luminosidade
da família Lopes Cabral,
gerando-se nome único,
criando-se nome singular
dele,
da generosidade do umbigo
enterrado com o verde dos mangais de Bafatá,
da primeira infância em terra firme africana
dele,
da segunda vida repleta cobrindo-se
do verde mar das ilhas
dele,
maravilhando-se com os cajueiros
da plena maturidade no mundo
dele,
da fecundação do abraço fogoso
materno da terra natal
dele,
engenheiro da lavra
e dos sonhos das gentes
dele,
da universalidade nos augúrios fraternos
dos povos combatentes deste vasto mundo
dele,
dos tempos todos do simples africano
que quis cumprir o seu dever
e saldar a sua dívida
para com os seus amados povos
e plenamente viver a sua época
dele,
da ampla e nominada descendência
de príncipes, reis e imperadores negros,
de audazes e sagazes guerreiros africanos,
de chefes resistentes e generais ilustres,
tais Aníbal Barka, Amílcar Barka,
Sundiata Keita, Samory Touré,
Abdel Kader, Meneliki,
Al Mahdi, Shaka Zulu,
dele,
da fertilizada camaradagem
de sábios e locutores de todos os recantos
da palavra incisiva e libertadora
dele,
da inexpugnável irmandade
com a humilde e anónima
humanidade, toda e inteira,
dele,
do aquoso carinho materno
de Iva Pinhel Évora
e do seu umbigo semeado em Godim
da ilha de Santiago do Sotavento caboverdiano,
de apelidos tracejados nos pastoris areais
da ilha da Boavista do Barlavento caboverdiano,
de suor derramado nos trabalhos e nos dias
de Bafatá, Assomada, Praia, Mindelo e Bissau,
dela a um tempo Eva e Maria,
mater dolorosa da pátria e da pietá,
do seu folhoso regaço,
doravante vazio,
das suas vestes lenhosas,
ainda lacrimejando
na noite de Conacry,
dos seus fantasmas emboscados,
ainda redivivos,
dos seus dias albinos,
dos seus deuses despigmentados,
das suas gentes chorosas,
alvas nas túnicas brancas
do luto e do estádio lotado,
nas exéquias e em outras
cerimónias fúnebres
do menino da sua mãe Iva,
na purificação
do menino da sua mãe-terra,
Guiné-Cabo Verde,
do menino chorado
pelos meninos do chão natal
das suas duas mátrias,
do menino velado pelos meninos
da sua mãe de criação,
a Terra toda e inteira
de todas as criaturas humanas,
das cabras, dos touros e das panteras,
de todos os seres vivos,
das pedras e das pombas,
de todos os seres inertes e rumorejantes,
do menino em Conacry caído,
na sua noite atordoada,
nos seus tumores ainda corroendo-se
nas intrigas políticas, nos golpes palacianos,
nas diurnas e nocturnas execuções sumárias,
nas soturnas eliminações físicas,
na sempre (in)tempestiva excomunhão
de adversários políticos e inimigos ideológicos,
na abrupta destituição de altos cargos
dirigentes no Partido e no Estado,
na consentida expatriação de afectos
e desafectos da família e da vizinhança,
por via da força das armas,
de sangrentos golpes de estado,
de mortíferas conjuras,
ainda e sempre fulminantes.
Silencioso,
ficas escrutinando o teor dos pêsames,
respeitoso,
ficas exaurindo a cor das condolências
apresentando-se de cara levantada
aos Heróis Nacionais do Sahel insular,
pela segunda vez vestidos do negro
retinto das exéquias fúnebres,
pela segunda vez envoltos
do silêncio derradeiro
e distinto do pesado luto.
Pesaroso,
ficas mensurando
os seus rostos lívidos,
doravante entregues
à inumação do espírito profanado
e da alma penada de Amílcar Cabral,
as suas sobrancelhas conturbadas,
todavia tenazes,
doravante entregues
à exumação da memória sagrada
dos inesquecíveis mártires
do país irmão e das ilhas,
dos filhos anónimos do povo guineense
perecidos, inumeráveis,
na luta armada de libertação bi-nacional,
os seus olhos esbugalhados,
doravante entregues à autópsia dos mitos
e à dissecação da alma sangrada,
todavia imorredoira, do Herói do Povo,
da sua fronte alta e nua,
da sua súmbia icónica,
da sua silhueta carismática,
da sua capa esvoaçando
com os rumores das matas
livres, militantes, cativantes,
dos seus lábios grossos,
banhados na fraternidade dos povos,
exercitados na arma da teoria,
dos seus ouvidos cingidos
pela sensatez e pela sabedoria,
dos seus óculos escuros
delineados e marcados
pelo fecundo e produtivo brilho
das florestas africanas impenetráveis,
das suas lunetas metálicas
sopesando e reflectindo,
indagando e questionando
a luz fluorescente dos areópagos internacionais,
a luz ondulante das bolanhas das duas Guinés,
a luz ofuscante das savanas do Mali e do Senegal,
a luz faiscante dos desertos da Argélia, da Líbia,
do Marrocos, da Tunísia, da Mauritânia, do Egipto,
a luz ampla das cidades do Sahel,
a luz azul das urbes do Mediterrâneo,
a luz calorosa e ovacionante
de Havana e de Santiago de Cuba,
a luz toda de Adis Abeba e Dar-es-Salam,
a luz gelada, todavia auspiciosa,
de Moscovo, Bucareste e Berlim,
a luz branca de Praga e Budapeste,
a luz oblíqua de Pequim,
a luz baça de Londres,
a luz ambígua de Paris e Nova Iorque,
a luz fosca e carinhosa
das cidades da Escandinávia,
as luzes todas do mundo viajado,
fraternas da sua biblioteca
deslocando-se
entre as narrativas dos griots
e os provérbios das finaderas,
dos seus dois torrões amados,
das suas duas almejadas
soberanias populares
irrompendo súbitas
no concerto universal das nações
livres e independentes,
dos seus Estados proclamados
pelos povos solenes e soberanos
na antecâmara limpa de escombros
e passados desentendimentos,
nos umbrais referendados
da sua pátria africana futura,
pensada una e solidária,
os seus deliberados esquecimentos,
as suas calculadas amnésias,
doravante entregues
à flagelação do pesadelo,
às labaredas do impossível olvido,
à causticação dos maus agoiros
e das brumas da morte,
às intermináveis querelas
dos outrora festejados
companheiros de luta,
às insolúveis controvérsias
dos antigos camaradas
de armas e de ideários,
às inultrapassáveis contendas
dos irmãos desavindos
postados sobre a turbulência
e o atrito dos corpos separados,
dos corações desfalecidos,
dos estados de espírito litigiosos,
das amargas disposições das almas,
doravante secessionistas
da pátria dantes germinando
das sombras lacónicas
da luta recordada,
dos esporádicos abraços pós-coloniais
dos nossos Estados-nação africanos
outrora sublimando-se irmãos,
das nossas Repúblicas oeste-africanas
livres, soberanos e independentes,
outrora sonhadas gémeas
enternecendo-se entretecidas
em laços duradouros e indissolúveis,
outrora erigidas inexpugnáveis
sobre os ecos da lonjura,
das orografias relevando-se
complementares,
das águas desencontradas
das nossas terras africanas
da Guiné e de Cabo Verde,
doravante definitivamente
libertas uma da outra.
Aliviado,
ficas dissecando
os tempos da gratificação,
Insípido,
ficas des-ocultando
os inóspitos bastidores da tristeza,
Intrigado,
ficas revisitando
os camarins das lágrimas
e das mágoas passadas,
Frio,
ficas desvelando
o teatro das aparências,
das difundidíssimas parábolas bíblicas
reiterando a inelutável transitoriedade
dos tempos de todas coisas sob o sol,
das instrutivas lições da História
asseverando a inevitável reversibilidade
dos sentidos inoculados pelos Deuses,
os mais ternos, os mais omniscientes,
e pelos seus profetas e apóstolos,
os mais perenes, os mais eternos,
e versados pelos homens, os mais atentos,
os mais teimosos, os mais astuciosos,
os mais fecundos, os mais sábios,
os mais dúbios, os mais adivinhos,
assim também
da fraternidade forjada na luta
e na comunidade de aspirações
e dos projectados interesses dos povos,
dos mistérios, das maldições, das mistificações
da dita unidade entre o cavalo e o cavaleiro,
do lento estertor da chantagem política
por mor dos muitos corpos heróicos finados
para a História e para a Honra e a Glória
dos Povos da Guiné e de Cabo Verde,
dos Povos da África e do Terceiro Mundo,
das criaturas todas de Deus e da Humanidade,
da verberação da vassalagem
ante a militarista megalomania
dos antigos militantes armados do nosso Partido,
dos valentes responsáveis das zonas libertadas
e das regiões militares então em disputa
na nação africana forjada na luta,
dos celebrizados comandantes
da longeva guerra de guerrilha,
dos grandes militares agraciados
pela indomável bravura em combate,
dos Comissários de Estado perspicazes,
dos Comandantes de Brigada Primeiros
Comandantes, Comandantes e Coronéis,
doravante alevantados depois graduados
em Marechais, Generais e Almirantes,
Ministros e Conselheiros da Revolução
e do livre comércio do chão de cadáveres
e das insígnias da nação africana forjada na luta
vituperada nas lutas intestinas pelo poder do mando
e alcandorados ao poder supremo do Partido e do Estado
da ex-República irmã, do país irmão de sempre,
para o ajustamento dos medos e dos pressentimentos,
para o reajustamento dos desastres e dos bolores,
para a predicação dos ressentimentos
de há muito inoculados na carne dos tempos,
para a mitigação dos sonhos
e das utopias de outrora,
dos seus fantasmas elementares,
para a subtil decapitação
dos seus heróis preliminares,
do merecimento da sua vida e obra,
das suas palavras exemplares,
sempre precursoras,
dos seus gestos e actos,
sempre lavradores do futuro,
ainda e sempre acompanhando
os passos e as afrontas de Apili,
ainda e sempre convivendo
com a gentileza e a audácia do povo,
das suas imprevidentes erupções de fastio
das suas intermitentes e súbitas irrupções de cólera…