Segunda Parte: A moderna transfiguração nacionalista e pan-africanista do slogan nativista a África aos africanos

2.1. Municiados com as reflexões leninistas sobre a questão nacional e a questão colonial e sobre o imperialismo, entendido enquanto estádio superior e derradeiro do capitalismo e especialmente analisado nas suas manifestações financeiras e monopolistas de estado e na sua expressão dominadora, espoliadora e opressiva dos povos colonizados e semi-colonizados na forma de dominação imperialista, e as fundamentadas lições e ilações nelas ínsitas sobre a questão colonial e a questão nacional, todas devida e criticamente assimiladas por Amílcar Cabral; munidos com as consequentes conclusões referentes ao pan-africanismo político saído do Congresso de Manchester de 1945 pela voz de Kwame Nkrumah, com o veemente anti-colonialismo da Conferência de Bandung, com as experiências chinesa, vietnamita, argelina e cubana referentes à condução de guerras de libertação nacional e social de longa duração; armados ademais com os ideários nova-largadistas de consciencialização política e de catarse cultural de matriz nacionalista pan-africanista, os modernos apóstolos e émulos do nacionalismo caboverdiano encetariam, a partir dos anos quarenta e cinquenta do século passado, a transfiguração do slogan nativista A África aos Africanos (como já referido, proclamado por Eugénio Tavares durante o seu exílio norte-americano para a conclamação dos seus conterrâneas para a solução dos interesses maiores da sua terra por via da autonomia político-administrativa no quadro do Estado português e do seu império colonial, desejavelmente reorganizado nos ditames do direito de auto-determinação de populações autóctones ditas civilizadas), despindo-o todavia das vestes, das conotações, dos contornos e dos conteúdos semânticos que remetiam o termo africano para uma regionalidade geográfica e cultural luso-ultramarina radicada nas ilhas e/ou nas terras firmes do império colonial português situadas em África. 

A conclamação proto-nacionalista e a proclamação pan-africanista de Eugénio Tavares, comungado pelos demais nativistas caboverdianos, serão plenamente assumidas pelos modernos nacionalistas pan-africanistas caboverdianos, devidamente nutridos de propósitos de inequívoca ruptura anti-colonial e de integral reivindicação da identidade nacional crioula do povo caboverdiano, incluindo das suas matrizes afro-negras e de todas as suas facetas, vertentes e dimensões afro-crioulas, numa coerência de funcionalização política da identidade crioula peri-africana do povo caboverdiano que, já no período pós-25 de Abril de 1974, também avassalaria e submergiria as derradeiras reminiscências do regionalismo político adjacentista/regionalista neo-claridoso, constante do opúsculo Cabo Verde e o seu Destino Político, de Henrique Teixeira de Sousa, editado pelo autor no imediato pós-25 de Abril, em Junho de 1974. 

A identidade antropológico-cultural caboverdiana é, por sua vez, entendida como emanando de uma cultura nacional, auto-referente, conquanto dominada pela cultura colonial portuguesa, na medida em que a dominação colonial portuguesa mantém necessariamente dominado o processo histórico do povo que, no bojo da sociedade colonial-escravocrata erigida nas ilhas de Santiago e do Fogo, inventou a crioulidade enquanto expressão da mestiçagem e da fusão culturais das culturas afro-negras e euro-ocidentais chegadas no século XV ao, antropologicamente virgem e deserto, Novo Mundo representado pelo arquipélago atlântico peri-africano, aprisionando o nascente povo afro-crioulo caboverdiano na sua subalterna inserção nas malhas opressivas do sistema colonial e sufocando todas as potencialidades do pleno desenvolvimento da sua cultura, na medida em que mantinha sufocadas as suas forças produtivas e respectivas sinergias motrizes e energias criadoras. 

Cidade Velha, SantiagoCidade Velha, Santiago

Deste modo, considera Amílcar Cabral que, no contexto do sistema colonial vigente por mais de cinco séculos em Cabo Verde, sobrevém uma contradição fundamental antagónica entre a nação-classe caboverdiana, constituída por todas as classes, camadas e categorias sociais arquipelágicas portadoras da identidade crioula nativa característica das ilhas caboverdianas, e a classe colonial, integrada pelos raros/escassos colonos europeus e pelos representantes portugueses do poder colonial (incluindo nos seus aparelhos ideológicos, com destaque para a Igreja católica, apostólica, romana), portadores, disseminadores, veiculadores e defensores da imposição sem partilha nos espaços oficiais do poder colonial da cultura estrangeira portuguesa, como dito anteriormente, historicamente tornada dominante e sempre re-actualizada no seu estatuto colonial privilegiado e opressivo. Nesses seus papéis e funções opressivos, os representantes do poder e da cultura coloniais aliam-se estreitamente aos letrados e funcionários públicos nativos, em especial àqueles colocados nos  mais altos escalões sociais, por isso muito propensos ao assimilacionismo colonial no seu entendimento e na sua interpretação de Cabo Verde como um Portugal crioulo e trespassados pelo ideário de branqueamento da cultura e da identidade crioulas caboverdianas, como, aliás, sustenta de modo convincente e de forma veemente A. Punói (pseudónimo de Manuel Duarte) no texto acima referido intitulado “Cabo Verde e a Revolução Africana”. Como constituíram substância fundamental e intuito expresso e deliberado desse texto, a um tempo panfleto  e manifesto político-culturais, dirigido ao conjunto do povo das ilhas, a contestação e a abjuração das seculares políticas coloniais de assimilação cultural do povo caboverdiano ao povo português e a denúncia dos projectos de reformismo colonial levados a cabo no conjunto do império colonial português (como, por exemplo, a extinção do estatuto do indigenato, o fim dos trabalhos forçados, o fomento da industrialização colonial e o incremento das obras e dos trabalhos públicos), sendo que algumas das reformas coloniais foram pensadas para serem aplicadas especialmente ao arquipélago caboverdiano, como o estatuto de adjacência político-cultural e administrativa de Cabo Verde a Portugal, anunciado, em 1962, durante a sua longa visita de um mês efectuada a todas as ilhas de Cabo Verde (incluindo a (quase) desabitada ilha de Santa Luzia) por Adriano Moreira, então (de 1960-1962) Ministro do Ultramar num dos governos do Presidente do Conselho António de Oliveira Salazar e do Presidente da República Américo de Deus Rodrigues Tomás. Como é sabido, o estatuto de adjacência trazido na bagagem política de Adriano Moreira e oferecido às  elites caboverdianas e às populações das ilhas foi rejeitado por essas mesmas elites na altura constituídas como forças vivas e lideradas pelo engenheiro Humberto Duarte Fonseca por considerarem demasiado tardia e politicamente extemporânea a sua apresentação pelo Ministro português do Ultramar.   

A reivindicação da liberdade de se apossar soberanamente do processo histórico, como realça o discurso cabraliano, será doravante entendida como sinónima tanto do resgate da dignidade africana do colonizado, por demais vilipendiada no seu direito básico de existir segundo a sua própria historicidade identitária e os seus próprios modelos culturais, como também de todos os pressupostos políticos e culturais da produção desalienada das condições de emergência de um ser humano reconciliado com as suas próprias  história e cultura e liberto do estado de subjugação política, do atraso endémico, da miséria, do medo, do sofrimento e da ignorância  resultantes  da dominação colonial e do correlativo subdesenvolvimento crónico das ilhas. (…)

 

2ª parte de “Nativismo, pan-africanismo e nacionalismo caboverdiano - alguns subsídios teóricos para a compreensão da recepção do pan-africanismo e da lealdade bipartida - ou cissiparidade pátrida - entre os letrados nativistas, regionalistas e autonomistas caboverdianos”.

por José Luís Hopffer Almada
A ler | 30 Junho 2023 | Amílcar Cabral, Cabo Verde, nacionalismo, nativismo, pan-africanismo