Rosto soberano - primeira estação (segunda variação)
À memória dos meus irmãos Rui (Miguel), Benny, Orlando e Nhonhô e dos meus sobrinhos Djei (Guei) e Samory; Aos meus filhos Z´hay e Sven e aos meus netos Ramon, Júlia e Lurdes; Aos meu irmão David e às minhas irmãs Mariazinha, Tuginha e Lurdes; Às minhas sobrinhas e sobrinhas-netas e aos meus sobrinhos e sobrinhos-netos
1
De mim se foram:
Dois amores
Ainda lavrando-se
Em nostalgia e saudade
Que em belos filhos meus
Se revêem e me remiram
E um terceiro amor
Que foi prima e clandestina corda
Das mais líricas e prazerosas
Do violão da minha paixão
Da minha devastada solidão
E da minha solícita desolação
Todavia mantida incólume e indemne
Na sua feminil madureza de mulher
Se bem que sedenta e faminta de mim
Do meu corpo todo na sua inteireza
Três cidades (uma delas
De nenhures anónima habitante
Estância apenas da fértil imaginação
A minha e a da minha geração)
E dois países jugulados
pelos ventos da História
Que subitamente foram
Atroz e trémula semente
Do seu esplendor e da sua ruína
Da sua decadência e da sua queda
Em perene e instintiva demanda
Dos ínvios caminhos da liberdade
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De mim ainda se foram:
Uma pátria africana unida
Sonhada fraterna justa e solidária
Estirando-se forte destemida e utópica
Ampla e fantasmaticamente espartilhada
Na lata dispersão e na vasta lonjura
Das opulentas terras firmes continentais
Da parcela crioulófona e lusófona
Dos antigos Rios da Guiné do Cabo Verde
Ao sequioso arquipélago meso-atlântico
Com a sua estrela negra primordial
As suas cores ouro-verde-rubras
As suas fecundas redemptiom songs
Ecoando na nação afro-crioula soberana
A sua memória da terra dos nossos avós
Ressoando nítida na pátria africana amada
Do meio do mar transfigurando-se
Num Mar Caribe no Atlântico
Uma pátria islenha singela e singular
Sonhada crioula e afro-atlântica
Nutrida e envolta por um hino
E por uma bandeira e pelas suas
Fundantes cores ouro-rubro-verdes
Com a sua espiga de milho nutriente
Com a sua concha do mar nosso insular
Com a sua estrela negra e a imperecível
Efígie do nosso maior Morto Imortal
Estatuindo a germinação marítima primeira
Do primordial e exaustivo cântico do habitante
Depois desapiedadamente afogados
Depois impiedosamente sepultados
Pelo deturpado e mimético azul
Da falsa profecia de uma pátria outra
Do meio do mar configurada como
Um serôdio arquipélago macaronésico
Uma subserviente nação luso-crioula
Uma região ultra-periférica da Europa
À deriva num Atlântico mediterrânico branco
De feições ostensivamente luso-tropicais
E matrizes político-culturais e civilizatórias
Exclusivamente judaico-cristãs ocidentais
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De mim também se foram
Para em mim em melancolia
Para sempre permanecerem:
O pai muito cedo predestinado
Ao mistério da morte e à parição
da minha precoce orfandade
A mãe quase centenária parturiente
Da minha inextinguível saudade
Lacrada na Terra-Longe
Dois irmãos dilectos tangedores
E um irmão predilecto cantor
Da ilha-violão e da alegria
Todos os dias divisadas
Nos finos e intangíveis
Horizontes da Pasárgada
Mais um irmão sempre postado
Nas imprevisíveis arribas
Da valentia e da imprevidênia
Que depois ressuscitaram
E para sempre se finaram
Em dois sobrinhos também eles
Dotados dos dons da temeridade
Depois tragados pelos atributos
E pelos tumultos das noites de insónia
Inoculados pelos inóspitos mundos
Das pandemias sexuais
E dos paraísos artificiais
Por demais armadilhados
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Restam-me
Três e mais netos
Os de agora e os vindouros
Sob a minha distante
Sombra cinquentenária
Um irmão mais velho
Amadurecido para os desafios
E os eventuais desaires
Do seu signo de sagitário
- Que também é o meu-
O tal sábio de muita lábia
Na margem desértica do mar
Todavia inundado dos vaticínios
Da fraternidade e da entrega
Ao seu próximo e semelhante
Legados pelo Jesus Cristo
Dos seus tempos coloniais
Do Seminário Católico
Da Ponta Temerosa
Da cidade da Praia-Maria
E da incansável busca
Da temperança e da sabedoria
Depois em pugna fratricida
Com os gérmens bastardos
Da primogenitura e da servidão
Aos ignóbeis poderes estabelecidos
Depois ainda em silencioso confronto
E em inesperada e vã peleja
Com a maléfica e indeclinável
Inexorabilidade do perecimento
Da memória e da incerteza
Dos seis desalentados sentidos
Mas nunca da serenidade
Da pacatez e da sensatez
Três Marias que são
As minhas irmãs de sangue
E as santas do meu altar
De indefectível fraternidade
Adocicada pelos seus nominhos
E cujos nomes segundos
São santas dos altares
Das multidões devotas
Ao politeísmo católico
Consagrado às Deusas-mães
Dos Deuses cristãos e às Deusas
Da fecundidade e da fertilidade
Uma multitude de raros sobrinhos
E pouquíssimos sobrinhos-netos
E muitissimas e belas sobrinhas
E sobrinhas-netas atarefadas
Cada qual a seu devido tempo
Na emancipação da sua muito
Assumida e feminil condição feminina
E na perpetuação da honra e da glória
Do nome legado pelos nossos e seus
Legítimos ancestrais paternos e maternos
E da memória e da decência herdadas
Dos nossos e dos seus legítimos
Antepassados maternos e paternos
Um país em busca
Do seu verde nome
Ou, melhor, do verde
Lacrado no seu nome
Ou, muito melhor ainda,
Do lugar verde imaginado
Lavrado e ajuramentado
Com o seu inoxidável nome
No sonho do poema de amanhã
E um destino exumado
Do basalto das ribeiras
- Da sua promessa de humidade -
E da inaudível voz fermentada
No sangue e na lavoura dos séculos
Para em poesia se metamorfosear
E incrustar-se em ti
Nos meigos interstícios
Nos afagos do teu corpo
Luzindo sobressaltado
Com as minhas mãos avassaladoras
Vassalas de ti do teu rosto soberano
Resta-me o delírio
Do teu rosto soberano
Suserano de mim
Vassalo do meu coração
Da sua anti-agonia…