Cabo Verde- Orfandade identitária e alegada (im) pertinência de uma poesia de negritude crioula (II)

(Im) pertinência histórica e actual de uma poesia caboverdiana da afro-crioulitude e/ou da negritude crioula?

Os especialistas nos estudos da literatura caboverdiana parecem estar de acordo quando, na sua esmagadora maioria, vêm asseverando que pouco eco tiveram na obra dos literatos das ilhas sahelianas anteriores ao movimento político-literário caboverdiano da Nova Largada a negritude e outros movimentos literário-culturais similares, como o renascimento negro norte-americano (Harlem renaissance), o indigenismo haitiano, o negrismo cubano, aliás, amplamente dissecados por Manuel Ferreira, na sua “Introdução” a No Reino de Caliban e n’O Discurso no Percurso Africano, e, mais recentemente, por Pires Laranjeira, no livro A Negritude de Língua Portuguesa.

Tal circunstancialismo deve-se aos acima mencionados constrangimentos ideológico-culturalistas, autenticados e tornados historicamente plausíveis pela especificidade objectiva da configuração étnico-social da sociedade crioula caboverdiana, e pela sua reconstrução ideológico-culturalista e literária, que tomava a mesma configuração por sui generis e inundada de impertinência ontológica e epistemológica no contexto colonial-africano e das diásporas de culturas afro-negras ou afro-europeias, inclusive por Mário de Andrade e Francisco José Tenreiro, organizadores do Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, de que foram excluídos “os poetas das ilhas crioulas”.

Estranho e paradoxal é que tenha ocorrido semelhante situação, não obstante o amplo e aprofundado conhecimento que desses movimentos culturais e dos seus autores e actores mais representativos tinham os letrados caboverdianos, como denotam alguns dos seus escritos e deixam transparecer testemunhos seus. Alguns deles participaram até de modo asaz activo na consecução dos seus propósitos, com destaque para o pan-africanismo cívico e político, como foram os casos daqueles que, como Pedro Cardoso, Eugénio Tavares, Luís Loff de Vasconcelos ou António Corsino Lopes, partilhavam o nativismo com o pan-africanismo, ou os de alguns claridosos, como Baltasar Lopes da Silva e António Aurélio Gonçalves, na fase lisboeta da sua vida, como é amplamente analisado por João Manuel Nobre de Oliveira, no seu monumental A Imprensa Cabo-Verdiana (edição da Fundação de Macau, 1998) e Mário Pinto de Andrade (As Origens do Nacionalismo Africano, Edições Dom Quixote, Lisboa, 1993).

Tal constatação não autoriza, no entanto, à desvalorização e/ou à subestimação, nem à obliteração da pertinência histórica das diferentes modulações africanizantes e negritudizantes na funcionalização político-ideológica emancipatória da crioulidade caboverdiana, bem como dos fortes impacto e ímpeto mobilizadores do nacionalismo africano e do pan-africanismo político e o efeito de catarse e libertação espiritual e cultural que exerceu o projecto da unidade Guiné-Cabo Verde no resgate e no renascimento da matriz africana da cultura caboverdiana e da nossa afro-crioulidade.

É a esses ímpeto e impacto mobilizadores no quadro da funcionalização político-ideológica e pragmático-independentista das várias componentes matriciais afro-negras da nossa identidade e à sua pertinência histórica que fizemos eco nos nossos textos “A poética caboverdiana e os caminhos da nova geração” (revista “Fragmentos”, nos 7/8, Praia, 1989, retomada numa versão bilingue francês-português mais concisa, sob o título “A poesia caboverdiana pós-claridosa-alguns traços da sua arquitectura”, em Cabo Verde: Literatura e Insularidade, coordenação de Manuel Veiga, Edições Kharthala, Paris, 1998), “Homogeneidade e Heterogeneidade da Caboverdianidade” (publicado originariamente no jornal Voz di Povo e depois republicado na revista Fragmentos, nrs 11/15, Praia, Dezembro de 1998).

Pertinência, impacto e ímpeto mobilizadores esses a que não foram alheias as repercussões do combate cívico, cultural e armado do movimento negro (ou afro-) americano e dos movimentos de libertação africanos, inseridos num mais geral revolucionarismo terceiro-mundista, e as influências das culturas do mundo negro, com destaque para a música (em especial, o jazz, o blues e os ritmos afro-caribenhos), a literatura, incluindo a lusógrafa, com destaque para a brasileira de Jorge Amado, e a ensaística de abordagem dos valores e dos problemas do mundo negro, intermediada e veiculada pela “Casa dos Estudantes do Império”, pelo “Centro de Estudos Africanos”, pelas “repúblicas estudantis” coimbrãs, pelas revistas Mensagem e Présence Africaine, e por outras formas de intercâmbio e tertúlia político-culturais nacionalistas e pan-africanistas, vivenciadas pelos jovens intelectuais caboverdianos na capital do império, em Coimbra e outras cidades universitárias portuguesas. Tanto mais, quando se passou a encarar a creoulitude, a mulatitude e outras manifestações da chamada caboverdianidade também como produtos de sociedades coloniais bem como das diásporas afro-ocidentais, produzidas ou dilaceradas pela mestiçagem racial e/ou cultural, e pelas políticas de assimilação às cultura europeias e de repressão, mais subtil ou mais abertamente, das manifestações culturais filiadas na herança afro-negra.

Constitui assinalável testemunho das modulações acima referidas a poesia caboverdiana da afro-crioulitude (e/ou, se se preferir, da afro-caboverdianitude ou da negritude e da africanitude crioulas ou da cabo-verdianitude, como prefere o Professor Pires Laranjeira para designar a fase literária africanizante de contestação política anticolonial), isto é, aquela poesia que referencia de forma positiva, inclusiva e, até, afirmativa, a contribuição da matriz afro-negra na formação da crioulidade caboverdiana, evidencia a presença étnico-cultural e/ou étnico-racial do homem negro ou negro-mestiçado na sociedade caboverdiana e, sem desvalorizar a ocidentalidade da nossa cultura, implícita na construção simbólica e na vivência da nossa crioulidade (enquanto afro-latinidade), considera-a também inserida no vasto “mundo negro”, isto é, naquele espaço cultural onde se situam, em coexistência, em fusão ou em conflito com outras culturas, mormente as de origem europeia, as culturas negro-africanas, afro-negras e afro-europeias da África, das Américas e, cada vez mais, da Europa. No plano político, tal postura culturalista conjuga-se com o pan-africanismo ou o nacionalismo africano, sendo este aspecto de longe mais relevante que uma postura estritamente negritudista que poderia ameaçar a especificidade crioula de Cabo Verde no quadro de uma mais ampla diversidade cultural pan-africana. Desde modo, a africanitude política e cultural comprovou-se como de longe mais produtivo que uma negritude que reivindicasse uma exclusiva negro-africanidade dos caboverdianos ou sublinhasse reivindicações estritamente rácicas no quadro interno da sociedade caboverdiana das ilhas ou da diáspora. A poesia da afro-crioulitide (ou, mais, impropriamente, da negritude ou/e da africanitude crioula, da negro-crioulitude) começou por ser uma poesia que se alimentava da mesma ambiguidade e ambivalência identitárias, características do pan-africanismo nativista, republicano, luso-crioulista e luso-patriota dos letrados caboverdianos, que, para efeitos de análise do assunto em referência, têm em Pedro Cardoso o seu mais insigne representante. Pedro Cardoso, o Afro, apóstolo do socialismo e de Marx, “o mestre venerando”, que, procurando integrar-se na transpátria lusitana (na “pátria monumental portuguesa”, como prefere dizer Gabriel Fernandes), enquanto português de lei e de pleno direito, igualmente combateu pela igualdade entre brancos e negros, pugnou pelo orgulho da África faraónica e esfíngica, da Cartago de Aníbal, da Abissínia (Etiópia) de Menelik e do Negus, da África resistente de Abdel Kader, da raça negra do Haiti alevantada com Toussaint Louverture contra o colonial-esclavagismo, bateu-se pela justiça social e pela disseminação, numa perspectiva positivista, do saber e da instrução, enquanto baluartes da “civilização contra a barbárie” (na interpretação do estudioso americano Russel Hamilton (Literaturas Africana, Literatura Necessárias) e, finalmente, exaltou-se, exultando-se, pela valorização da mátria caboverdiana, da língua e das nossas raízes crioulas, ainda que com muitas reservas em relação às nossas manifestações culturais mais ostensivamente afro-crioulas (como o batuco e a tabanca de Santiago, no entanto recolhidas no seu Folclore Cabo-Verdiano) ou em contraposição às nossas matrizes afro-negras, consideradas gentílicas. A defesa do crioulo e a sua valorização poética mediante a estilização das tradições orais da ilha do Fogo constitui uma das vertentes mais notáveis e assinaláveis da faceta de intelectual de Pedro Cardoso. A poesia em crioulo desse nativista permite detectar as suas preocupações de justiça social e dissecação da componente racialista da conflitualidade social caboverdiana, da altura, como o atestam os textos poéticos publicados, por exemplo, no acima referido Folclore Cabo-Verdiano (re-edição da “Solidariedade Cabo-Verdiana”, Paris, 1986, organizada por Luís Silva com prefácio de Alfredo Margarido).

Neste contexto, é de se destacar a luta extenuante desse grande nativista (o “Langston Hughes caboverdiano”, segundo assevera Teixeira de Sousa em entrevista a Michel Laban no livro Encontro com Escritores-Cabo Verde), desse intelectual considerado como um importante precursor, com António Nunes, do nacionalismo caboverdiano (como, por exemplo, defende Manuel Duarte) pela inclusão cívica e social da componente racial negra da nossa sociedade, particularmente pertinente dos pontos de vista político e histórico-cultural, se levarmos em consideração a exclusão social e a anatemização, como preto-negros, dos mulatos e negros pobres da ilha do Fogo, o derradeiro e quase inexpugnável santuário do racismo da aristocracia branca crioula.

Tal combate inseria, como referido, uma componente de referência pan-africanista e/ou de exaltação e de recorrência rememorativa às glórias passadas da África cartaginesa e da África esfíngica, faraónica e mediterrânica, e do seu crucial papel na formação da cultura greco-latina, bem como o desconforto intelectual e civilizacional provocado pelo jugo colonial ocidental. Ainda assim, não pode o pan-africanismo de Pedro Cardoso obnubilar a sua compreensão dos Negros, no duplo sentido, de raça martirizada que escavou os alicerces do mundo, mas também “do sertão os rudes e tisnados filhos/Almas de neve em corpos de carvão”, necessitados da instrução e das luzes missionárias da civilização cristã e ocidental. Assim, permanecia tal compreensão eivada de preconceitos jacobinos e assimilacionistas eurocêntricos, estigmatizantes da alegada barbárie do homem negro-africano “do mato”, e do dilema positivista- civilização versus barbárie. É o que uma leitura, ainda que breve, de alguns excertos do célebre, mas pouco divulgado, poema “Ode a África” deixa entrever e transparecer: “África minha, das Esfinges berço/já foste grande, poderosa e livre:/Já sob os golpes do teu gládio ingente/ Tremeu o Tibre (…) Entre os antigos já Cartago e Egipto/ Foram empórios de poder e fama/ Por fim caíram… foram-lhe Calvário/ Pelúsio e Zama/ Sim, foste grande, dominaste o mundo; / Mas hoje jazes sem poder sem nada. / E ao férreo jugo das potências gemes Manietada. / Sobre o teu corpo, ó meu leão dormente, /Vieram bárbaras nações pousar; E quais hárpias truculentas, feras, /Nele cevar (…) /Ó Pátria minha idolatrada e mesta, / Quando nos campos de batalha erguias/ Teus estandartes, forte, não sonharas/ Tão tristes dias! / Se foste tu quem acendeu o facho/Que fez da Grécia a Glória peregrina/ Porque hoje vergas para o chão a fronte/ Adamantina?! / (…) Surgi! Erguei-vos desse pó, guerreiros Do Egipto antigo/ E tu, Aníbal, imortal caudilho, / Que a teus pés viste Roma prosternada, Ergue-te e empunha novamente a lança/P’la Líbia amada! / Cavalheiroso Abdel Kader e Negus/ E vós, valentes filhos dos sertões, / A lanças, chuços expulsai-me todas/ Essas nações! / Mas que digo? Antes repousai, guerreiros/Bem-vinda seja a paz, seja Bem-vinda! Longe, canhões a vomitar metralhas/ E a paz infinda! África minha, das Esfinges berço, A voz escuta que te chama e brada:/ “Não vês além erguer-se a madrugada”?/ A amar as lusas quinas ensinai-lhes/ E a orar a Deus na língua de Camões! Breve outros vates ouvireis cantando/ Novos barões/(…) Deixai, deixai que se derrame prestes/ A luz da fé no inóspito sertão,/ E, a par e passo, proligando as trevas/ Ada instrução!/ Missionários mais que heróis ousados, /Sede bem-vindos!Nobres mensageiros/Da Boa Nova por Jesus pregada, Sois verdadeiros!/(…)Chamai seus rudes e tisnados filhos/ -Almas de neve em corpos de carvão /-Como Jesus outrora às criancinhas /Pelo Jordão/ (…) Vós sois, vós sois Pirâmides de Mênfis/de heróicos feitos poema imorredoiro /Em que se gravam dos Mené, os nomes/Em letras de ouro!(..) Rubras de glória, as Águias napoleónicas/ Viste passar altivas, vencedoras…/ E hoje, que é delas? Pó e cinzas, trevas/ Aterradoras! / Cantai, tem cada povo a sua Ilíada! / Cantai da Líbia as sempiternas glórias! / Que pergaminhos há de tão brilhantes/ E altas memórias” (do poema “Ode A África”, publicado na íntegra por Manuel Ferreira (em A Aventura Crioula, Plátano Editora, terceira edição, 1985). Dir-se-ia que o poema se espartilha, dilacerado, entre uma consciência eufórica, rebelde e pan-africanista, que celebra heróis da resistência africana à empresa colonial, como Abdel Kader da Argélia ou o Négus da Etiópia, e uma consciência conformada, manietada pela educação escolar cristão-ocidental e pela inelutabilidade, a inevitabilidade, tida, todavia, por necessária, da colonização “civilizadora” europeia, ou domesticada pelo patriotismo luso e pela crença nas vantagens da disseminação da civilização cristã e ocidental, não pela força das armas, mas pela força persuasiva do cristianismo e da sua “intrínseca bondade”.

Trata-se, pois, segundo Pedro Cardoso, da salvação do homem africano não só da pagã ignorância em relação à doutrina cristã, como também do desconhecimento não só das suas glórias próprias, passadas e do seu contributo para a edificação da civilização ocidental, como também do seu resgate das trevas da barbárie, radicadas, iletradas e pré-científicas, no sertão africano, mas também na glória efémera da altivez dos conquistadores europeus, representados pelas águias napoleónicas, carregadas de orgulhosa fatuidade. Afinal, as pirâmides de Mênfis sobreviveriam à sanha colonial, para testemunhar a eternidade, qual “poema imorredoiro” da “África, das esfinges berço”.

Também de incompreensão e “civilizado distanciamento” é a postura poética de António Pedro perante manifestações da cultura caboverdiana mais ostensivamente afro-crioulas, ou, até de outras, como a morna, consideradas então pela generalidade da elite caboverdiana de todas as gerações como arquetípicas de uma sensibilidade pan-crioula, e irrefutavelmente “nobres”, porque de filiação europeia. Anote-se que, como é natural, ainda não tinham José Ramos Tinhorão e Vasco Martins empreendido os seus estudos respectivamente sobre a origem afro-brasileira do fado e a filiação da morna no lundum, também de origem africana. É o que o seu livro, Diário, fundador, como já referido, da modernidade poética caboverdiana, comprova: o batuque é para o sujeito poético “bacanal”, “dança doida” de “pobres selvagens”, “meneio de ancas e ombros num desvairo”, “bebedeira bamba duma cópula carnal”, em que os passos da “dança dela” (“da negra” imaginada “nua e macia”) extasiam, todavia, o poeta-espectador.

A morna, por sua vez, é considerada “reminiscência de um fado/ que dançado/ num maxixe, / tem a tristeza postiça/ dum cansaço”, “um semi-civilizado/ lasso/ balanço/ embalado/ sobre o ventre dum fetiche” que “bole/ mole, / já velha sem ser antiga, / num compasso de cantiga/ sexual”. Note-se que a visão do batuque não se diferenciava quer da visão dos nativistas, de que são exemplos as palavras de Pedro Cardoso, no Folclore Cabo-Verdiano ou a descrição de um batuque no romance-fundador O Escravo, de José Evaristo de Almeida, quer ainda da sua vituperação pela Igreja, pelas autoridades coloniais e pelas elites urbanas instruídas, à semelhança, aliás, da tabanca, “esse pobre resquício”, como a caracterizou Baltasar Lopes, em “vias de extinção” devido à sua “anatemização como reminiscência africana selvagem”, como refere o poema “Reminiscência” de Virgílio Pires para caracterizar a ambiência de perseguição que envolvia as tabancas das Achadas da Cidade da Praia, nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, ambiência essa também referida, de uma forma genérica, por Manuel Duarte no texto/panfleto político de A. Punói, acima referenciado. Mesmo no que se refere à morna, estilo musical que, como assevera João Manuel Nobre de Oliveira (“A longa costela cabo-verdiana de António Pedro”, “Artiletra”, nr 39/40 de Outubro/Novembro de 2001), ele muito prezava na voz “lisboeta” de Titina Rodrigues, o poeta não deixa de ressaltar, com os meios estéticos ironizantes do surrealismo, as suas semelhanças, melancólicas e saudosistas com o fado, sem deixar de relevar o que tem de especificamente caboverdiano, nomeadamente a sensualidade da dança, de sabor afro-tropical, e o apelo da carne, condenado de forma insistente pela Igreja e pela moral então dominante.

A postura irónica de António Pedro alarga-se ao ambiente racial então vivido na sua cidade natal da Praia (: “Os brancos daqui/ são mais modestos que os pretos:/ os pretos chamam-se pretos, os brancos chamam-lhes gente daqui, /e aqui…/ há brancos e pretos…”), e, até, à sacrossanta chuva: “chuva que bonda!, /chuva que tomba/ -bumba!…./ cheiro a chuva que embriaga…/ chuva que alaga, / e estraga o mar de sol. /Esverdinharam-se os montes/ -um poema!- (…) Eram castanhos os montes/ e as árvores esgadalhadas, /e atormentadas, / e nuas…(…) E os meus olhos cansaram-se, /coitados!, /esverdinhados também (…)”.

Por seu lado, o claridoso Jorge Barbosa, interpretando o homem caboverdiano como “conflito numa alma só/ de duas almas contrárias buscando-se/ amalgamando-se/ numa secular fusão; conflito num sangue só/ do forte sangue africano/ com o sangue aventureiro/ dos homens da expansão; conflito num ser somente de dois pólos em contacto/ na insistente projecção/ de muitas gerações”, denota também uma compreensão da crioulidade caboverdiana como fusão identitária da África e da Europa numa criatura que se mira ao “espelho de Portugal”, mas onde a África, ainda sobreviva, se embacia cada vez mais. Não obstante tal compreensão, Jorge Barbosa não omite no inventário poético das manifestações culturais crioulas, em que se destacam a morna e o seu rosto, o violão, também aquelas expressões culturais ostracizadas pelas elites e pelo poder colonial (como o batuco, o badju’l gaita ritmado pelo harmónio e pelos ferrinhos de Santiago), os tambores de são João), bem como as “vadias”, a “pretinha dos Picos” e outras mulheres, pretas (ou não), socialmente marginalizadas, as coxas ágeis das negras (conjugando-se com o corpo da raparigas morenas), e a mãe embalando a um canto, adocicado pela morna, o menino da cor de ébano. Do mesmo modo, invectiva a segregação racial nos Estados Unidos da América, desvela a tragédia dos homens cativos na nau negreira e dos seres humanos perdidos na desventura e na voragem da História, quinhentos anos após o achamento, refere-se em vários poemas à “ilha saqueada e perdida nos mares do sul” e a uma África negra, que, não obstante ser entendida como bárbara e exótica, uma África dir-se-ia de safaris, onde “artistas de infantis ingenuidades/ talham em pedaços de madeira/ coloridos animais estranhos, divindades, para apetecido tesoiro/ das virgens nuas dos sertões”, é também considerada como repositório de uma vitalidade primordial que a desembaraçaria do jugo estrangeiro, quando soar a sua hora clarim. Numa irreverência que denota sobretudo uma visão progressista e de solidária comunhão com os desprotegidos, com o cabo-verdiano anónimo, humilde, meu irmão, e contrariadora da ideologia e da praxis do Estado Novo português, dá sinais de querer superar a muita resignação e a fininha e silenciosa revolta melancólica que habitavam a paz burocrática do homem que o habitava, a ele que se sonhava poeta panfletário (leia-se revolucionário).

A “heteronímia” subversiva é, todavia, insuficiente para lhe propiciar o corte político-ideológico para a ruptura nacionalista, não obstante as décadas, vazias de realizações e de muito abandono, o meio - milénio colonial de provações, como amiúde denuncia na sua poesia, em especial em textos marcantes como “Casebre”, “Memorial de S. Tomé”, “Meio Milénio”, “Relato da Nau” e “Onde” e no livro Expectativa, postumamente editado. A explicação poderá radicar no capítulo V (“Presença”) do poema “Meio-Milénio, de muita e irreprimível denúncia:” 5 séculos/ de abandono/ e retardado progresso. / Apesar de tudo/ Portugal presente em nós/nos nossos males / nas nossas queixas e súplicas/ nas nossas esperanças /nos nossos anseios. / 5 Séculos / sem eco/ na nossa felicidade. /Apesar de tudo /Portugal presente em nós /pela bondade e ternura/ que nos ensinou/ pela civilização que nos deu/ pelo sangue/ fala/ arrogância /valentia/ virtudes e defeitos/ que nos legou/ pelos distantes rumos/ da navegação e da aventura /que nos apontou/ e porque fez de nós/ humanas e variáveis criaturas/ cordiais e brandas no convívio/ no amor violentas e volúveis. /5 Séculos / não perdemos / a fé e o optimismo. /Apesar de tudo /Portugal presente em nós /no fundo reflectido /do espelho que nos deu/para nos mirarmos/ à sua imagem / (na outra face que o tempo/vai aos poucos embaciando /África ainda/ por nós acenando). / (…) 5 Séculos / e outros /e outros depois. /Apesar de tudo/Portugal presente/nas nossas almas/melancolicamente /eternamente”.

Curioso é também o resgate por Osvaldo Alcântara de manifestações afro-crioulas ou indiciadoras de forte presença da matriz afro-negra, como uma das matrizes do homem crioulo “de depois”, como se verifica no poema “A terra roxa de massapés” (publicado no “Suplemento literário” do “Diário de Lisboa” de 16 de Agosto de 1935): “Cavador crioulo, que fazes /debruçado sobre a terra roxa de massapés? / Que segredos escutas há quatrocentos anos? /Que raízes tenazes te prendem /ao ventre tirano da tua amante, /amortalhada na erva rala das achadas? /Um dia chegaram às tuas ilhas de basalto/ homens de rosto queimado ao sol do mar largo (…) /tinham os olhos povoados de imagens, /imagens de Prestes João, /imagens da terra verde e ouro do Brasil. /Mas as tuas ilhas venceram-nos; envolveram-nos num abraço feito de/ nostalgias /inaugurações /esmagamentos de montanhas… /Semearam nas rochas das ilhas os farrapos das belezas de além-mar perdidas, /para sempre perdidas, /para além, muito para além do horizonte….Mistérios inauguratórios da madrugada colonial…. /Antemanhã de Cabo Verde… (…) Depois, / a terra tingiu-se de dorsos negros / curvados no drama das plantações, / E um gemido secular varou as tuas ilhas (…) Era a angústia, /o banzo /do teu avô da Costa d’ África…/Cavador crioulo /ai o teu avô longínquo/curvado/ na dor das plantações! /Mas logo, /no engenho /na sombra das ribeiras /na extensão rala das achadas, / foi o drama / foram as núpcias / (O ritmo do batuque /perturba /e chama para os ritos eternos do amor…/Cavador crioulo, /que fizeste aos teus velhos deuses? /Xangô, Orun, que te morde na torreira das achadas, /Oxu, que te faz sonhar nas serenatas de violão e cavaquinho, /Iemanjá, que te atrai e mata na sua casa no fundo do mar…/Porque não cantas nos terreiros /malé, malé, assim comba sembelelé? /Que te deixaram? /Tua alma híbrida /presa /ao sortilégio da terra, /à inquietação do mar. /Deixaram-te a herança pesada de depois. / (oh o depois mestiço /nascido /do crepúsculo de hoje /e da madrugada de amanhã )”.

Num outro escrito, “Poema a Jorge Amado”, Osvaldo Alcântara rememora as personagens e expressões afro-brasileiras dos romances de Jorge Amado para estabelecer laços sentimentais e conexões e crioulas entre os dois países atlânticos, construídos sobre idênticas raízes antropológicas. De todo o modo, alguns versos soam inesperados, se nos reportarmos à almejada “diluição de África”, teorizada por Baltasar Lopes, e à escassa recepção da confitualidade socio-racial dos romances nordestinos do então revolucionário Jorge Amado na ficção dos claridosos-fundadores:

“A Jorge Amado esta voz do irmão desconhecido: (…) Para que Zumbi dos Palmares ilumine também /os meninos de ponta-de-praia, os rocegadores de carvão e as velas dos faluchos /e a Princesa de Aioká leve os meus marinheiros para o seu palácio do fundo do mar /Para que o moleque Balduíno pegue novamente as goiabas-de-vez /Finita esteve ouvindo atabaques e gongás no candomblé do pai de santo Jubiabá (…) “. Escreve Arnaldo França que os dois poemas de Osvaldo Alcântara, parcialmente transcritos acima, são “dos mais impregnadamente brasileiros” e, por outro lado, “denunciadores de uma posição do ortónimo de Osvaldo Alcântara, nos últimos anos reforçada, quanto ao carácter euro-africano combinatório, e não de mistura, do homem cabo-verdiano” (“Cântico da Manhã Futura - Comentários”, in Edição Comemorativa do Cinquentenário da “Claridade”, ICLD, Praia, Setembro de 1990).

Em António Nunes, Aguinaldo Fonseca, Guilherme Rocheteau (por exemplo, do poema “Presença de Gilberto Freyre”), Amílcar Cabral (por exemplo, nos poemas “Rosa negra” e “Naus insulares”), Jorge Pedro Barbosa (do poema “Mudjeris di Hoji”), Virgílio Pires (do poema “Reminiscência”) é uma África presente na história e no quotidiano do arquipélago (o avô escravo, a noite tropical, o ritmo do pilão, a mulher negra, a tabanca, o batuco, o fuco-fuco, a perseguição pela igreja e pelas autoridades coloniais de manifestações culturais afro-crioulas, porque alegadamente lascivas, a renegação cultural por efeito de uma suposta modernidade, etc.) que é evocada e invocada. É Aguinaldo Fonseca que escreve: “O meu avô escravo/legou-me estas ilhas incompletas/ este mar e este céu. /As ilhas por quererem ser navios /ficaram naufragadas /entre mar e céu. /Agora vivo aqui /e aqui hei-de morrer (…) /Ah meu avô escravo /como tu /eu também estou encarcerado/ neste navio fantasma /eternamente encalhado /entre mar e céu (…)”.

Para Pires Laranjeira (que presta especial atenção a Aguinaldo Fonseca), “ao publicar alguns poemas negritudistas no livro Linha do Horizonte (1951) Aguinaldo Fonseca torna-se o primeiro poeta caboverdiano a usar a África e o negro como temas propícios a uma leitura de compromisso rácico, num arquipélago e numa cultura que tem passado por intocado pela herança negritudinista” (Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Universidade Aberta, 1995).

Também exumando o passado escravocrata, escreve, por sua vez, António Nunes:

“Bate, pilão, bate /que o teu som é o mesmo /desde o tempo dos navios negreiros, /dos morgados, /das casas grandes, / e dos meninos ouvindo a negra escrava /contando histórias de florestas, bichos, de encantadas… / Bate, pilão, bate /que o teu som é o mesmo /e a casa grande perdeu-se /o branco deu aos negros cartas de alforria /mas eles ficaram presos à terra por raízes de suor. /Bate, pilão, bate /que o teu som é o mesmo /desde o tempo antigo /dos navios negreiros…/ (Ai os sonhos perdidos lá longe! /Ai o grito saído do fundo de nós todos /ecoando nos vales e nos montes, /transpondo tudo…/Grito que nos ficou de traços de chicote, /da luta dia a dia, /e que em canções se reflecte, tristes) /Bate, pilão, bate /que o teu som é o mesmo /e em nosso músculo está /nossa vida de hoje /feita de revoltas!…/Bate, pilão, bate!…”.

(…)

por José Luís Hopffer Almada
A ler | 28 Março 2013 | afro-crioulitude, António Pedro, claridosos, identidade, negritude, Oswaldo Alcântara, Poesia caboverdiana