O meu irmão Nhonhô, por Tuna Furtado Lopes*

  O meu irmão Nhonhô, por Tuna Furtado Lopes*

À memória do meu irmão Nhonhô
À memória dos meus pais António e Júlia, 
dos meus irmãos Rui, Orlando e Benny, 
dos meus sobrinhos Guey e Samory, das 
minhas avós Tuna e Suzana, das minhas tias 
Bia e  Nhara, do meu primo Pira, dos meus 
tios Henrique Furtado Semedo e  Mano Lopes,
do meu amigo Carlos Moreira chamado Carlos 
Nhonhô de Cabeça Carreira
À memória de Pedro Martins, Lineu Miranda, 
Carlos Tavares e dos  demais presos políticos 
do Tarrafal já falecidos
 
Às minhas sobrinhas Nhara Santiago e Frederika 
Santa Maria e à minha cunhada  Maísa Salazar
Ao meu irmão David e às minhas irmãs Mariazinha, 
Tuginha e Lurdes
Aos meus sobrinhos e sobrinhos-netos e às minhas 
sobrinhas e sobrinhas-netas
Aos meus cunhados e às minhas cunhadas, incluindo 
os maridos das minhas sobrinhas e as mulheres dos 
meus sobrinhos 
Em homenagem ao Centenário Natalício de Amílcar Cabral 
e ao Cinquentenário do 25 de Abril de 1974

 

À memória do meu irmão Nhonhô
À memória dos meus pais António e Júlia, 
dos meus irmãos Rui, Orlando e Benny, 
dos meus sobrinhos Guey e Samory, das 
minhas avós Tuna e Suzana, das minhas tias 
Bia e  Nhara, do meu primo Pira, dos meus 
tios Henrique Furtado Semedo e  Mano Lopes,
do meu amigo Carlos Moreira chamado Carlos 
Nhonhô de Cabeça Carreira
À memória de Pedro Martins, Lineu Miranda, 
Carlos Tavares e dos  demais presos políticos 
do Tarrafal já falecidos
 
Às minhas sobrinhas Nhara Santiago e Frederika 
Santa Maria e à minha cunhada  Maísa Salazar
Ao meu irmão David e às minhas irmãs Mariazinha, 
Tuginha e Lurdes
Aos meus sobrinhos e sobrinhos-netos e às minhas 
sobrinhas e sobrinhas-netas
Aos meus cunhados e às minhas cunhadas, incluindo 
os maridos das minhas sobrinhas e as mulheres dos 
meus sobrinhos 
Em homenagem ao Centenário Natalício de Amílcar Cabral 
e ao Cinquentenário do 25 de Abril de 1974


1. Desde que me lembre, o Nhonhô, o Benny e eu sempre fomos muito chegados e unidos. Isso deve-se talvez ao facto de nós os três sermos os filhos mais novos dos nossos pais. Isso determinou que crescêssemos juntos, fazendo o Nhonhô o papel de irmão mais velho com direito a repreender-nos, ao Benny e a mim, e a dar-nos esporádicas caqueradas. Por sua vez, o Nhonhô era sujeito às repreensões e eventuais caqueradas do Lalam (Orlando), o irmão mais velho e um pouco distante de nós os dois mais pequenos e imediatamente anterior ao Nhonhô na linha ascendente e que habitualmente acompanhava o pai na sua gestão das nossas propriedades do Pombal. Os nossos dois outros irmãos mais velhos estavam ausentes, o Rui na cidade da Praia, antes de, em 1972, integrar a grande vaga da emigração caboverdiana para a cidade de Lisboa no Portugal continental e metropolitano de então, e o David no Seminário de São José, também localizado na cidade da Praia, e, depois de sair do Seminário, a trabalhar na mesma cidade-capital da província ultramarina portuguesa e a estudar no seu Liceu , antes de seguir, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, para os estudos universitários de Direito na cidade de Coimbra na então Metrópole colonial, de onde regressaria de férias em 1969 e definitivamente e já cursado em 1973. Na minha lembrança tudo isso teria ocorrido primeiramente na Vila da Assomada para onde a nossa família mudara, deixando o nosso amplo, seguro e aconchegante sobrado e as nossas propriedades de Pombal, tinha eu quatro anos, o Benny seis anos, o Nhonhô nove anos e o Lalam (Orlando) onze anos. Apesar da diferença de dois anos de idade, eu e o Benny tivemos quase sempre o mesmo tamanho, pois que o Benny sempre foi um magricelas a quem todos chamavam Merinha. O Nhonhô também era relativamente magro, ao contrário do Orlando, que, no dizer do Henrique (Dick) Oliveira Barros, que o conheceu já jovem adulto em Coimbra, era um verdadeiro touro que infundia respeito pela sua envergadura. O Lalam (Orlando) nasceu depois das nossas três irmãs Mariazinha, Tuginha e Lurdes, que, por sua vez, seguiram-se ao Rui e ao David, tendo esses dois irmãos mais velhos sido precedidos cada um deles respectivamente por um irmão falecido em muito tenra idade. Enquanto que o Benny sempre foi traquinas e gozão, o Nhonhô distinguiu-se desde muito cedo por ser considerado um rapaz valente e, até, brigão, porque não aceitava abusos de ninguém. 

2. Além disso, o Nhonhô sempre teve muito jeito para o desenho. Por isso, era solicitado pelas autoridades municipais encarregadas da gestão do Cineteatro da Assomada para re-desenhar os cartazes dos filmes que eram exibidos nessa mesma sala de espectáculos e que eram transportados por toda a Riba Somada e, até, Nhagar, denominado Nhaga Baxo por nós todos de Riba Somada, isto é, da vila da Assomada propriamente dito e que incluía a zona de Cutelo, onde passámos a morar depois de termos residido na zona do Portãozinho, perto dos cafezais de Lém Vieira. A denominação Nhaga Baxo deriva do facto de na boca das gentes mais antigas o primeiro e verdadeiro nome da vila erigida no planalto do Mato Engenho ter sido Nhaga (Nhagar) em razão de a nascente povoação ter-se iniciado com a construção de alguns edifícios públicos, entre os quais uma prisão, na actual zona de Nhagar. Por isso, muitas pessoas mais rústicas das ribeiras circundantes do planalto do Mato Engenho continuam a dizer “N sa ta bai Nhaga”, isto é, que vão para Nhagar, querendo dizer que iam para a Assomada.
O efeito pretendido com o calcorreamento das ruas com o cartaz de cinema redesenhado pelo Nhonhô era dar conhecimento a todos os interessados das tão esperadas estreias e matinés dos filmes, exibidos durante a semana em dias certos, entre as 18 horas e as 23 horas da noite, quando se apagava a luz eléctrica jorrada nas casas abastadas e mais remediadas e nos postes colocados nas ruas da vila toda, incluindo Nhagar, graças às habilidades e competências de Nho Mário Patú, assim chamado devido a um defeito seu num dos pés que o fazia parecer um pé de pato e que o obrigava a usar uma bengala para se locomover, sendo que, por isso, ele tinha os pés sempre descalços, apesar de ser um cotado e respeitado funcionário público. Mesmo assim, o nosso pai, um cinéfilo inveterado que, tal como o Sr. Dâmaso Enfermeiro, também chamado Sr Damas da Dona Elisa, não faltava a nenhuma estreia no cinema local, não gostava que nós, os três filhos mais novos, fôssemos ao cinema, em razão das alegadas más influências que os filmes exibidos, habitualmente de aventuras e de guerra, podiam exercer sobre nós. Por isso, o Nhonhô, o Benny e eu esperávamos que o pai saísse de casa para ir ao cinema e depois de ter tomado lugar na parte do cinema reservada às pessoas consideradas como integrantes das elites locais chamada plateia e , por isso, estava guarnecida de cadeiras e, apagadas as luzes do recinto para os devidos efeitos de projecão do ansiado filme, entrávamos no escuro espaço fechado na parte reservada aos pés-descalços e, igualmente, aos meninos, mesmo se filhos de gentes abastadas e remediadas, e chamada geral porque guarnecida somente de bancos corridos. O ambiente vivenciado no cinema e muito marcado por comentários, alertas, avisos, risos, gargalhadas, lamentações e, até, choros, lembrava o ambiente retratado no filme Cinema Paradiso que viria a ver, muitos anos depois, com o meu filho Z’hay numa vídeo-cassete alugada num dos muitos clubes de vídeo que então, nos anos oitenta e noventa do século passado, pululavam na cidade da Praia, era eu já um adulto regressado dos estudos universitários e morador no meu T3 do bairro da Terra Branca com o meu filho Sven e a sua mãe malgache Isabelle Clémence Andriamaheninarivo, minha companheira de muitos anos na Alemanha e em Cabo Verde e minha segunda mãe-de-filho. Atentos aos sinais de que o filme ia findar, saíamos da sala de cinema a correr para casa, ainda a tempo de nos deitarmos e o pai nos encontrar supostamente adormecidos quando chegasse e controlasse se tudo estava em ordem connosco.
O pai era também um frequentador assíduo do muito reservado Clube da Vila da Assomada, o qual funcionava à noite no mesmo edifício onde funcionava o cinema da Vila do Planalto, aliás, ainda existente no centro histórico da actual Cidade da Assomada, por isso pomposamente denominado Cine-Clube da Assomada. No Clube podia-se jogar bilhar, ping pong, dados e cartas, consumir refrigerantes, bebidas alcoólicas, bolos e pastéis e ler o semanário provincial denominado O Arquipélago bem como revistas e jornais vindos do então chamado Portugal Continental com semanas e, até, meses, de atraso. O pai e os seus amigos proprietários agrícolas, comerciantes e funcionários públicos residentes na Vila da Assomada entretinham-se a ler os jornais e revistas e a jogar dados e cartas, enquanto nós, os filhos, já crescidinhos, jogávamos o ping pong, e os mais crescidos, já jovens adultos ou homens maduros, jogavam o bilhar. Mais tarde, a sede do Clube mudou-se para uma casa vizinha servida exclusivamente para o efeito. Era também no Cine-Clube e, depois, na nova sede do Clube da Assomada que eram organizadas as grandes festas do fim do ano, reservadas a alguns poucos privilegiados integrantes das famílias das elites locais normalmente sócias do mesmo Clube.
Nessa altura, o Nhonhô fez desenhos inspirados em figuras típicas e marginais da Assomada e dos seus arredores e em cenas de batuco e de bailes tradicionais de ferro e gaita que tinham lugar em vários recantos mais populares da Vila, como a taberna do Djodje de Nha Donita, durante as célebres feiras das quartas-feiras e dos sábados que traziam multidões à vila da Assomada e que eram marcados por brigas, amiúde resolvidas a lanhos de navalha, como prova da máscula valentia dos intervenientes, comumente chamados de badios brabos pelas gentes da vila da Assomada, muito ciosas das suas supostas urbanidade e civilidade. Foi nessa altura que o Nhonhô também fez retratos a lápis de carvão de grande número dos sócios do Clube da Assomada, incluindo do Sr. Serra, o seu temido e distante presidente e morgado de má fama que chegava à tardinha ao Clube sempre acompanhado da esposa, do filho Carlinhos e do enteado Cacá, todos impecavelmente vestidos e calçados com sapatos fechados e bem engraxados, ao contrário dos outros meninos que ou andavam descalços ou andavam calçados com as famosas e comuns sandálias de plástico, sendo os sapatos fechados reservados para as ocasiões muito festivas e solenes, como as cerimónias de baptizado, de crisma ou de casamento e as subsequentes festas. Eu proprio só passei a calçar-me regularmente com sapatos fechados porque uma minha professora da quarta classe da instrução primária mandou dizer aos meus pais que não me deixava entrar nas aulas se não fosse devidamente calçado. O Carlinhos Serra passava o tempo confinado em casa alegadamente a usufruir dos brinquedos trazidos de Portugal continental onde ia regularmente de férias com os pais e o seu irmão mais velho. De vez em quando, convidava-nos, a nós os meninos filhos de boas famílias, para irmos brincar com ele em casa dos pais. Nunca ou muito raramente participava nos nossos jogos de futebol no campinho da Achada Riba e nas ruas da vila, sempre atentos aos polícias de serviço, nem tão pouco nas nossas brincadeiras de sukundida, sporti-bandido, soldado-cabo-furriel, salta corda, mamá co papá, etc, geralmente feitas à tarde e à noitinha depois de feitos os deveres escolares, os trabalhos de casa e os muitos mandados da nossas mães. Além das terras do Telhal dos Engenhos, o Sr. Serra era dono de um imponnte automóvel preto de marca Impala que parecia navegar nas rectas, em especial na recta de São Filipe, nas imediações da cidade da Praia. Tudo isso mudaria com o decurso do tempo. Ocupadas e nacionalizadas as terras do pai, entretanto falecido, o Carlinhos tornar-se-ia um reputado mecânico casado com uma das filhas-de-fora do Nho Bebeto, um conhecido comerciante originário da ilha do Fogo, como, aliás, grande parte dos comerciantes da Assomada, e que tinha a sua loja instalada dentro do amplo recinto do mercado municipal da Assomada num dos cantos que dava para a rua principal da Assomada. Doravante, o Carlinhos fazia questão de se exibir no automóvel Impala que fora do pai e passear-s nele, acompanhado de miúdas e dos amigos mais chegados. O Cacá, o irmão mais velho do Carlinhos e enteado do Sr Serra, não mais regressaria da ilha de São Vicente onde, depois, foi fazer o serviço militar obrigatório e reencontrou o pai, também assomadense, na cidade do Mindelo, tendo-se integrado na sociedade sanvicentina e constituído família.
Foi nessa época que o Nhonhô começou a desenhar e a escrever histórias em quadradinhos de cowboys e índios, muito apetecíveis na altura. Isso deve-se certamente ao facto de por esses tempos o Nhonhô ter recebido do seu amigo Fausto, então residente em Portugal Continental, centenas de livros de quadradinhos (bandas desenhadas na linguagem actual) que devorávamos ainda com maior e mais inusitada voracidade que como líamos e consumíamos as fotonovelas da Corin Tellado e outras obras cor-de-rosa do mesmo teor que as nossas irmãs compravam ou traziam emprestadas das suas amigas para a nossa casa da Assomada. Com efeito, o Fausto mudara a sua residência juntamente com toda a família, incluindo a sua irmã Amália, minha professora da escola primária, para Portugal Continental em virtude de o seu pai, polícia de segurança pública, ter sido transferido para essas longínquas e míticas paragens então chamadas Metrópole.
Toda essa ambiência, aliada ao facto de a nossa mãe ter sido uma leitora assídua de romances românticos e de aventuras amorosas, de o nosso irmão Rui ter sido um leitor impenitente de romances policiais e de o nosso pai ter sido um leitor diário e atento da Bíblia Sagrada, de jornais e de outras publicações periódicas provinciais e metropolitanas, sobretudo as relacionadas com a agricultura, a sua área de actividade profissional, devem ter contribuído para a qualidade de leitor inveterado em que me fui tornando e hoje continuo a ter o prazer de ser.
As habilidades artísticas do Nhonhô não se limitavam somente ao desenho. Lembro-me de nessa altura ele ter esculpido em pedra vermelha um busto do Rei Dom Carlos I de Portugal que o nosso pai se apressou em colocar sob a mesinha onde estava instalado o nosso grande aparelho de rádio, na altura considerado um autêntico móvel, para que todas as visitas pudessem apreciar e admirar as qualidades artísticas do seu filho Nhonhô. É claro que, com os acontecimentos posteriores e a nossa acelerada consciencialização política anti-colonial, o mesmo busto teve o seu inevitável e irremediável sumiço, à semelhança, aliás, do busto do Infante Dom Henrique primeiramente colocado sobre um plinto nas vizinhanças da Igreja Paroquial de Nossa Senhora de Fátima na entrada da Vila da Assomada pelos lados que vinham da zona da Achada Galego e , depois, na Praça Grande em frente do imponente edifício da Câmara Municipal do Concelho de Santa Catarina.

3. E de repente eclodiu o 25 de Abril de 1974, considerado pelo Nhonhô numa entrevista à RTC (Radio-Televisão de Cabo Verde) sobre o seu percurso de vida como “uma autêntica revolução”. E de facto foi a festa infinita que começou com a caça aos informadores da PIDE/DGS na cidade da Praia e na qual o Nhonhô e os seus amigos estudantes da Assomada residentes na cidade-capital da colónia/província ultramarina portuguesa participaram activamente, o lançamento de panfletos políticos na vila da Assomada dirigidos aos militares aquartelados no antigo edifício da SAGA e para o qual fui mobilizado pelo Betinho de Nho Bebeto (Alberto Lopes Barbosa, Júnior) (sendo essa a primeira acção política, ademais clandestina, de toda a minha vida, depois muito marcada pela intervenção política e cívica, se bem que em larga medida fora do quadro político-partidário), e, logo depois, com a libertação dos presos políticos do Tarrafal, prosseguindo com os frequentes comícios, reuniões, sessões de esclarecimento e manifestações, os saraus culturais e as muitas e acaloradas discussões políticas, nas quais nós, adolescentes, também nos envolvíamos entusiástica e freneticamente. Nessa altura, o Nhonhô, primeiramente, e, posteriormente, o Benny, depois de ambos terem concluído os estudos no Ciclo Preparatório da Assomada, inaugurado em 1969 (diga-se que por forte pressão do nosso irmão David e de outros estudantes liceais e universitários oriundos do concelho de Santa Catarina), residiam na cidade da Praia para absolver os primeiros anos do Curso Geral dos Liceus, seguindo os passos da nossa irmã Lurdes e do nosso irmão Orlando. Foi durante a sua estadia na cidade da Praia para a prossecução dos estudos liceais que o Nhonhô e o Benny devem ter tomado contacto com as células clandestinas do PAIGC. Foi nessa altura que o Nhonhô iniciou as suas actividades como cantor em tocatinas, serenatas e outros convívios e tertúlias de amigos, colegas e camaradas do Liceu e não só. As minhas irmãs Mariazinha, Tuginha e Lurdes (sendo que esta entretanto tinha deixado o liceu para se empregar como professora primária, tal como as outras duas irmãs mais velhas), que na altura residiam na cidade da Praia, devem também ter tomado contacto e colaborado com as estruturas clandestinas do mesmo PAIGC, depois de terem sido frequentemente chamadas à sede da PIDE-DGS da Assomada para interrogatório por suspeita de actividades subversivas contra a nação, que era como eram denominadas as actividades clandestinas dos militantes da luta para a independência, acintosamente desqualificados e aterrorizados como turras e, por isso, sempre sob a ameaça de serem encarcerados e aprisionados no famigerado campo da morte lenta do Tarrafal ou de serem deportados para Angola e confinados no campo de concentração de São Nicolau localizado no deserto de Moçâmedes na foz do rio Cunene. No ano anterior ao 25 de Abril, isto é, em 1973, o David tinha regressado dos estudos universitários de Direito na prestigiada Universidade de Coimbra e aberto o seu escritório de advogado no Platô da cidade da Praia e no qual a nossa irmã Lurdes se tornou funcionária. O David tinha jogado um importante papel como advogado de presos políticos e, depois, no processo de libertação dos presos políticos do Tarrafal, conjuntamente com os seus colegas advogados Felisberto Vieira Lopes e Arlindo Vicente Silva. Foi a libertação dos presos políticos do Tarrafal que me proporcionou a ocasião e a oportunidade de dar a minha primeira volta, por assim dizer, à ilha toda de Santiago, ademais sem a autorização e sem ser acompanhado pelo nosso pai, como fora da primeira vez que, muito cedo e no autocarro Albion do sr João de Fábrica, fora à cidade da Praia para ser vacinado no Hospital provincial e obter alguns documentos necessários para o meu ingresso no Ciclo Preparatório da Assomada. Com efeito, capitaneados por Toco Tavares, um ex-preso político da Cadeia Civil da Praia e do Tarrafal, fomos para o Chão Bom, localidade tarrafalense onde estava localizado o famigerado campo de concentração-presídio político e onde assistimos ao momento único da libertação dos presos políticos caboverdianos, entre os quais sobressaía nítido e agigantado o Pedro Martins, e dos presos políticos angolanos, onde se destacavam o branco angolano António Cardoso, o negro Mendes de Carvalho, depois celebrizado como o escritor Uanhenga Xito, e os irmãos Pinto de Andrade, cuja mãe era caboverdiana. Libertados os presos políticos e feito o comício apropriado para a ocasião no qual falaram o Pedro Martins, o mais jovem preso político do Tarrafal, o angolano António Cardoso, o Carlos Tavares, um antigo e muito barbudo preso político caboverdiano libertado, conjuntamente com Luís Fonseca e Jaime Schofield, logo depois do assassinato de Amílcar Cabral, permanecendo todavia encarcerado no Tarrafal o Lineu Miranda, então considerado mais velho e veterano, porque o mais antigo preso político caboverdiano. Depois do comício realizado no largo defronte do famigerado campo de concentração/presídio político do Chão Bom do Tarrafal, onde pela primeira vez ouvi gritar vivas ao PAIGC e à memória de Amílcar Cabral e abaixos ao colonial-fascismo pela voz sonora e embargada de Pedro Martins, e, depois de darmos uma muito alegre e ruidosa volta à Vila de Mangue do Tarrafal, seguimos todos para a cidade da Praia, sempre festejados pelas numerosas multidões das localidades por onde passávamos, como a Calheta de São Miguel, a vila de Pedra Badejo, Milho Branco, São Domingos, São Filipe, Vila Nova, Fazenda e, finalmente, o platô da cidade da Praia. Aqui na Praça Grande do Platô da cidade da Praia assisti pela segunda vez na minha vida a um comício político e no qual se proferiu publicamente e se deu vivas à liberdade, ao PAIGC e à memória da vida e da obra de Amílcar Cabral e se gritaram abaixos contra a PIDE-DGS e o colonial-fascismo português, confusamente misturados com vivas à Junta de Salvação Nacional e ao General António Spínola, levados ao poder em Portugal Continental pelo golpe de estado militar do 25 de Abril de 1974 perpetrado pelo MFA (Movimento das Forças Armadas). Da Praia, seguimos para a Assomada, com paragens nas várias localidades por onde passávamos para que as respectivas populações pudessem cumprimentar e vitoriar os presos políticos libertados, na sua esmagadora maioria oriundos do concelho e da freguesia de Santa Catarina. A paragem na localidade dos Órgãos serviu também para ajustar contas com o padre Arlindo, um missionário metropolitano que se dizia ter sido informador da famigerada, odiada e agora extinta PIDE-DGS. Parece que a população dos Órgãos, muito conhecida pela sua extrema religiosidade católica, em especial aquela vizinha da igreja local e da residência do padre Arlindo, não gostou desse gesto de alguns integrantes mais velhos, afoitos e destemidos da comitiva dos presos políticos e veio armada com catanas, facas e pedras em socorro do padre Arlindo, pondo em sério risco a integridade física e a vida dos ajustadores de contas, incluindo do meu irmão Nhonhô, considerados blasfemos porque assumidos agressores de um representante de Deus na Terra. Ultrapassado o percalço, seguimos para a Vila de Assomada onde nos reunimos a uma multidão de pessoas em festa e delírio em frente da casa-vivenda do Sr Damas e da Dona Elisa, os pais do agora libertado ex-preso político Pedro Martins. Nessa noite, tomaram a palavra o Sr Damas bem como o próprio Pedro Martins e, finalmente, o Peta (Armando Araújo) que recitou um poema clamando por sangue e vingança por todas as atrocidades cometidas pela PIDE-DGS e por todas as iniquidades devidas à opressiva dominacão colonial-fascista portuguesa. Nessa sequência, todas as atenções viraram-se para algumas pessoas presentes, mais ou menos discretamente, no meio da multidão sobre-excitada e imediatamente apontadas como suspeitas de terem sido informadoras da odiada e extinta PIDE-DGS. Devidamente interpeladas e açoitadas as pessoas apontadas como tendo sido galinhas da PIDE-DGS, as atenções concentraram-se na sede local da PIDE-DGS domiciliada do outro lado da mesma rua numa casa vizinha da moradia/vivenda do Sr Damas cujas vidraças foram totalmente estilhaçadas a pedrada. Depois, o grupo de jovens vingadores, encabeçados por um jovem adulto oriundo de Nhagar e acolitados por alguns de nós adolescentes, dirigiu-se para as casas de outros supostos informadores da PIDE-DGS, as quais foram igualmente cercadas e as vidraças das respectivas janelas devidamente estilhaçadas. A caminho foram abordadas, sempre de forma assaz violenta e agressiva, outras pessoas acusadas, nem sempre com razão, nesse momento de muita excitação, acrescida raiva e exacerbada vontade de vingança, quiçá compreensíveis dadas as excepcionais circunstâncias, de terem sido bufos da famigerada polícia política colonial-fascista portuguesa.

4. O restante ano de 1974 foi de total emersão nas actividades da luta pela independência política de Cabo Verde e em grande medida dirigidas contra os então denominados partidos fantoches, um assumidamente federalista e que era a UDC (União Democrática de Cabo Verde, dirigida pelo advogado João Monteiro, fundada a partir da Associação Democrática de Barlavento, implantada sobretudo nas ilhas do norte do arquipélago caboverdiano e conotada com alguns letrados e intelectuais claridosos e neo-claridosos, como Baltasar Lopes da Silva, Manuel Lopes e Henrique Teixeira de Sousa, e defensora das teses spinolistas de autonomia política e de federalismo no seio de uma suposta Comunidade Lusíada ou Luso-Africana); o outro, abertamente conotando-se com a esquerda revolucionária radical, pró-chinesa e anti-soviética e que era a UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde, fundada em 1959, em Boston, nos EUA, por Aires Leitão da Graça e refundada em 1962 em Dacar, no Senegal, pelo seu irmão mais velho José André Leitão da Graça e identificada com uma extrema-esquerda maoísta alegadamente posicionada contra o imperialismo americano e euro-ocidental e contra o social-imperialismo soviético e totalmente avessa ao princípio cabraliano e paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde). Os simpatizantes dessas duas últimas organizações político-partidárias e os seus parentes próximos no Liceu, que passámos a frequentar a partir do ano lectivo 1974-1975, eram muito causticados e fustigados por nós, adolescentes e jovens paigcistas, o mesmo tendo ocorrido com os parentes próximos dos seus aderentes e nossos colegas na Vila da Assomada. Tudo viria a culminar com a total neutralização política da UPICV-UDC em Dezembro de 1974 mediante o encarceramento, ainda que “em regime de recreio”, como ironicamnte vazado no livro Os Bastidores da Independência, de José Vicente Lopes, de alguns dos seus mais proeminentes militantes e simpatizantes no ex-campo de concentração do Tarrafal pelo MFA local e com a cumplicidade da Direcção do ramo caboverdiano do PAIGC, sendo alguns deles acusados de terem sido agentes e informadores pagos da PIDE-DGS e outros de activamente obstruirem o processo de descolonização então em curso e erigido pelo MFA como um dos seus três Ds (de Descolonização, Democratização e Desenvolvimento) para o desencadeamento da Revolução dos Cravos. Dessa vaga de prisões salvou-se o líder da UPICV, porque em viagem pela Europa alegadamente para angariar fundos e aliados. A neutralização política da UDC e da UPICV foi facilitada pelo conveniente amalgamamento doas duas formações político-partidárias sob o rótulo de partidos fantoches e spinolistas, tanto mais que, depois dos acontecimentos de 28 de Setembro de 1974 em Portugal e que levaram à queda do General António de Spínola, consubstanciada na sua demissão do alto cargo de Presidente da República Portuguesa, e da sua famigerada maioria silenciosa, grande parte dos militantes e simpatizantes da UDC passou a apoiar a UPICV que, assim, transmutou-se num partido nominalmente de extrema-esquerda nacionalista com militantes de extrema-direita colonial-saudosista. Ademais, os militantes da UPICV/UDC foram acusados de prepararem atentados contra a vida e a integridade física de altos dirigentes do PAIGC presentes em Cabo Verde, como então denunciado mediante a ampla difusão na Rádio da gravação de uma das suas reuniões alegadamente infiltradas por um agente do PAIGC e que deram azo e foram o pretexto para a realização de grandes e histéricas manifestações dos simpatizantes do PAIGC exigindo ao MFA local a prisão imediata dos alegados reaccionários spinolistas, considerados ademais impenitentes e inveterados saudosistas do obsoleto e defunto regime colonial-fascista português. Nessa altura, munidos de bastões e varapaus, nós, jovens e adolescentes paigcistas, montámos guarda no pátio da esquadra policial do platô da cidade da Praia a alguns desses presos políticos alegadamente opositores da descolonização de Cabo Verde, sendo alguns deles oriundos de Santa Catarina e que foram detidos pelos militantes locais do PAIGC capitaneados pelo ex-preso político anti-colonial Toco Tavares. Alguns desses recentes presos políticos da descolonização eram nossos vizinhos e antigos ídolos do futebol na nossa infância, depois afastados em razão das fundas divergências políticas então vindas à tona. A maior parte dos novos presos políticos, como já referido, encarcerados no presídio político do Chão Bom do Tarrafal em Dezembro de 1974, foram sendo libertados ao longo do ano de 1975, não restando nenhum preso político nesse antigo presídio político no dia da proclamação da independência política de Cabo Verde, pois que os remanescentes presos políticos caboverdianos, designadamente os suspeitos de terem sido informadores da PIDE/DGS e/ou os mais ostensivamente posicionados contra o PAIGC e a independência política de Cabo Verde, foram enviados para a prisão de Caxias em Portugal, de onde foram finalmente libertados na sequência dos acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, tendo alguns regressado a Cabo Verde, já livre e independente e vivendo em regime político de partido único.
Foi também nessa altura, que os militares portugueses estacionados na ilha de Santiago sairam em massa em manifestação política, aliás, muito aplaudida pelos militantes e simpatizantes do PAIGC, a exigir o seu regresso imediato a Portugal. Nunca mais me esquecerei, assim como certamente o Nhonhô e outros presentes nessa ocasião, dos slogans/gritos/clamores proferidos por esses militares portugueses nas ruas do Platô da cidade da Praia: “Esta terra não é nossa! Queremos regressar para a nossa terra!”. Nessa mesma altura, mais precisamente a 9 de Dezembro de 1974, simpatizantes, activistas, militantes e responsáveis políticos do PAIGC na cidade do Mindelo na ilha de São Vicente ocuparam as instalações da Rádio Barlavento, considerada como sendo próxima, senão porta-voz da UDC, e transformada em Rádio Voz de S. Vicente, doravante defensora das posições políticas independentistas do PAIGC e do MFA local. Estavam assim reunidas as condições para, na sequência do Acordo de Alger, nos termos do qual Portugal aprazara para 10 de Setembro de 1974 o reconhecimento solene e de jure da República da Guiné-Bissau, unilateralmente proclamada a 24 de Setembro de 1973 na zona libertada de Madina do Boé, tendo Portugal outrossim reconhecido o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência, aliás, já consagrado na Lei portuguesa da Descolonização, de 17 de Julho de 1974, e tendo o PAIGC sido anteriormente, ainda antes do 25 de Abril de 1974, reconhecido como o único e legítimo representante do povo de Cabo Verde, tanto pela OUA (Organização da Unidade Africana), como pela ONU (Organização das Nações Unidas). O reconhecimento de facto do PAIGC como o único e legítimo interlocutor para o exercício do direito à autodeterminação e independência do povo de Cabo Verde, embora sem nomeação expressa do movimento de libertação binacional, viria a ser dado por Portugal com o encetamento e a conclusão com o PAIGC dos Acordos de Lisboa de 19 de Dezembro de 1974 e que instituíram um Governo do Estado de Cabo Verde (entidade político-administrativa criada formalmente com a revisão da Constituição Portuguesa de 1972, para substituir enquanto região nominalmente autónoma de Portugal a entidade político-administrativa província ultramarina). O Governo de Transição do Estado de Cabo Verde seria dirigido por um Alto-Comissário português nomeado pelo Presidente da República Portuguesa e constituído paritariamente por ministros portugueses indicados pelas autoridades portuguesas e por ministros caboverdianos indicados pelo PAIGC, sendo todos nomeados pelo mesmo Presidente da República Portuguesa, com vista à criação das condições político-institucionais para a proclamação da independência política e da sua soberania nacional e internacional do mesmo Estado marcada para o dia 5 de Julho de 1975 por uma Assembleia Legislativa Soberana e Constituinte e eleita por sufrágio directo, secreto e universal por todos os caboverdianos, residentes no território e residentes no estrangeiro, incluindo os emigrantes, em listas de candidatos apresentados em cada círculo eleitoral por grupos de cidadãos, na prática totalmente controlados e monopolizados pelo PAIGC. A mesma Assembleia Legislativa Constituinte e Soberana constitui-se enquanto tal no dia 4 de Julho de 1975 adoptando a denominação de ANP (Assembleia Nacional Popular), tendo de seguida eleito Abílio Duarte como o primeiro Presidente da sua Mesa, Aristides Pereira como o primeiro Presidente da República de Cabo Verde e, por indicação deste, Pedro Pires como o primeiro Primeiro-Ministro de Cabo Verde. Logo depois da assinatura dos respectivos documentos de transferência do poder soberano por Vasco Gonçalves, Primeiro-Ministro de Portugal e representante do Presidente da República Portuguesa, e por Abílio Duarte, Presidente da recém-eleita e constituída Assembleia Nacional Popular de Cabo Verde, e da proclamação solene da República de Cabo Verde no Estádio da Várzea da cidade da Praia por Abílio Duarte, a mesma Assembleia Nacional Popular adoptou a LOPE (Lei da Organização Política do Estado) que deveria vigorar até à adopção da Primeira Constituição Política da República de Cabo Verde, nos termos dos Acordos de Lisboa e da Lei Eleitoral para uma Assembleia Legislativa Constituinte e Soberana, o que efectivamente somente viria a ocorrer com a adopção pela ANP da Constituição Política de Setembro de 1980, para entrar em vigor em Fevereiro de 1981 na primeira sessão legislativa da nova ANP eleita em Dezembro de 1980, e imediatamente revista nessa mesma sessão legislativa para dela expurgar todas as referências ao PAIGC e ao princípio e projecto de unidade Guiné-Cabo Verde, entretanto extintos em razão do golpe de Estado de 14 de Novembro ocorrido na Guiné-Bissau e da subsequente fundação do PAICV, enquanto herdeiro do PAIGC e partido estritamente caboverdiano. A LOPE instituiu o PAIGC como força política dirigente da sociedade, aliás, tal como estava estatuído na primeira Constituição Política da República da Guiné-Bissau e viria a ficar estipulado na primeira Constituição Política da República de Cabo Verde, mas com as prerrogativas do PAIGC enquanto força política dirigente da sociedade a serem alargadas ao Estado. Deste modo, pode-se dizer que o regime caboverdiano de partido único socializante ficou instituído de facto desde o mês de Dezembro de 1974 e de jure desde a proclamação da independência política de Cabo Verde e a adopção da LOPE, valendo as eleições legislativas de 30 de Junho de 1975 como autênticas consultas referendárias para ratificar os convulsivos acontecimentos revolucionários de Dezembro de 1974, acima referidos, e, assim, plebiscitar i. a independência política e a soberania nacional e internacional de Cabo Verde; ii. O projecto paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde; iii. o regime de partido único socializante; iv. o triunvirato dirigente do novo país e constituído por Aristides Pereira, Pedro Pires e Abílio Duarte. E com o regime de partido único veio a aparente paz político-social, intermitentemente quebrada pelas dissensões abertas e latentes entre as diversas correntes político-ideológicas presentes no ramo caboverdiano do PAIGC e nas lutas estudantis nos dois Liceus de Cabo Verde e que viriam a culminar com a auto-expulsão/a expulsão no mês de Março/Abril de 1979 da chamada corrente trotskista do PAIGC.
Com a implantação de facto do regime de partido único, protagonizada pelo MFA local e pelas diferentes correntes político-ideológicas do ramo caboverdiano do PAIGC, encerrou-se a prolongada festa iniciada com o 25 de Abril de 1974 com os seus diferentes partidos políticos em luta legal aberta pelos seus ideários e programas políticos e patentes em panfletos, comunicados, comícios, sessões de esclarecimento e manifestações públicas, a sua quase irrestrita liberdade da palavra dita, escrita e radiodifundida, concentrando-se doravante o nosso entusiasmo na construção de um novo país nas nossas ilhas, isto é, de “uma outra terra dentro da terra”, como profetizado por Amílcar Cabral com palavras do seu amigo e confrade Aguinaldo Fonseca, bem como no país africano continental irmão. E foram realmente muito altas a euforia e as expectativas postas pelo Nhonhô e por todos nós na concretização desse magno desiderato, necessariamente envolto num manto de muita e maravilhada utopia revolucionária que, aos poucos, se foi desvanecendo e/ou se foi alicerçando em bases cada vez mais realistas e pragmáticas.

5. Nessa altura de grande entusiasmo com a causa da independência política de Cabo Verde no quadro catártico e emancipatório da unidade Guiné-Cabo Verde e da unidade africana, o Nhonhô desempenhou um importante papel na difusão da imagem de Amílcar Cabral e na disseminação dos slogans políticos do PAIGC que, com a técnica adequada própria para esse efeito, fazia ostentar em camisolas e t-shirts de propaganda do partido da unidade e luta e da bandeira ouro, rubra e verde da estrela negra, bem como nas paredes e nos muros das avenidas, das ruas, das ruelas, das praças e dos largos da cidade da Praia, da vila da Assomada e de todas as demais vilas e localidades mais importantes da ilha de Santiago. Conhecidos ficaram também os seus desenhos, muito bem elaborados, de outras figuras míticas e de heróis revolucionários, muito em voga na altura, como Marx, Engels, Lenine, Che Guevara, Patrice Lumumba, Kwame Nkrumah, Domingos Ramos ou Titina Silá.
Foi nessa altura que o nosso irmão Orlando e o seu amigo de peito e companheiro das tertúlias musicais coimbrãs Carlos Moreira, mais conhecido e chamado por Carlos Nhonhô de Cabeça Carreira, regressaram dos seus estudos de regente agrícola, interrompendo-os, para darem o seu contributo na mobilização política para a luta para a independência política do nosso país. E foi deveras valioso o seu contributo, pois que eram eles que animavam musicalmente os comícios, as sessões de esclarecimento e os saraus culturais na vila da Assomada e nas suas redondezas.
Foi com o Orlando e o Carlos Nhonhô Moreira que ouvimos pela primeira vez músicas africanas revolucionárias da Guiné-Bissau e de Moçambique, sendo que as músicas do Bonga constantes dos LP Angola 72 e Angola 74 e gravadas na Holanda pela Morabeza Records de Djunga de Biluca eram muito ouvidas no bar-restaurante do santa-catarinense Palo Nha Lela e no bar do sanvicentino Titino Boxero, ambos depois conotados com a UPICV/UDC e acusados de terem sido informadores da PIDE-DGS. Nessa altura, era imenso o nosso orgulho no nosso irmão Orlando, que também contava com a complacência do nosso pai que o tinha feito deixar o Liceu da Praia e o tinha enviado para encetar os estudos de regente agrícola em Coimbra, a conselho do nosso irmão David que já nesse tempo se encontrava a estudar na célebre cidade universitária portuguesa. Nessa altura o nosso pai estava totalmente comprometido e entusiasmado com as actividades da luta para a independência política do nosso país, ele que, segundo testemunhos oculares fidedignos, designadamente do seu sobrinho e nosso primo Bentura (Alexandre de Deus Monteiro), sempre fora um admirador de Amílcar Cabral, do seu incomum percurso e da sua heróica luta, tendo sido por isso um assíduo ouvinte clandestino da Rádio Libertação do PAIGC, emitido a partir de Conacri, fora testemunha abonatória do Toco Tavares e dos seus companheiros no seu julgamento político na ilha de São Vicente e vira as suas filhas serem amiúde chamadas para interrogatórios na sede da PIDE/DGS sob a batuta do vermelhusco e famigerado Sr. Eusébio.
Ademais, o Orlando trouxe na sua bagagem de Coimbra uma parte da rica e diversa biblioteca da estudantil república dos mil y onários que foi de imensa valia para os meus primeiros contactos e a minha iniciação na leitura de obras marxistas e revolucionárias, com destaque para o famoso livro O Processo Histórico, de Clemente Zamora, os livros sobre o materialismo histórico, de Marta Hanecker, algumas obras dos clássicos do marxismo, designadamente de Marx, Engels e Lenine, bem como obras de cultura geral, como alguns livros de Wilhem Reich, que depois aprofundei com a leitura e o devorar dos livros da biblioteca pessoal do meu irmão David. A biblioteca trazida de Coimbra pelo Orlando era da minha particular afeição e foi deixada em grande parte na nossa casa da Assomada quando fui continuar os estudos liceais na cidade da Praia e fazer os estudos universitários em Leipzig, na Alemanha de Leste. Ela deve ter sido toda lida pelo nosso sobrinho Samory que, apesar de, em razão de vicissitudes e atribulações várias, não ter podido concluir os estudos liceais e, assim, encetar e concluir os estudos universitários, ostentava uma grande cultura geral que fazia questão de exibir e lhe valeu o epíteto de rapaz inteligente que todos lhe atribuíam.

6. Entretanto, poucas semanas depois do 25 de Abril de 1974, compareceu na nossa casa da Assomada um senhor que se dizia chamar Henrique Semedo. Reconhecido imediatamente pela nossa mãe que nele viu o seu primo Furtado embarcado há vários anos para São Tomé e Príncipe e/ou Angola, o nosso tio de há muito desaparecido esclareceu ter fugido para o Congo e, depois, para Dacar e Conacri para se juntar a Amílcar Cabral e aos combatentes do PAIGC. Daí o seu desaparecimento de todos os radares familiares islenhos, tendo ele sido todavia visita assídua aos filhos da tia Minda e do tio Nezinho, da Arribada, nossos parentes Furtado de há muito embarcados e radicados em Dacar, onde, aliás, nasceu Paulo, um dos filhos do tio Henrique. E agora, com a eclosão do 25 de Abril de 1974 regressava acompanhado de Zezé Manco (José Galina Monteiro), um assomadense ex-preso político do Tarrafal com Toco Tavares, Emanuel Braga Tavares e José Maria (Zéqui) Querido, num pequeno contingente de combatentes do PAIGC para apalpar o terreno e participar na mobilização popular para a independência política de Cabo Verde. Foi visível e incomensurável a alegria dos primos Furtado reencontrados depois de tantos anos em que até se pensava que o tio Henrique Semedo já tinha falecido na Terra-Longe. Esse mesmo contingente do PAIGC seria constituído por outros combatentes e militantes caboverdianos regressados da luta político-armada e da sua retaguarda logística e diplomática nas duas Guinés e enviados para as respectivas ilhas para os fins de mobilização política acima referidos. A partir daí as vagas de combatentes, militantes, responsáveis e dirigentes políticos regressados da luta nas duas Guinés e nas diásporas caboverdianas além-Piréneus iam assumindo contornos cada mais elevados na hierarquia partidária, como foram os casos sucessivamente de João Pereira Silva, Osvaldo Lopes da Silva, Silvino da Luz, Pedro Pires e, finalmente, Aristides Pereira. O interessante é que tanto nós, os filhos, como também o nosso pai, sempre participámos de forma entusiástica na rececão apoteótica no aeroporto e nas ruas da cidade da Praia desses responsáveis e altos dirigentes do PAIGC, se bem que sempre situados em lugares diferentes dos desfiles, manifestações, comícios e saraus culturais.
Curiosamente, a recepção a Aristides Pereira no Aeroporto da cidade da Praia e o subsequente comício na Praça Grande do platô da mesma cidade, no dia 21 de Fevereiro de 1975, foi a última oportunidade que nós, os filhos estudantes e residentes na cidade da Praia, tivemos de ver o nosso pai com e em vida.

7. Cena idêntica à passada com o tio Henrique Semedo ocorreu pouco tempo antes da festa da proclamação da independência política de Cabo Verde, tinham já passado alguns meses sobre a morte repentina do nosso pai António, mais conhecido por todos os seus amigos e próximos por Totó de Suzana. Um belo dia, surgiu na nossa casa da Assomada, um homem alegre e muito janota, carregando uma pasta diplomática e que se apresentou como o tio Mano Lópi (Lopes), irmão da nossa mãe Júlia Furtado do Livramento Lopes, filho do nosso prematuramente falecido dono (avô) o papai David do Livramento Lopes, mais conhecido por Dionísio, e criado pela nossa dona (avó) a mamãi Tuna Tavares Furtado Lopes. Como habitual nessas inusitadas ocasiões de quase ressurreição de uma pessoa tida por morta ou desaparecida ou, melhor ainda, de re-aparição de um filho da terra considerado pródigo, houve uma choradeira geral, sobretudo por parte da nossa mãe Júlia e da nossa tia Zulmira, as duas completamente emocionadas e comovidas por poderem rever o irmão de pai de ambas e mais novo que a nossa mãe Júlia e a nossa tia Candinha, também presente e testemunha da feliz ocasião, e mais velho que a nossa tia Zulmira. A tia Candinha era uma prima mais velha da nossa mãe Júlia que, tal como o tio Mano e a tia Zulmira, foi também criada em Fonteana pela mamãTuna, sua madrinha e irmã do pai da tia Candinha, embarcado no mesmo dia que o papai David para os Estados Unidos da América, de onde não mais regressou, ao contrário do seu cunhado que veio morrer muito jovem na sua terra natal.
O tio Mano dizia ter vindo expressamente de Angola para assistir a esse momento único e irrepetível na História das nossas vidas e das vidas de todos os caboverdianos residentes nas ilhas e emigrantes por todos os cantos do mundo e que seria a proclamação solene da independência política de Cabo Verde, previamente marcada para o dia 5 de Julho de 1975. Por isso e por outras coisas mais, o tio Mano concitou imediatamente a simpatia de todos nós, especialmente do Orlando e do Nhonhô, já com idade suficiente para compreenderem a transcendência do gesto do tio Mano e, ademais, para parodiarem à vontade com ele. Contrariamente a outros parentes próximos como o tio Braz e a família que tinham abandonado Angola em fuga dos violentos distúrbios que assolavam a cidade de Luanda e outras cidades angolanas e da guerra civil que entretanto eclodira ou estava prestes a eclodir, o tio Mano tinha vindo de livre vontade e com data marcada para o seu regresso a Angola. A partir daí foram muitos os regressos do tio Mano e da sua filha e nossa prima Mena, vindo o nosso tio Mano a casar-se com uma prima nossa, a tia Tomásia da Arribada, agora, depois do falecimento do tio Nezinho Pereira, residente na cidade da Praia, juntamente com a toda a família da tia Minda, filha do famoso padre Joaquim Furtado, irmão de mamãi Tuna e do pai da tia Candinha e que deixou descendência por todos os recantos e freguesias da ilha de Santiago. O tio Mano tratou de levar a tia Tomásia, juntamente com o Quinzinho, o seu filho único, para o seu país adoptivo e que tanto lhe deu. Mais tarde e depois do meu regresso dos estudos universitários na Alemanha, quando fiz uma visita ao mítico país para uma gorada reunião da LEC (Liga dos Escritores dos Cinco) pude vê-los a todos e ao primo Quinzinho numa Angola mergulhada na guerra civil e na penúria de bens essenciais com recurso obrigatório de todos ao grande mercado a céu aberto do Roque Santeiro, que, depois de várias vezes visitado por mim na companhia ora do tio Mano, ora do Pira, nosso primo pelo lado paterno dos Almada, comparei a um acampamento do exército hitita antes da invasão do antigo Egipto…Quando voltei pela segunda vez a Angola, agora para participar em Luanda, em nome do INAC (Instituto Nacional da Cultura) e acompanhado do Danny Spínola, num Seminário Internacional sobre a Tutela dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos nos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) promovido pela OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), o tio Mano já não era vivo, tendo falecido em circunstâncias até então não esclarecidas, presumivelmente envenenado, segundo me contou na altura a prima Mena.

8. Depois de, por minha vez, ter ido frequentar o Liceu na cidade da Praia a partir de Setembro/Outubro de 1974, o Nhonhô, o Benny e eu morámos num quarto arrendado num prédio da actual rua 5 de Julho conhecido por Prédio da Dona Elvira, mãe do falecido Sr Filinto Anastácio Silva, e fazendo as nossas refeições numa casa vizinha também localizada na mesma rua, juntamente com os filhos do Sr Manelinho Pina e da Dona Palmira, também nossos vizinhos e companheiros do liceu, dos jogos de cartas e de monopoly e das discussões políticas e futebolísticas no Prédio da Dona Elvira. Foi nesse prédio que conhecemos o Antero Simas, filho mais velho do Sr Filinto e neto da Dona Elvira, as irmãs Arminda e Alexandra Barros, sobrinhas da Dona Elvira, todos os três por ela criados e por conseguinte moradores do prédio, bem como o Jacob, o papagaio da Dona Elvira que, para além dos impropérios típicos dessas aves falantes, também se divertia devorando o forro das nossas maletas. Regressávamos à casa paterna para o carinho e o aconchego do lar materno todos os meses e o pai visitava-nos todas as semanas, até ao seu falecimento em 27 de Fevereiro de 1975. A morte repentina do nosso pai fez vir de Portugal, para onde tinha regressado para retomar os estudos, um Orlando absolutamente desesperado, bem como o nosso irmão mais velho Rui, impecável no seu fato negro de luto. O Rui regressou pouco tempo depois a Portugal, enquanto que o Orlando permaneceu em Assomada com uma inconsolável mãe Júlia. Era grande a esperança de todos nós, os filhos e filhas de António e Júlia, que o Orlando ficaria em Cabo Verde para tomar conta das nossas inúmeras propriedades no Pombal e não só. Infelizmente, não foi o que aconteceu, tendo o Orlando regressado tempos depois a Portugal na companhia de uma namorada portuguesa que, morta de saudade do Orlando e também atingida pela morte de um familiar próximo, veio ter com ele a Cabo Verde e se tornou uma grande amiga da nossa família.

 9. A morte do nosso pai marcou-nos irremediavelmente e para todo o sempre. Por isso, no ano lectivo seguinte passámos os três irmãos mais novos a morar na casa da nossa irmã Mariazinha na rua dos Correios. Entretanto, o Nhonhô seguiria no ano lectivo de 1976/1977 para a Roménia com uma bolsa de estudos que lhe permitiu concluir o ensino liceal na cidade de Timisoara, onde muito mais tarde viria a eclodir a primeira e decisiva revolta contra o regime dos Ceaucescu, e encetar o curso de Arquitectura na respectiva Faculdade da Universidade Ion Mincu, de Bucareste, curso esse que finalmente escolheu e a que pareceu sempre destinado desde a infância, depois de inicialmente ter optado no pedido de bolsa de estudos por Artes Plásticas.
Depois de alguns dissabores no Liceu, o Benny entraria para as FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo) e, depois de cumprido o serviço militar obrigatório, maioritariamente feito na ilha do Sal, empregar-se-ia como funcionário dos Registos e Notariado na ilha de São Vicente, onde conheceria a sua futura esposa Ivete e lhes nasceria a filha, Cathleen, seguindo todos, anos depois, para o Consulado de Cabo Verde em Roma, onde viria a nascer o filho Bennyzinho. Depois da sua transferência para Roma, o Benny era frequentemente visitado pelo Nhonhô enquanto foi estudante universitário na Roménia.
Pelo meu lado, passei a morar na casa do meu irmão David, era ele ainda divorciado da sua primeira esposa Fátima Dupret e mãe dos seus dois primeiros filhos, Ana Cristina e Davidinho, ficando a filha a morar com o pai e o filho com a mãe, antes de se casar com a sua segunda esposa Ana Maria Fonseca e, em 1977, lhes ter nascido a filha Janira e, já comigo estudante universitário no estrangeiro, a filha Romina. Nessa altura, desenvolvi intensa actividade política e cultural no âmbito da Secção Liceal Domingos Ramos da JAAC-CV (Juventude Africana Amílcar Cabral-Cabo Verde), bem como da Associação dos Estudantes do Liceu Domingos Ramos, depois intempestivamente extinta em 1979 na sequência da auto-demissão/da expulsão do ramo caboverdiano do PAIGC de alguns dirigentes e militantes conotados com a chamada fracção trotskista.

Frederico Hopffer AlmadaFrederico Hopffer Almada 

Concluído o Curso Complementar dos Liceus obtive uma bolsa de estudos para frequentar estudos de Direito na Alemanha de Leste, oficialmente conhecida por RDA/República Democrática Alemã (ou DDR/Deutsche Demokratische Republik, na sigla e na denominação alemãs), onde recebi uma visita do Nhonhô e da sua namorada sudanesa Nagwa, depois de o ter visto pela última vez em Agosto de 1981, em Lisboa, onde fomos sempre acompanhados pelo nosso irmão Orlando e morámos os três mais a irmã Tuginha e o filho pequeno Sedicoy na casa do nosso irmão Rui, em Oeiras, para onde o nosso irmão Orlando tinha mudado, indo de Coimbra. Depois de uma longa viagem de comboio começada na célebre Estação Central de Leipzig e que me fez atravessar parte da Alemanha de Leste, a Alemanha Ocidental, a França e a Espanha, entrei em Portugal pela localidade fronteiriça de Vilar Formoso a caminho de Coimbra, onde esperava encontrar o meu irmão Orlando, desde há muitos anos radicado nessa cidade e morador da república estudantil dos mil y onários. Chegado a essa mítica e auto-gerida residência estudantil qual não foi a minha surpresa quando o único morador aí presente nessa altura de férias de verão, o Manuel Onofre, que depois viria a ser juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde, me informou com alguma consternação que o Orlando se tinha mudado para Lisboa, desconhecendo ele a sua actual morada na capital portuguesa. De todo o modo, e de forma simpática, pôs as instalações dos mil y onários à minha disposição e indicou-me o nome do estudante de Direito Ilídio Cruz para me acompanhar e orientar durante a minha estadia nas minhas deambulações e nos meus contactos para um melhor conhecimento da cidade universitária tão conhecida e, até marcante, da nossa família. Permaneci em Coimbra por dois dias, um inteiro fim de semana, se não me engano, e desconhecendo o endereço do meu irmão Orlando em Lisboa, mas tendo comigo o endereço do meu irmão Rui, de há muito radicado com a família na mesma cidade, por precaução e para evitar surpresas idênticas às vividas em Coimbra dirigi-me para a casa da família do nosso colega Tónio, também estudante na RDA, na cidade de Weimar, e uma pessoa muito amável, fiável e confiável, cujo endereço da família em Lisboa, na Praça de Espanha, eu trazia felizmente comigo. Chegado a Lisboa, o Tónio levou-me de táxi à casa do meu irmão Rui, localizado no bairro de Algés. Cansado, fui muito bem recebido não só pelo meu irmão Rui, pela sua esposa Milú (Lurdes Spencer) e pelos seus dois filhos e meus sobrinhos, um do sexo feminino e mais velha e o outro do sexo masculino e mais novo, mas também pela minha irmã Tuginha que, vindo de Bissau com uma bolsa médica, estava em busca de consulta e tratamento para um problema de olhos do seu filho mais novo Sedicoy. Foi deveras agradável esse meu reencontro com a Tuginha e o filho pequeno dela, depois de os ter visto e ao filho mais velho, Samory, pela última vez em Setembro de 1979, em Bissau, quando, juntamente com o Rui Évora e o Afonso Semedo, passei em trânsito por essa cidade, na altura mergulhada numa grande penúria de bens alimentares de primeira necessidade e visivelmente na expectativa de algo que iria brevemente explodir, para obter o visto na Embaixada da RDA na Guiné-Bissau, também com jurisdição sobre o território de Cabo Verde, para poder seguir viagem e iniciar os meus estudos propedêuticos da língua alemã e os estudos universitários de Direito na cidade de Leipzig. Nesse mesmo dia, fui acordado a altas horas da noite por alguém e qual não foi a minha surpresa (mais uma!) quando me deparei não com um irmão, o esperado Orlando, mas com dois irmãos, o esperado Orlando e o absolutamente inesperado Nhonhô! Foi deveras comovente o nosso reencontro de irmãos e fizemos por passar juntos por excelentes e prazerosos momentos em companhia cada qual da sua miúda de circunstância, no meu caso e no caso do Nhonhô, originárias da Guiné-Bissau, mesmo se vivendo ainda o rescaldo do golpe de Estado, dito reajustador, de Nino Vieira contra Luís Cabral, ocorrido a 14 de Novembro de 1990, pondo fim ao princípio cabraliano e paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde e ao titubeante e cada vez mais desacreditado processo de união orgânica entre as duas repúblicas irmãs independentes e soberanas. Curiosamente, essa minha namorada bissau-guineense de Lisboa era filha de pais caboverdianos e falava razoavelmente alemão, porque licenciada em Germânicas. No caso do Orlando, a namorada alemã-ocidental estava ausente no país natal, a Alemanha Federal. Eu estava de passagem por Lisboa, tendo sido obrigado em razão do imprevisto encontro em Lisboa com os meus irmãos Nhonhô e Orlando a passar parte das férias de Verão do ano de 1981 na grande, luminosa e bela cidade da beira-Tejo, até então desconhecida para mim, antes de seguir viagem para completar as mesmas férias de verão em Cabo Verde, onde ansiava por encontrar o meu filho primogénito Z’hay (Frederico José Correia Hopffer Cordeiro Almada, de seu nome completo), nascido a 30 de Abril de 1980 durante a minha ausência na Alemanha, a sua mãe e minha mãe-de-filho Venulda, a minha adorada mãe Júlia, os meus amados irmãos David e Benny, as minhas amadas irmãs Mariazinha e Lurdes, a minha querida prima-irmã Edna, a minha respeitada irmã de criação Veninha, os meus estimados sobrinhos e sobrinhas (filhos e filhas do David, da Mariazinha, da Lurdes e do Rui) e os meus demais parentes bem como os saudosos amigos que ficaram na terra-mãe. Encontrei a cidade da Praia e uma orgulhosa ilha de Santiago em plena euforia musical pela vibrante febre do funaná, cujas poderosas sonoridades propiciadas pelo génio musical de Catchás/Katxás (Carlos Alberto Martins) e pela mestria vocal e instrumental do conjunto Bulimundo já conhecia muito bem, em virtude de o nosso irmão David, um dos mais importantes promotores da Festa do V Aniversário da Independência Nacional de Cabo Verde e da correlativa ascensão ao estrelato musical do conjunto Bulimundo, ter-nos enviado, ao Nhonhô e a mim, a gravação do seu célebre espetáculo no Cineteatro Municipal da cidade da Praia e que a partir daí era ouvida em todas as festas promovidas pelos estudantes caboverdianos residentes na RDA (e suponho que também na Roménia) e tinha suscitado um geral entusiasmo nos estudantes caboverdianos e africanos nossos colegas e mesmo em outros estudantes estrangeiros em geral. Nessa ocasião, o Benny veio expresssamente da cidade do Mindelo para passar a férias comigo. 

A partir do meu feliz reencontro com a Venulda, instalou-se irreversivelmente um dilema no meu coração dilacerado que doravante se dividia por duas paixões igualmente respeitadas e amadas, uma o verdadeiro primeiro amor adolescentino e juvenil, a minha impetuosa, saudosa, resiliente e bela mãe-de-filho deixada e reencontrada em Cabo Verde, a outra, a minha doce, dedicada e igualmente bela companheira de Madagascar, deixada em lágrimas na amada e amputada cidade de Leipzig. Anos depois, seria o Nhonhô a desatar os nós, alertando-me primeiramente para certas situações menos próprias, se bem que esperadas, resolvendo-se os imbroglios e em seu devido tempo e cada um por sua vez, cada uma das vezes todavia sempre com imensa dor e a necessária dose de mágoa pelos dois amores inelutavelmente desfeitos e sempre com muita pena pelo desconsolo dos filhos tidos com as minhas duas outrora muito amadas mães-de-filho. 
De volta de Cabo Verde, passei de novo por Lisboa para encetar a minha longa viagem de comboio de regresso a Leipzig. Nessa altura, e com o Nhonhô já regressado à Roménia, encontrei o Orlando acompanhado da sua namorada alemã ocidental e doeu-me muito deixá-los para trás, sobretudo ao Orlando que tanto teria a fazer em Cabo Verde, se se abalançasse a regressar a Cabo Verde para finalmente ajudar a nossa mãe e tomar conta das nossas propriedades do Pombal e não só, ou, até, para conseguir uma bolsa de estudos para continuar os estudos interrompidos ou encetar novos estudos superiores. 

Somente voltaria a ver o Nhonhô depois do meu regresso dos estudos universitários. Nessa altura passei a morar no T1 que lhe foi atribuído na chamada zona do Prédio do bairro da Achada de Santo António, até me ter sido atribuído um T1 no Lar da Terra Branca onde se instalaram vários jovens quadros regressados dos estudos no estrangeiro, muitos deles actualmente colocados em altos cargos do Estado ou em empresas privadas. De entre eles, recordo-me muito bem do Mário Camões, do bissau-guineense Alfredo (Fefé) Monteiro, então casado com a minha amiga da adolescência e da juventude praianas Arminda Barros, que conheceu eram ambos estudantes na União Soviética, do Benfeito Mosso Ramos, do Joaquim (Djack) Furtado, das FARP, do actual Ministro Alexandre Monteiro…Nessa altura, era o Gabinete do Primeiro-Ministro que, por solicitação dos respectivos ministérios, atribuia as casas do Estado aos funcionários públicos e havia uma grande competição por esses autênticos bens raros, termo que, depois, durante as discussões públicas da Tese Geral do Congresso do PAICV de 1988, se tornaria muito popular e entraria no jargão político corrente. Quem conseguisse um apartamento do Estado, mesmo que fosse um T0, poderia considerar-se um privilegiado, pois que as rendas das casas privadas eram consideradas exorbitantes e simplesmente incomportáveis ou dificilmente comportáveis para os baixos vencimentos auferidos na função pública, mesmo sendo-se técnico superior, como eram o meu caso e o caso do Nhonhô. Havia por isso igualmente uma grande competição para a nomeação para cargos dirigentes na Administração Pública e no sector empresarial do Estado, pois que essas nomeações implicavam quase automaticamente a atribuição de algumas regalias, como sejam casa e viatura de serviço (do Estado) devidamente fornecida de combustível, além dos vencimentos e subsídios devidos pelo exercício de cargos dirigentes, designadamente como director de serviços, director-geral, presidente de instituto público, gestor de empresa pública e equiparados. Muito apetecíveis eram também as viagens ao estrangeiro integrados em delegações oficiais em razão das cobiçadas ajudas de custo que nessas ocasiões eram atribuídas. Pouco tempo depois da minha nomeação como técnico superior da Secretaria-Geral do Governo fui nomeado como adjunto dos mesmos serviços e, depois, como director dos seus serviços jurídicos e de legislação. Foi nessa condição e com a vinda eminente da minha companheira de muitos anos na Alemanha de Leste, a malgache Isabelle Clémence Andriamaheninarivo, que me foi atribuído o T1 no Lar da Terra-Branca. A Isabelle ainda foi recebida por mim no T1 do Nhonhô, indo o Nhonhô passar a noite no T2 vizinho dos amigos  Zé (José Luís) Sá Nogueira e Loló (Glória) Martins , mas nos dias seguintes à sua chegada à cidade da Praia, via ilha do Sal, onde funcionava o único aeroporto internacional do país e onde foi recebida, a meu pedido, pelo meu amigo Naty Lima, mudámos para o T1 do Lar da Terra Branca que me fora atribuído. Alguns anos depois, o nascimento eminente, em 11 de Maio de 1989, do meu segundo filho Sven (Sven António Hery Andriamaheninarivo Hopffer Cordeiro Almada, de seu nome completo) ocorreu já no T3 que me foi atribuido no mesmo bairro da Terra Branca para, por assim dizer, suceder como inquilino do senhorio Estado, na altura representado pelo IFH (Instituto de Fomento da Habitação), ao meu amigo e colega de trabalho na Chefia do Governo de Cabo Verde, Manuel Delgado, entretanto emigrado para Portugal com a mulher Clara Seabra, minha antiga professora liceal de português, e os seus dois filhos menores.
Esses tempos, os celebrados anos oitenta do século XX, foram tempos de muitas festas e de febril actividade cultural. Essa mesma actividade cultural resultaria na fundação do Núcleo Pró-Cultura por Kaká Barboza (Carlos Alberto Barbosa), Nhelas Spencer (Daniel Spencer Brito), Fátima bRITO Monteiro (depois expatriada para os Estados Unidos da América) e por mim próprio. O mesmo grupo, cujo nome foi uma criação minha e do Nhelas Spencer, foi depois alargado a outros criadores nos domínios da literatura, das artes plásticas, da música e da cinéfilia num total de quase uma trintena de pessoas, assim culminando na criação, no Lar da Terra Branca, no dia 22 de Março de 1986, exactamente cinquenta anos depois da publicação do primeiro número da revista Claridade, do Movimento Pró-Cultura, de cuja vertente literária eu aparentava ser o líder e cuja vertente musical, dirigida pelo Kaká Barboza, o Nhonhô também integrava. Objectivos fundamentais do Movimento Pró-Cultura eram  a contribuição para a promoção do surgimento e do florescimento de uma nova geração cultural, do pluralismo estético e estético-ideológico bem como da liberdade de criação literária, artística e cultural e da criação das condições para o seu exercício efectivo.  Da criação do Movimento Pró-Cultura resultaria, por sua vez e subsequentemente, o surgimento e a consolidação de uma nova geração de escritores e de artistas plásticos caboverdianos, revelados primeiramente no suplemento cultural Voz di Letra (dez números) do jornal semanário Voz di Povo (doze números mensais, de Março de 1986 a Março de 1987), coordenado por Oswaldo Osório e Ondina Ferreira e dinamizado pelo Movimento Pró-Cultura a partir do seu nº 2,  e, depois, consolidada na revista dissidente Sopinha de Alfabeto (dois números), editado pelo Grupo de Debates sobre a Arte e impresso na Gr+ádica do Mindelo com o apoio de Leão Lopes e ao qual se credita o grande mérito de ter revelado o poeta Valdemar Velhinho Rodrigues e o fotógrafo João Nelson, e na revista Fragmentos (quinze números, incluindo números duplos, publicados de Setembro de 1987 a Setembro de 1998), do mesmo Movimento Pró-Cultura, agora alargado a nobvods membros, como o jornalista e contista Fernando Monteiro e o gráfico e artista plástico Djélis (José Luis da Costa Andrade, ambos já falecidos, ao mesmo tempo que iniciávamos e consolidávamos as nossas respectivas actividades e carreiras profissionais. O surgimento e a consolidação de uma nova geração literária ficou ademais atestada em várias publicações periódicas e unitárias caboverdianas publicadsas na altura, com destaque para a colectânea Mirabilis-De Veias ao Sol (Antologia Panorâmica dos Novíssimos Poetas Cabo-Verdianas), com produção do  Movimento-Pró-Cultura apoiada pela Direcção-Geral da Animação Cultural do recém-criado Ministério da Informação, da Cultura e dos Desportos e  organizada  e ultimada  em 1987 e  por mim entregue ao ICL (Instituto Cabo-Verdiano do Livro) para edição, o que viria a ocorrer, em 1991, com a chancela da portuguesa Editorial Caminho, mas em razão das graves  deficiências de revisão detectadas, sujeita a reimpressão, em 1998, desta feita com a chancela do IPC (Instituto da Promoção Cultural) de Cabo Verde. Uma  importante actividade do Movimento Pró-Cultura foi a realização do programa radiofónico “Gentes, Ideias, Cultura”, realizado pelo Danny Spínola e por mim e difundido semanalmente pela Rádio Nacional de Cabo Verde durante um ano e no qual eram divulgados textos dos escritores caboverdianos de todas as gerações, mas em especial dos integrantes da nova geração revelada pelo Movimento Pró-Cultura. Momento alto das actividades promovidas pelo Movimento Pró-Cultura foi a Primeira Semana de Arte Integrada realizada no Palácio da ANP e na Casa Padja do Parque 5 de Julho na cidade da Praia em homenagem a Amílcar Cabral, tendo o su acto de inauguração no Palácio da Honra comentado com a alta e honrosa presença de Aristides Pereira, Presidente da República de Cabo Verde e lugar-tenente de Amílcar Cabral, como foi devidamente enfatizado na altura. Integrando exposição de artes plásticas e artesanato no Átrio do Palácio da ANP, espetáculo musical com Nha Násia Gómi, Nhu Ntóni Denti di Oru e vários importantes músicos contemporâneos caboverdianos, como Ano Nobo, Kaká Barboza, Daniel Rendall, Nhelas Spencer, Nhonhô Hopffer, Elísio Daria (Body), Calú Freitas, entre outros,  espetáculo de teatro com o grupo OTACA (Oficina de Teatro da Assomada), de Narciso Freire, declamação de poesia e sessões musicais na Casa Padjja do Parque Cinco de Julho da cidade da Praia, a Primeira Semana de Arte Integrada do Movimento Pró-Cultura foi um grande e retumbante  sucesso, apesar da oposição activa e do boicote de alguns protagonistas da cena cultural praiense, pois que permitiu a definitiva afirmação do novo movimento cultural, tendo ficado marcada por alguns factos de suma importância, como sejam: a actuação pela primeira vez no nobre e, at´+e então, quase inacessível espaço do Palácio da ANP (Assembleia Nacional Popular) da grande finadera e batucadera Nha Násia Gómi, do grande homem do batuco  Nhu Ntóni Denti de Oru e dos respectivos grupos de batuco; a actuação na Casa Padja do Parque 5 de Julho de Sema Lópi e do seu grupo de ferro e gaita; a revelação na exposição de artes plásticas patente no Átrio do Palácio da ANP de novos e qualificados pintores e artesãos, como José Maria Barreto, Lú di Pala, Osvaldo Azevedo, Mito, Djélis, José Kassanaia, Mário Rito, Ruja, etc. Etc.  No mesmo ano de 1986, em Novembro, realizou-se o Simpósio Internacional sobre a Cultura e a Literatura Cabo-Verdianas, organizado pela Fundação Amílcar Cabral para comemorar, com pompa e circunstância, o Cinquentenário da célebre revista Claridade. A realização do Simpósio Claridade, como ficou popularmente conhecido, contou com a presença e a participação de dezenas de escritores caboverdianos e de estudiosos, nacionais e estrangeiros, da literatura e da cultura caboverdianas vindos de vários países. Outrossim, o Simpósio Claridade  representou indubitavelmente um  momento alto e único da vida político-cultural no período pós-independência de Cabo Verde por ter assinalado a reconciliação definitiva entre os chamados proclamadores da independência literária de Cabo Verde, no dizer do próprio Aristides Pereira, Presidente da República presente no acto inaugural do evento, e os auto-denominados proclamadores da independência política de Cabo Verde. Os novos escritores revelados pelo Movimenmto Pró-Cultura bem como outros surgidos à luz do dia nos anos setenta e oitenta do século XX foram todos convidados para participar e estiveram presentes no Simpósio Claridade, tendo-se-lhes sido pagas as passagens aéreas, os custos da estadia e as correspondentes ajudas de custo na cidade do Mindelo durante os dias que durou o magno evento. Em 1988, seria a vez da realização na cidade da Praia do Primeiro Encontro de Música Nacional, organizado pelo recém criado Ministério da Informação, da Cultura e dos Desportos através da Direcção-Geral da cAnimação Cultural, liderada pelo músico e musicólogo Eutrópio Lima da Cruz coadjuvado por Carlos Alberto Martins, o famoso ex-líder do grupo musical Bulimundo. O Primeiro Encontro de Música Nacional  foi de grande relevância na medida em que, tendo contado com a participação de importantes músicos vindos de todas as ilhas do país e dos mais diferemntes países de radicação das diásporas caboverdianas, ficou marcado pela consagração expressa de todos os géneros musicais caboverdianos (desde o batuco à nascente música erudita caboverdiana) e a festiva reconciliação entre os seus diferentes actores e protagonistas de todas as gerações e tendências musicais. O Primeiro Encontro da Música Cabo-Verdiana ficaria ademais marcado pelo inesperado falecimento do icónico Catchás/Katxás dos Bulimundo em resultado de um acidente de viação ocorrido momentos depois da realização no Salão Nobre/Grande Auditíorio do Palácio da ANP  da Grande  Gala de Encerramento do Primeiro Encontro da Música Nacional, na qual, aliás, também actuou o meu irmão Nhonhô. O enterro de Catchás/Katxás contaria assim com a presença da fina flor de todos os géneros musicais caboverdianos que, assim, prestou a devida e merecida homenagem no cortejo fúnebre musical que acompanhou ao cemitério da Várzea o féretro de Carlos Alberto Martins, um dos organizadores do magno Encontro acabado de realizar e um dos mais importantes músicos caboverdianos de todos os tempos. Alguns anos depois da fundação do Movimento Pró-Cultura e da realização do Simpósio Claridade, e graças à crescente dinâmica cultural criada na cidade da Praia, seria a vez da criação, em 1989, da Pró-Associação dos Escritores Cabo-Verdianos e, depois, da Associação dos Escritores Cabo-Verdianos (AEC), cujos projectos de Estatutos e Regulamento  de Assembleia Constitutiva foram elaborados por mim. A Assembleia Constitutiva da AEC, realizada num dos Auditórios do Palácio da ANP (Assembleia Nacional Popular), contou com a presença maciça dos novos escritores revelados pelo Movimento Pró-Cultura, de escritores consagrados residentes em várias ilhas do país, bem como de Gabriel Mariano, vindo expressamente de Portugal para o efeito, e de Luandino Vieira, em representação da LEC (Liga dos Escritores dos Cinco)  e de alguns escritores angolanos em representação da UEA (União dos Escritores Angolanos), todos em trânsito por Cabo Verde a caminho de Lisboa, capital portuguesa, para assistirem aos trabalhos do Primeiro Congresso dos Escritores de Língua Portuguesa. O texto da Proclamação da AEC, redigido por Oswaldo Osório,  foi lido por mim a pedido expresso do mesmo Oswaldo Osório, aliás, .eleito por unanimidade como o primeiro Presidente do Conselho Coordenador da AEC, Nessa ocasião fui também eleito para o Conselho Coordenador da AEC como seu responsável pelas relações externas. Também nessa ocasião foi também eleito o escritor Baltasar Lopes da Silva como o primeiro Presidente Honorário da AEC.

 O país vivia um clima de grande distensão e expectativa políticas, ao mesmo tempo que pululavam as bocas e os panfletos nocturnos pondo em causa o regime de partido único socializante então vigente em Cabo Verde, mas certamente fadado a desaparecer mais cedo ou mais tarde, conforme diziam os nítidos sinais emitidos do Leste do Mundo, em especial da União Soviética pós-Brejnev e pós-Chernenco e dos antigos países onde fizemos os nossos estudos universitários, designadamente a Roménia e a RDA. Para além dos seus antigos amigos das tocatinas e serenatas na cidade da Praia e na vila da Assomada, como o Manel Barrusco (Emanuel Galina Monteiro), entretanto regressado com o irmão Liche dos estudos universitários na Bulgária, o Nhonhô continuou muito ligado aos seus antigos colegas da Roménia, com os quais tinha desenvolvido intensa actividade cultural, tendo na altura criado na cidade da Praia um grupo musical que, além do Nhelas Spencer, do Elísio Faria (Body), do Braz Andrade e de outros caboverdianos originários de várias ilhas, integrava também a Elisabeth, uma cooperante canadiana, de origem jugoslava, mais precisamente sérvia, se não me engano, e notória e qualificada amante da música caboverdiana que interpretava com muito primor e inegáveis competência e beleza.
Segundo me foi dado ver e assistir, o julgamento e o fuzilamento do casal Nicolae e Elena Ceaucescu no natal de 1989, apesar de notoriamente expeditivo e contra todas as regras de um Estado mínima e verdadeiramente de Direito, foram tidos pelos antigos estudantes caboverdianos na Roménia como justos e oportunos, a eles que viveram a penúria extrema e as luxuriosas e megalómanas manigâncias do mesmo casal que engendrou um Estado totalitário dito socialista com o povo romeno despojado de todos os direitos cívicos e de todas as liberdades fundamentais e sobrevivendo na quotidiana precariedade cívica e na maior escassez dos bens de consumo essenciais, a pretexto do pagamento rigoroso e pontual pelo regime no poder da dívida externa romena. Foi esse estado de coisas no país dos Cárpatos que devem ter levado o Nhonhô e a sua namorada Nagwa a extasiar-se com a RDA e, até, a considerar que, em comparação com a Roménia da altura, nós, estudantes caboverdianos na RDA, vivíamos num autêntico paraíso. Anote-se que essas palavras foram proferidas por quem tinha o hábito de visitar regularmente a Alemanha Federal e vários outros países ocidentais, com destaque para a Itália e Portugal, durante as férias dos estudos na Roménia em razão de anteriormente ter tido uma namorada alemã-ocidental e de ter feito assíduas visitas aos nossos irmãos, designadamente o Benny, o Orlando e o Rui, nesses dois países da Europa do Sul. Tivéssemos podido atravessar o Muro na altura e visitar Berlim Ocidental e a sua exuberância de bens de consumo de alta qualidade talvez tivessem sido mais comedidas em entusiasmo as palavras do Nhonhô relativas à RDA e à sua profusão de bens de consumo de qualidade, patentes sobretudo nas famosas lojas Exquisit, mas também no Konsument de Leipzig e em lojas similares de geral e comum acesso público em Berlim Oriental. É óbvio que na altura nada sabíamos das arbitrariedades da STASI leste-alemã, todavia certamente mais sofisticada, mais comedida e mais civilizada que a SECURITATE romena no controlo total que exercia sobre a sociedade e os cidadãos leste-alemães.

12. O certo é que a Queda do Muro de Berlim nos entusiasmou a todos, antigos estudantes da RDA e da Roménia, então definitivamente regressados ao país, uns porque queriam ver emergir uma sociedade socialista verdadeiramente democrática e de rosto autenticamente humano, outros porque queriam ver definitivamente varrida da História o que consideravam ser um sistema social de escassez e/ou de penúria absoluta para o povo e de inconcebíveis luxos para a classe dirigente acoplado a um regime político nitidamente totalitário ou, pelo menos, excessivamente autoritário, depois das trágicas vivências dos tempos de Estaline e das suas contemporâneas autocracias de esquerda emergentes em consequência da derrota nazi-fascista na Segunda Guerra Mundial.
Depois de algum compasso de espera, a mudança política chegou também a Cabo Verde. Seguimos ambos, o Nhonhô e eu, com muita atenção os trabalhos preparatórios do Congresso de 1988 do PAICV. Sentimo-nos relativamente defraudados por não se ter aproveitado essa oportunidade soberana e histórica e se ter declarado a abertura do sistema político caboverdiano à democracia pluripartidária, tanto mais que proliferavam os debates com a participação de círculos assumidamente críticos do regime vigente e, até, oposicionistas, incluindo nos meios públicos de comunicação social, e nos quais  se invectivava abertamente o regime político de partido único e se pugnava por um sistema político plenamente democrático, isto é, com consagração constitucional e legal do direito de criação de associações e partidos políticos e do direito de oposição política. Por isso, saudámos efusivamente o anúncio da Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990, tendo ambos assistido à conferência de imprensa dada nessa ocasião,  no Salão de Banquetes do Palácio da Assembleia Nacional Popular, por Pedro Pires, o Secretário-Geral Adjunto do PAICV e considerado homem forte do regime de democracia nacional revolucionária, isto é, do regime de partido único socializante implantado por quinze anos em Cabo Verde. Não me esqueci nunca do que nos disse a ambos, ao Nhonhô e a mim, o José Manuel Pinto Monteiro nessa altura, depois da acima referida conferência de imprensa de Pedro Pires: “Agora vão ver!”.
Nessa circunstância, a nossa postura foi de grande expectativa, na medida em que nem  eu nem o Nhonhô éramos militantes do PAICV, nem sequer pretendíamos encetar uma qualquer militância política seja em que partido fosse, confesse-se que, em certa medida, porque considerávamos ambos que, tendo sido inquestionavelmente uma ditadura o regime instituído pelo PAIGC/PAICV, em  razão primacialmente do monopólio no exercício do poder político detido por esse partido africano da independência de Cabo Verde e antigo movimento de libertação bi-nacional no poder durante quinze anos, todavia pouco tinha a ver esse mesmo regime mitigado de partido único socializante com os regimes totalitários e em acelerado desmoronamento no Leste da Europa, como nos parecia que queria fazer crer a oposição emergente. Entretanto, ausentei-me durante um ano em Portugal para frequentar o CEJ (Centro de Estudos Judiciários). Foi pois a partir de Lisboa que passei a seguir os acontecimentos no mundo, no Leste da Europa, em África e em Cabo Verde. Foi a partir de Lisboa que segui pela televisão à festa da esmagadora vitória do MpD e do seu candidato presidencial António Mascarenhas Monteiro nas eleições legislativas de 13 de Janeiro de 1991 e nas eleições presidenciais de 17 de Fevereiro de 1991. Foi a partir de Lisboa que assisti à invasão do Koweit pelo Iraque e pela sua libertação pelos Estados Unidos da América e o pelos seus aliados ocidentais e médio-orientais perante a passividade de uma União Soviética atolada na perestroika e na glasnost iniciadas por Mikhail Gorbatchov e em plena mudança caótica e com fortes indícios de desagregação.
De todo o modo, o Nhonhô foi candidato municipal no seu concelho natal de Santa Catarina nas eleições autárquicas de Dezembro de 1991, depois e apesar da estrondosa derrota do PAICV nas eleições legislativas de 13 de Janeiro de 1991 e da ainda mais estrondosa derrota do seu candidato presidencial Aristides Pereira nas eleições presidenciais de 17 de Fevereiro de 1991, tendo sido ele um dos dois eleitos municipais nas listas do PAICV numa Assembleia Municipal ocupada em mais de 4/5 por eleitos municipais do MpD, situação que somente viria a ser revertida com a vitória por maioria qualificada de José Maria Pereira Neves e do PAICV nas eleições autárquicas de 1999 em Santa Catarina, a que se seguiria a segunda alternância política democrática com a vitória com maioria absoluta do PAICV liderado por José Maria Neves nas eleições legislativas de 14 de Dezembro de 2001 e de Pedro Pires nas eleições presidenciais subsequentes, ainda que muito à tangente, por escassos doze controversos votos.
Nessa altura, todos nós, o Nhonhô em Cabo Verde, o Benny na Itália e eu em Portugal, engajámo-nos no indefectível apoio à candidatura presidencial do nosso irmão David, que todavia ficou pela primeira volta dessas eleições presidenciais de 2001, tal como a candidatura presidencial de Jorge Carlos Fonseca. Embora o David não tenha declarado apoio expresso a nenhuma das candidaturas presidenciais passadas para a segunda volta, designadamente de Pedro Pires e de Carlos Veiga, alegadamente por a sua candidatura ter sido independente e ele David não ser dono dos votos dos seus apoiantes, eu e os meus irmãos Nhonhô, Benny e Orlando, as minhas irmãs Mariazinha, Tuginha e Lurdes, os meus sobrinhos e sobrinhas e, até, a mãe Júlia, bem como grande parte dos apoiantes da candidatura presidencial do David, mormente os oriundos do PAICV e do PRD, declarámos ou apoiámos fatualmente a candidatura presidencial de Pedro Pires, depois vencedora por uma unha negra, contra a candidatura de Carlos Veiga, depois derrotada por escassos dozes votos.
O mesmo apoio nosso ao David, de todos os irmãos e quase todos os familiares Hopffer Almada, verificou-se novamente, nas eleições presidenciais de 2011, continuando eu ausente em Portugal, quando ele, juntamente com Aristides Lima e Manuel Inocêncio Sousa, dois altos dirigentes do PAICV e dos órgãos políticos de soberania da República de Cabo Verde, teve de se submeter previamente ao escrutínio do Conselho Nacional do PAICV para a escolha do candidato presidencial a apoiar por esse partido na altura no poder durante duas legislaturas e dois mandatos presidenciais. Eliminado Aristides Lima na primeira volta do escrutínio interno do Conselho Nacional do PAICV, o David foi por sua vez eliminado na segunda volta do mesmo escrutínio interno por Manuel Inocêncio Sousa, que, paradoxalmente, contou com o apoio quase unânime dos apoiantes de Aristides Lima. Quiçá e aparentemente apostando em Manuel Inocêncio Sousa, o candidato presidencial depois apoiado oficialmente pelo PAICV e considerado o mais fraco entre os três pré-candidatos presidenciais, tanto nas sondagens como no seu perfil para o exercício do cargo presidencial, os apoiantes de Aristides Lima lançaram o seu candidato derrotado no escrutínio interno acima referido como candidato presidencial alegadamente independente e da cidadania, mas que efectivamente se veio a comprovar como uma candidatura rebelde apoiada pela ala minoritária do PAICV, capitaneada por Felisberto Vieira Alves, e pela UCID. É essa mesma ala minoritária do PAICV que, presumivelmente, viria a optar pela candidatura apoiada pelo MpD e a final vencedora de Jorge Carlos Fonseca contra a candidatura de Manuel Inocêncio Sousa, oficialmente apoiada pelo PAICV, incluindo pela antiga ala apoiante de David Hopffer Almada. Se bem que convergentes no apoio final a Jorge Carlos Fonseca, o Nhonhô e eu divergimos temporariamente, pois que enquanto ele apostou imediatamente na candidatura de Jorge Carlos Fonseca depois da eliminação do nosso irmão David no escrutínio interno do Conselho Nacional do PAICV e da sua sequente e peremptória recusa em apresentar uma candidatura presidencial independente à revelia da candidatura de Manuel Inocêncio Sousa, oficialmente apoiada pelo PAICV, à semelhança do que fizera Aristides Lima, nas mesmas concretas circunstâncias eu apostei em Aristides Lima, por razões atinentes sobretudo ao seu perfil presidencial e à nossa comum jornada na antiga RDA como estudantes de Direito, só depois da eliminação de Aristides Lima na primeira volta das eleições presidenciais apostando em Jorge Carlos Fonseca contra Manuel Inocêncio Sousa, por considerar que no sistema constitucional caboverdiano este último tinha mais o perfil, aliás, para mim excelente em face da obra feita como Ministro dos Transportes e das Obras Públicas, de Primeiro-Ministro e estava por isso mais talhado para ser Chefe do Executivo do que para ser Presidente da República e Chefe de Estado com o necessário perfil de árbitro e moderador do sistema político.
Como é sabido, o Nhonhô posicionou-se frontalmente em petição pública contra a mudança dos símbolos nacionais, em especial da bandeira nacional, por, entre outras razões relevantes, essa mesma mudança não ter sido sujeita a referendo popular. A aludida mudança dos símbolos nacionais, mesmo se envolta em muitas controvérsias, viria a ser consumada com a adopção da nova Constituição da República Caboverdiana de Setembro de 1992.
Entretanto, o Nhonhô foi sucessivamente eleito nas listas do PAICV como deputado municipal no seu concelho natal de Santa Catarina de Santiago, até ser escolhido por duas vezes para integrar o Conselho da República por opção do Presidente da República em exercício de entre personalidades representativas das várias sensibilidades políticas presentes na Assembleia Nacional, tendo a escolha recaído em Frederico Hopffer Cordeiro Almada em razão de, apesar de ter sido um convicto apoiante da eleição de Jorge Carlos Fonseca para Presidente da República, primeiramente contra as candidaturas presidenciais de Manuel Inocêncio Sousa, apoiado pelo PAICV, e de Aristides Lima, apoiado pela ala minoritária do PAICV capitaneada por Felisberto Vieira Alves e pela UCID, depois, na segunda volta, contra a candidatura presidencial de Manuel Inocêncio Sousa, o Nhonhô ter sido sempre politicamente conotado com o PAICV e considerado ademais um activo adversário das políticas implementadas pelo MpD, situando-se assim na trincheira política oposta à da sua esposa Maísa Salazar Antunes, uma indefectível apoiante do MpD e do seu líder histórico Carlos Veiga e, depois, das suas candidaturas presidenciais e das candidaturas presidenciais de Jorge Carlos Fonseca. 

13. Ao falar da nossa infância na Assomada e da nossa adolescência e juventude na cidade da Praia, dissemos que o Benny era um magricelas a quem todos chamavam Merinha. Pois bem, depois da sua ida para a Itália a mudança física do Benny foi estrondosa. Doravante detentor de um físico robusto, ademais muito elegante nos seus fatos impecáveis, como pude constatar com grande estupefacção no seu primeiro regresso a Cabo Verde, ainda eu morava no Lar da Terra Branca, o Benny tornou-se num indivíduo corpulento, dado para o gordo, e de baixa estatura, nisto se diferenciando do Nhonhô que, aumentando nitidamente de peso após uma primeira estadia de férias nos Estados Unidos da América era ainda mais alto que o nosso irmão Orlando e tão alto como o nosso irmão David, tendo os três herdado a alta estatura do nosso pai António. A contrário, parece que os nossos irmãos Benny e Rui herdaram a baixa estatura da nossa mãe Júlia, situando-me eu, pelo meu lado, numa posição mediana com os meus 1, 75 cm. Ademais e referindo-me à nossa infância, adolescência e juventude na Vila da Assomada e na cidade da Praia, desabafara que desde muito cedo que o Benny carregou consigo a fama de traquinas, gozão e com falta de juízo. O interessante nisso tudo é que, depois de muitas vicissitudes e de muito penalizado pelas suas traquinices e pela sua alegada falta de juízo, em suma, depois de muitos coices da vida, o Benny transformou-se no homem mais sério da nossa família, ademais absolutamente avesso ao álcool e ao tabaco, de que parece ter-se libertado definitivamente. Apesar das vicissitudes da vida, acima referidas, e de que tomei conhecimento pormenorizado quando o visitei em Roma nas férias de verão de 1991, e mais ainda por ter sabido ultrapassar essas mesmas vicissitudes, o Benny era muito querido e amado pela sua esposa Ivete e pelos seus filhos Cathleen e Bennyzinho e motivo de orgulho e exemplo de auto-superação para toda a nossa família restrita e alargada. Voltaria a visitar o Benny uma outra vez em 1997 em companhia da Isabellhe, minha companheira malgache e mãe do meu segundo filho, Sven,  quando vinha de uma participação na Feira de Turismo de Berlim que aproveitara para visitar a amada cidade de Leipiz, cuja estação central de comboios e cujos prédios antigos do seu emblemático centro  histórico tinham sido, para minha muito agradável surpresa  totalmente renovados,  ao mesmo tempo que toda a antiga Alemanha de Leste se encontrava mergulhada na xenofobia anti-islâmica, anti-negra e anti-emigrantes. Nessa ocasião, o Benny tinha completamente regularizado a sua situação laboral com o Consulado Geral de Cabo Verde em Roma, libertando-se assim dos trabalhos ocasionais que era obrigado a fazer para contribuir de forma digna para o sustento da família  e começado a estudar Direito, vindo depois de muitos esforços a licenciar-se pela  Universidade Sapienza de Roma. Munido da sua licenciatura  e com uma larga e aprofundada experiência dos serviços dos Registos e do Notariado, o Benny era Conservador dos Registos e do Notariado na cidade da Praia, onde passou a residir com a mulher Ivete, depois de ganhar o respectivo concurso de nomeação, tendo construído nessa cidade e sob a supervisão do seu irmão arquitecto Nhonhô o edifício que agora funciona como sede da Fundação Pedro Pires para a Liderança. Quando tudo parecia correr-lhe totalmente de feição, a morte sobreveio através de um ataque cardíaco fulminante quando ele fazia o seu habitual jogging/footing matinal. Soube da súbita e inesperada morte do Benny através de um telefonema do nosso irmão David, que começou por me dizer que tinha uma má notícia familiar para me comunicar. Pensei logo que fosse a nossa mãe, já com 98 anos de idade, o alvo da má notícia, mas nunca por nunca o Benny. Por isso, entrei imediatamente em estado de profundo choque. Foi de tal forma repentina e absolutamente inesperada a morte do Benny que logo depois morreu a nossa mãe, já quase centenária mas nunca preparada, como, aliás, todas as mães, para a morte dos filhos, mormente os muito queridos e relativamente novos. Pouco tempo depois de ter regressado pela primeira vez a Cabo Verde depois da sua emigração para os Estados Unidos da América, propositadamente para visitar a sepultura da mãe Júlia , morria o Orlando neste mesmo país, levado por uma pancreatite, pelo que se diz sempre fatal e mortífera. Tempos antes da sua morte e depois de alguns anos de longos silêncios entrecortados por esporádicos contactos telefónicos, o Orlando telefonava-me frequentemente, por vezes várias vezes ao dia, para conversarmos, incluindo sobre a minha participação no programa radiofónico Debate Africano, da RDP-África e considerando o programa e a minha prestação como muito bons. O último telefonema recebido do Orlando era para ele me informar que estava a caminho de um hospital de Boston para se sujeitar a uma intervenção cirúrgica que lhe poderia salvar a vida. Infelizmente, não foi assim e a intervenção cirúrgica, na qual depositava todas as esperanças,  levou-lhe a vida para todo o sempre do nunca mais.  Se a essas mortes de familiares próximos somarmos alguns factos políticos, designadamente as estrondosas derrotas do PAICV liderado pela nossa sobrinha Janira e dos seus colegas e camaradas de partido nas eleições legislativas e autárquicas, poderíamos concluir que 2016 foi o annus mais horribilis até agora ocorrido com a família Hopffer Almada. A morte dos nossos dois irmãos e da nossa mãe abalaram particularmente o Nhonhô que se tornara inseparável do Benny após o regresso deste da Itália e era outrossim muito ligado à nossa mãe, depois de se ter tornado o principal gestor dos seus bens, designadamente do prédio Pombal da cidade da Praia e de cuja edificação ele fora o responsável directo. Ademais, o Nhonhô valera-se da sua qualidade de arquitecto para remodelar a nossa casa da Assomada com o fito de proporcionar maior conforto e maiores comodidades à nossa mãe, já muito idosa, tendo feito o mesmo com o nosso sobrado do Pombal, pensando certamente nas suas mais-valias e valências enquanto polo de turismo rural nas ribeiras de Sedeguma e dos Engenhos. Amiúde o Nhonhô expressava as suas sentidas e genuínass saudades do Benny e se queixava da imensa falta que ele lhe fazia. Quanto ao Orlando, o Nhonhô era-lhe também muito ligado desde os tempos em que ia passar férias com ele em Coimbra e, depois, em Lisboa, e se divertiam em tocatinas e serenatas, já que o Nhonhô gostava de cantar e o Orlando de tocar violão. Depois do primeiro regresso prolongado do Orlando a Cabo Verde e da sua estadia na cidade da Praia, onde passou a trabalhar no Instituto Cabo-Verdiano do Cinema (ICC) e a morar no Lar da Terra Branca, o Nhonhô era certamente o irmão com quem melhor se entendia. Foi com o apoio do ICC que o Orlando consegui uma bolsa de estudos para fazer uma formação no muito prestigiado Instituto Internacional de Cinema de Havana patrocinado pelo célebre escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez, Prémio Nobel da Literatura, e ao qual infelizmente e em razão de vicissitudes várias não pôde regressar depois de umas férias escolares em Cabo Verde. Depois de regressar de Havana, em princípio somente de férias, o Orlando pôde retornar a Portugal em 1991 para fazer um estágio de um ano na Cinemateca Portuguesa. No seu segundo regresso prolongado a Cabo Verde, o Orlando passou a residir com a nossa mãe na sua casa da Assomada, até embarcar para os Estados Unidos da América onde depois de um relativo sucesso na sua integração laboral e social veio a adoecer e a falecer. 

Foi em tempo anterior às mortes do Benny, da mãe Júlia e do Orlando, mas já durante a minha segunda estadia prolongada em Lisboa, que morreu o Rui, mais conhecido em Portugal por Miguel, o seu nome de igreja ou registo oficial. Na altura e depois de alguns graves dissabores com a diabetes, o Rui morava   sozinho na cidade de Albufeira no Algarve, amputado das duas pernas. Alertados eu e a minha irmã Mariazinha  da sua morte pelo hospital onde foi internado e falecer por causa da maldita diabetes, viajámos imediatamente para essa cidade algarvia para tratar de proporcionar um enterro digno ao nosso irmão mais velho e prestar-lhe as últimas honras fúnebres. No enterro esteve também presente a Milú (Lurdes Spencer), a antiga mulher do Rui e mãe dos seus dois filhos mais novos e de quem se tinha separado há já muito tempo.
Com as mortes sucessivas e num lapso de tempo muito curto do Benny, da mãe Júlia e do Orlando,  nossos entes queridos muito próximos, adicionados das anteriores mortes do nosso pai António e do nosso irmão Rui, também nossos entes queridos muito próximos, pensámos que já tínhamos tido a dose suficiente de sofrimento.
Mas muito enganados estávamos nós, como mais à frente se verá…

Felizmente que um cancro depois diagnosticado à nossa irmã Tuginha, por indução e como efeito colateral do tratamento por medicação de uma doença da diabetes falsamente diagnosticada, se demostrou como benigno e reversível na sua cura, depois lograda graças mais uma vez aos médicos norte-americanos. Tal sorte não teve a nossa sobrinha Julieta, a filha mais  velha do Rui, neste momento ainda em luta ingente, e, espera-se que com sucesso, contra o cancro que a vem atormentando e que vai combatendo com o apoio da sua família restrita e alargada e do seu marido português.  A Julieta foi criada desde muito pequena pela nossa mãe Júlia e  pelo nosso pai António na nossa casa da Assomada, a quem, aliás, sempre tratou respectivamente por mamá e papá, tal, aliás, como nós, os filhos biológicos da mãe Júlia e do pai António, tratando por mãe Linda a sua mãe Etelvina, uma empregada doméstica  vinda da ilha do Fogo para servir em  muitas casas das gentes abastadas da cidade da Praia e permanecendo  muito amiga da nossa mãe e da nossa família, que visitava nas suas férias, mesmo depois da sua separação do nosso irmão Rui. Quando a Tuginha vivia na Guiné-Bissau, a Julieta foi ter  com ela, e, depois, regressaram ambas a Cabo Verde com o Samory e o Sedikoy, os dois filhos da Tuginha tidos com o muçulmano bissau-guineense Mamadu Cassamá. Ainda a residir na Guiné.Bissau, a Tuginha viria a desfazxer o primeiro casamento e a casar-se de novo, desta vez com um caboverdiano residente igualmente na Guiné-Bissau, sendo ambos os nubentes Testemunhas de Jeová e tendo decorrido em Cabo Verde, na nossa casa da Assomada, o enlace matrimonial do qual viria a nascer uma filha única de nome Suzana, inspirado no nome da nossa avó paterna Suzana de Deus Monteiro.    

A Julieta viria depois a emigrar para Portugal, tal como a sua mãe Linda e a sua irmã mais nova Neusa, também criada pela mãe Júlia desde tenra idade na nossa casa da Assomada. Ao tempo do falecimento do pai delas e nosso irmão Rui, as duas viviam ainda em Cabo Verde. Pelo meu lado, eu já me encontrava na minha segunda prolongada estadia em Portugal aquando  da chegada a Portugal da Neusa e do seu filho William (o Neuso, como eu digo, em razão da flagrante e incrível parecença   entre a mãe Neusa, ou Neusa Deusa, do seu nom,e próprio completo, e o filho William, hoje um jovem pai com família constituída).                  

Durante a minha prolongada estadia em Portugal, o Benny passou algumas vezes por Lisboa, quer para assistir às reuniões do Congresso dos Quadros Cabo-Verdianos na Diáspora de que era um dos delegados pela Itália, quer em outro serviço qualquer quer ainda em trânsito de ou para Cabo Verde. Por sua vez, o Nhonhô passava em Lisboa de férias quase todos os anos ou em trânsito para outros países, como os Estados Unidos da América, a França ou a Itália ou vinha em trânsito de outros países. Numa dessas vezes veio acompanhado da mãe Júlia e da esposa Maísa. Imagine-se a minha alegria por reencontrar a mamã depois de alguns anos sem a ver! Diga-se todavia que eu falava todas as semanas com ela, bem assim com o David, com o Nhonhô e, depois, com o Benny, não só para obviamente saber da família, mas também para obter informações frescas de Cabo Verde para a minha participação no programa Debate Africano, da RDP-África, pelos vistos muito ouvido e tido em alta consideração em Cabo Verde.
Nos últimos tempos da sua vida e graças às facilidades proporcionadas pelo messenger e pelo whatsapp eu e o Nhonhô falávamos praticamente todos os dias e durante horas a fio, ocorrendo o mesmo quando ele se encontrava em tratamento nos Estados Unidos da América e em condições físicas e psicológicas de comunicar comigo. Durante todo o tempo do seu tratamento nos Estados Unidos da América, o Nhonhô foi impecavelmente apoiado pela nossa sobrinha Krishna e durante o seu primeiro tratamento nesse país também pelas nossas irmãs Lurdes e Tuginha que na altura se encontravam na cidade de Boston. 

 

15. Durante as suas estadias em Lisboa e quando não estava na companhia dos seus familiares mais próximos, eu acompanhava, sempre impaciente, as demoradas deambulações do Nhonhô pelos centros comerciais e pelas suas lojas, com destaque para a FNAC e as lojas de produtos arquitectónicos, e pelos restaurantes e discotecas caboverdianas, com destaque para o restaurante da ACV, a Casa da Morna, onde me lembro de uma vez ele ter cantado a convite do Danny Silva e do Tito Paris, o B.Leza, onde era amiúde convidado a cantar e, ultimamente, o Café de la Musique, do Carlos Jorge Vasconcelos que sempre que o Nhonhô por lá passava o convidava para cantar juntamente com o músico residente e seu amigo Zezé Barbosa.

16. Mesmo doente, o Nhonhô ficou deveras indignado e furioso, quando a Secretária-Geral do MpD apresentou uma queixa à ERC portuguesa a exigir a minha saída do programa Debate Africano da RDP-África, alegando falta de imparcialidade da minha parte nos comentários às eleições legislativas acabadas de acontecer, o que constituía uma mentira absolutamente gritante e clamorosa. O mesmo tinha acontecido anos antes com uma queixa semelhante apresentada à RDP-África pela mandatária para Portugal da candidatura presidencial de Carlos Veiga, tendo merecido essa queixa uma contundente e demolidora resposta do Director da RDP-África na altura, Jorge Gonçalves. Desta feita todavia a Direcção da RDP-África e o novo moderador do programa Debate Africano, João Pereira Silva, viriam a fazer a vontade ao MpD e aos seus talibãs de serviço ao dispensar-nos, a mim, de Cabo Verde, ao mais velho Adolfo Maria, de Angola, e ao ponderado e pedagogo Eduardo Fernandes, da Guiné-Bissau, alegando necessidade de remodelação do mesmo programa, mas mantendo os antigos colegas Abílio Neto, de São Tomé e Príncipe, e Sheila Khan, de Moçambique, a que se juntou o bissau-guineense Tony Tcheka, que, aliás, aprecio muito. Assim, deste modo inusitado e, pela primeira vez, Angola e Cabo Verde ficaram sem voz no programa Debate Africano da RDP-África.
Uma outra vez o Nhonhô acompanhou a esposa, Maísa Marília Salazar Antunes ( assim por dito extenso como o Nhonhô gostava de pronunciar e degustar o nome da querida esposa, mesmo depois de separados) para terem a filha primogénita Nhara Santiago no Hospital da Luz de Lisboa. Uma outra vez ainda foi a Maísa que acompanhou o Nhonhô que teve um ataque cardíaco devido a um quisto, felizmente benigno, alojado no cérebro.

17. O diagnóstico do cancro só viria anos depois, já a filha primogénita do Nhonhô, Nhara Santiago, já estava em Lisboa a frequentar os estudos universitários de Direito, tendo a caçula Frederika Santa Maria começado os estudos universitários pouco tempo antes do agravamento e do desfecho fatal da doença que tiraria o Nhonhô do nosso convívio.
Esse famigerado diagnóstico ocorreu na última vez que nos encontrámos em Portugal, tinha o Nhonhô vindo de uma visita aos filhos do tio Mano na Alemanha, tendo também passado pela Suíça. A sua passagem por Portugal visava também fazer um check-up completo do seu estado de saúde visto estar visível e preocupantemente emagrecido. Nessa altura, foi a a filha Nhara que acompanhou o Nhonhô no hotel, nas sua visitas médicas e o apoiou na satisfação de outras prementes necessidades. Foi nessa altura que os médicos especialistas portugueses diagnosticaram a doença do Nhonhô e lhe disseram que teria somente alguns meses de vida. Munido desse fatal diagnóstico, foi nessas por demais dramáticas circunstâncias que o Nhonhô obrigou-se a buscar desesperadamente outras paragens para a almejada solução do seu candente problema de vida ou de morte, ele que tanto gostava de viver e de usufruir do milagre da vida e do conforto e bem-estar que os resultados do seu trabalho lhe proporcionavam. De todo o modo, a sua ida aos Estados Unidos da América para tratamento suscitou tantas esperanças de cura que foi com imensa alegria que postou e exibiu na sua página do facebook um diploma de mérito que os médicos norte-americanos lhe concederam quando lhe deram alta, com o fito expresso de regressar meses depois para os necessários controles e a continuação do tratamento. Querendo expressar o seu profundo reconhecimento aos médicos oncológicos norte-americanos escreveu a letra da canção “Sobriviventi” que, na altura, me enviou para dar a minha opinião, a qual foi entusiasticamente positiva, tendo essa mesma letra sido depois musicada por Maruka Tavares.
E foi aí que estalou a pandemia da Covid-19 para estragar tudo e começar a desfazer as esperanças de sobrevivência do Nhonhô, infelizmente tornadas cada vez mais ténues.
Impossibilitado de regressar aos Estados Unidos da América durante a pandemia da Covid-19, foi um Nhonhô já muito debilitado que pisou pela última vez o chão da cidade de Boston. Expirado o visto de estadia temporária nos Estados Unidos da América, teve de regressar a Cabo Verde alegadamente para renovar o visto, mas no fundo almejando dar o último suspiro na sua amada terra natal. Os últimos meses da sua vida forma uma verdadeira corrida contra o tempo para ultimar e lançar o seu mais recente legado musical, o cd Sobriviventi.

18. O ativismo cívico foi igualmente uma importante vertente das actividades sociais do Nhonhô. Frequentador assíduo de sessões de lançamento de livros, de exposições de artes plásticas, de espectáculos e shows musicais e de outros actos culturais similares, conversador nato e curioso sobre as mais variadas questões relacionadas com as diferentes vertentes da vida quotidiana, da cultura e do destino histórico dos caboverdianos, o Nhonhô comprometeu-se activamente em várias organizações cívicas, das quais destacamos: 1) A Associacão Rotary de Cabo Verde de cuja Direcção foi Presidente; 2) A Ordem dos Arquitectos de Cabo Verde de que foi Presidente da Assembleia-Geral e Vice-Bastonário em várias Direcções, sendo inúmeras as suas tomadas de posição críticas em relação ao (des)ordenamento paisagístico e ao caos urbanístico prevalecentes nas cidades de Cabo Verde, com destaque para a sua amada cidade da Praia, que todavia considerava a mais bela ou, pelo menos, potencialmente a mais bela de Cabo Verde em razão da sua muito singular topografia e cujo Platô considerava um verdadeiro tesouro arquitectónico e patrimonial nacional; 3) A Associação de Defesa da Ilha de Santiago de que foi um dos fundadores, dirigentes e um dos mais vistosos e desassombrados activistas; 4) a Associação Pró-Praia de que foi igualmente um dos fundadores, dirigentes e um dos mais proeminentes activistas; 5) A Associação de Arquitectos de Língua Portuguesa surgida no rescaldo da fundação da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) de cujo Conselho Directivo foi Presidente e o qual organizou vários Encontros Internacionais, um dos quais na cidade da Praia, e durante os quais teve a oportunidade e a subida honra de conhecer e conviver com arquitectos de renomre internacional, como Óscar Niemayer e Álvaro Siza Vieira.
Nos últimos anos da sua vida, e já doente, o Nhonhô foi um activista muito presente nas redes sociais, designadamente no facebook, em defesa da oficialização plena da língua materna caboverdiana, da sua ilha de Santiago, do seu concelho de Santa Catarina, da sua cidade adoptiva da Praia, bem como da figura histórica única de Amílcar Cabral. Nessas empreitadas cívicas o Nhonhô evidenciava-se pelo seu desassombro desarmante e pela sua franqueza total que por vezes chocavam os mais cínicos e hipócritas ou, dito de forma mais eufemística, os mais comedidos na exposição dessas candentes e sensíveis matérias.

19. O cidadão Frederico Hopffer Almada foi um dos mais destacados arquitectos caboverdianos dos tempos contemporâneos. Fadado desde a infância para a profissão que se tornou a sua fonte de rendimento e a sua profissão primeira, nos termos de uma nota biográfica escrita pelo seu vizinho e amigo, o sociólogo e etnomusicólogo César Monteiro, começou por trabalhar, logo depois do seu regresso dos estudos, no GAPRO, um Gabinete de Arquitectura adstrito ao Ministério do Urbanismo e das Obras Públicas de Cabo Verde, tendo sido seu Director. Optando pela via privada nos anos noventa do século XX, funda a AtelierA-Gabinete de Arquitectura e Engenharia. Foi arquitecto de várias obras emblemáticas espalhadas pelo país, com destaque para o actual Edifício da Câmara Municipal de Santa Catarina (remodelado e alargado para um edifício de dois pisos a partir do piso inicial), o Palácio da Justiça de Santa Catarina, o Edifício dos Correios de Santa Catarina, o Estádio Municipal da Achada Lém, também no concelho de Santa Catarina, o Palácio da Comunidades (sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Cabo Verde), o Edifício da Caixa Económica de Cabo Verde, o Edifício do Banco Comercial do Atlântico, o Edifício dos Paços do Concelho do Sal, localizado nos Espargos, etc, etc.
20. O seu amor pela música era tão fervoroso como o seu amor pela profissão que abraçou e escolheu praticar como “paixão e ganha-pão”, tendo em ambas as áreas deixado um legado notável e, por vezes, inestimável.
Participante de tocatinas e serenatas em tertúlias de amigos na Assomada, na Praia e em outras ocasiões, como já referido ainda durante o tempo colonial, o Nhonhô fez-se cantor e vocalista enquanto estudante em Bucareste, capital da Roménia, onde integrou um grupo musical constituído por caboverdianos e guineenses e denominado Cunhefe Sadibé e que actuava essencialmente nas comemorações do Dia de África e no prestigiado Clube de Arquitectos, vindo desses tempos a sua interpretação das composições da autoria do seu amigo Nhelas Spencer, mas também de músicas de Bob Marley e de outras estrelas do reggae.
Regressado ao país, continuou a participar em tertúlias musicais e em eventos de cada vez maior envergadura, como alguns festivais musicais, tais o Festival Musical de Santa Catarina de 1989, de que foi cabeça de cartaz, o Festival Musical da Gamboa, o 1º Festival Musical de Santa Maria de 1990 na ilha do Sal, o Festival Beach Rotcha da ilha do Maio, a Gala de Encerramento do Primeiro Encontro de Música Nacional no Palácio da Assembleia Nacional Popular, tendo ainda esporádicas actuações e aparições na Rádio e na Televisão.
O grande salto seria dado com a gravação em 2007 do seu primeiro álbum intitulado Nhara Santiago, em homenagem à sua tão amada e adorada filha primogénita e à sua ilha natal de Santiago e gravado sob a batuta de Quim Alves, um dos maiores multi-intrumentistas, orquestradores e arranjadores da música caboverdiana contemporânea, tendo esse primeiro CD de Nhonhô Hopffer sido unanimemente considerado um grande sucesso musical, não só devido ao repertório escolhido, integrante de antigos e novos grandes compositores da música caboverdiana, como B. Leza, Sema Lópi, Nhelas Spencer ou Mário Lúcio Sousa, mas também à qualidade da interpretação, não só instrumental, mas também vocal de Nhonhô Hopffer, dono e senhor de um timbre assaz grave, singular e inconfundível.
O segundo álbum intitulado Frederika de Santa Maria, de 2018 e em homenagem à segunda e também adorada filha (a filha codé, como dizia) e à sua cidade adoptiva da Praia de Santa Maria da Esperança e da Vitória, bem como à amada mãe Júlia, aos amados irmãos Orlando e Benny e à sua estimada sogra Milú Salazar ((Maria de Lourdes Pereira Antunes da Silva), todos entretanto falecidos, veio confirmar por inteiro a grande qualidade vocal de Nhonhô Hopffer aliada à mestria da instrumentação e da interpretação musicais, sempre sob a batuta de Quim Alves, e a um rigoroso labor de escolha das músicas integrantes do álbum, compostas igualmente por antigos e novos grandes nomes do reportório musical nacional (destacando-se entre os novos compositores o maiense Georges Tavares Silva que, aliás, me deu a honra de musicar o meu poema “Sakedu na nha Dor”, de evocacão da morte da mãe Júlia). A sua performance pública consubstanciou-se pela última vez na participação, a par de outros tantos relevantes intérpretes musicais de ambos os sexos, no álbum Alma, com letras do seu amigo José Maria Pereira Neves e música de Kako Alves.
O terceiro álbum, já pronto e intitulado Sobriviventi (do nome de uma composição cuja letra é da autoria do próprio Nhonhô, que assim se estreia nesse domínio, com música de Maruka Tavares), de homenagem a Katxás e ao então recentemente falecido Antero Simas e porque marcado pela esperança, quase imorredoura nele, de superar a doença maligna que o vinha acossando e atormentando há já alguns anos, não pôde todavia ser ultimado em vida dele e dado a conhecer em forma de CD à legião dos seus muitos fãs, porque a morte antecipando-se, sorrateira ou traiçoeiramente, levou finalmente a melhor quando o fez partir para o mundo do nunca mais a 31 de dezembro de 2022. Levou a melhor todavia e somente no sentido em que a morte física das criaturas humanas é consabidamente a condição sine qua non da sua ressurreição, como acreditam os crentes, ou da sua permanência na rememoração das pessoas e da sua perenidade na memória dos tempos e, assim libertados da morte, como diria o grande Luiz Vaz de Camões e deste modo estatuídos em Mortos Imortais de que o Maior é certamente Amílcar Cabral, o eterno, icónico e incomensurável Herói de Nhonhô Hopffer e cujo Centenário Natalício certamente saudaria com o máximo de entusiasmo e de alegria. Porque certamente que também ele, o ora homenageado, na sua dupla condicão de Nhonhô Hopffer e de Frederico Hopffer Cordeiro Almada, no seu duplo estatuto de intérprete musical e de arquitecto, na sua dupla fisionomia de portador de um nominho e de um nome de igreja (ou, se se quiser, de um nome de casa e de um nome oficial de registo civil), na sua dupla qualidade de santa-catarinense/santiagiuense e de caboverdiano cidadão do mundo é plenamente merecedor da estatuto para a eternidade da memória da sua vida e da sua obra em nomes de ruas, de escolas, de edifícios públicos e privados e de outros lugares similares em razão do seu notável legado consubstanciado nas obras que deixou nos domínios da arquitectura e da música, mas também do exemplo que legou como personalidade desassombrada e bastas vezes politicamente incorrecta, mas sempre social e políticamente comprometida com as causas do seu concelho, da sua ilha, do seu país, do seu continente e da Humanidade em geral, e de sujeito activo da sociedade civil caboverdiana engajado até à medula com as componentes essenciais da identidade afro-crioula de Cabo Verde e dos Caboverdianos e da sua expressão e símbolo maior e imprescritível que é a língua materna caboverdiana devidamente desenhada e configurada, como ele tanto prezava, no ALUPEC. Certamente que o Nhonhô ficou sumamente feliz com a fundação dsa ALMA-CV (Associação da Língua Materna Cabo-Verdiana) em Novembro de 2022, pouco antes do seu falecimento.
Felizmente que em vida recebeu das suas gentes um notório reconhecimento pela vasta obra feita.
Felizmente que em vida dele algumas entidades públicas e privadas ainda tiveram a sensatez e o o discernimento de o reconhecerem como um dos mais importantes homens da cultura caboverdiana contemporânea. Foi o que ocorreu com a Festa de Homenagem que lhe foi prestada nos Estados Unidos da América pelo jornalista Valdir Alves, também prematuramente falecido ainda antes do Nhonhô, e pela comunidade caboverdiana de Boston, bem assim com as duas homenagens que lhe foram feitas pelo restaurante Nice Crioula do seu amigo santa-catarinense José Luís Mascarenhas Monteiro e da sua esposa Eunice Monteiro, e a atribuição da Medalha de Mérito Cultural de Primeira Classe do Governo da República de Cabo Verde proposta pelo Ministro da Cultura e Indústrias Criativas, Abraão Barbosa Vicente, e entregue pessoalmente ao notoriamente comovido e feliz agraciado pelo Primeiro-Ministro de Cabo Verde, Ulisses Correia e Silva.
21. Frederico Hopffer Cordeiro Almada/Nhonhô Hopffer nasceu a 18 de Maio de 1956, no sítio de Quelém/Pombal, na zona de Chã de Tanque, na freguesia e no concelho de Santa Catarina de Santiago, num ano em que também viram a luz do dia dois emblemáticos músicos caboverdianos, quais sejam Vasco Martins e Norberto Tavares. O acaso e a sorte ditaram que fosse Frederico Hopffer Almada/Nhonhó Hopffer o autor da lápide que encima a sepultura no cemitério de Nhagar desse icónico e majestoso músico santa-catarinense e que ele tanto admirava e respeitava e que é Norberto Tavares, tendo-o por isso convidado para um convívio cultural na sua vivenda da Terra Branca aquando do regresso apoteótico a Cabo Verde do autor de “Nha Cabo Verde di Sperança” e de “Jornada di um Badio”, depois de dezenas de anos de ausência sem regresso em Portugal e nos Estados Unidos da América, e efusiva e entusiasticamente acompanhado por multidões nunca dantes vistas em Cabo Verde.
Frederico Hopffer Cordeiro Almada/Nhonhô Hopffer morreu a 31 de Dezembro de 2022, rodeado de familiares, e está enterrado no cemitério de Nhagar na Assomada, no seu concelho e na sua freguesia natais de Santa Catarina da ilha de Santiago de Cabo Verde, ao lado dos amados pais Júlia e António, dos também amados irmãos Orlando e Benny e de outros familiares próximos. A Assembleia Nacional de Cabo Verde aprovou o voto de pesar nº 25/X/2023, por ocasião do falecimento de Frederico Hopffer Cordeiro Almada/Nhonhô Hopffer. A sua morte sobreveio depois de se ter gorado uma última tentativa de viagem para os Estados Unidos da América, onde lhe era habitualmente ministrado o tratamento devido e adequado e que lhe suscitara tantas esperanças na vitória sobre a doença maligna, em razão do elevado risco que representava essa mesma viagem, num ano marcado pela recente e mortífera disseminação da covid-19 e pelo falecimento de alguns muito importantes nomes da cultura caboverdiana, como Kaká Barboza (isto é, Carlos Alberto Lopes Barbosa), Kaoberdiano Dambará (isto é, Felisberto Vieira Lopes), Antero Simas, Celina Pereira, Titina Rodrigues e tantos outros…
Que as gentes das nossas ribeiras, das nossas ilhas e das nossas diásporas continuem a guardá-los a todos na sua memória colectiva e que continuem a inspirar-nos nessa jornada caboverdiana, sempre infinda de “construção de uma outra terra dentro da nossa terra” para nos sentirmos sempre e para sempre “felizes de termos nascido caboverdianos”, como compôs Manuel de Novas e cantou Ildo Lobo, ambos da especial afeição e da particular predilecção de Frederico Hopffer Cordeiro Almada, o nosso saudoso parente próximo Nhonhô Hopffer, também digno descendente das gentes Furtado e de Cova Furtado.

Lisboa/Queluz, Monte Abraão, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 de Abril de 2024

*Nota do autor: o presente texto foi escrito a pedido do primo Doutor Mário Lima, também um Furtado, e serviu de base para a elaboração de um belo e muito pertinente Resumo Executivo pelo neto da tia Candinha (de seu nome próprio Paula Tavares Furtado), nosso primo e muito amigo do nosso saudoso irmão Nhonhô, o Doutor Engenheiro Inácio Pereira, que o leu como conferência de evocação e de exaltação biográficas de Frederico Hopffer Cordeiro Almada/Nhonhô Hopffer por ocasião da homenagem que lhe foi prestada no Encontro da Família Furtado, realizado no passado dia 6 de Abril na cidade de São Domingos. Agradeço aos primos Mário Lima e Inácio Pereira a oportunidade que me foi concedida de estar presente nesse Encontro da Família Furtado e na homenagem então feita ao meu irmão Nhonhô através da oportuna intervenção e da sentida colaboração de ambos.

*Tuna Furtado Lopes é o pseudónimo literário de José Luis Hopffer C. Almada para a escrita de ensaios e de artigos de opinião . O fito do seu uso é consabida e propositadamente resgatar o nominho da minha avó materna Tuna (Inês Tavares Furtado Lopes), sendo ela a única avó que conheci e com quem convivi pessoalmente na sua casa e nas suas propriedades de Fonteana e na nossa casa do Cutelo, na Vila da Assomada, sendo ademais neutro o nominho Tuna nos seus usos no masculino e no feminino), bem como recuperar para a escrita da minha pseudonímia os perdidos apelidos Furtado Lopes da minha ascendência por via materna.

por José Luís Hopffer Almada
A ler | 8 Abril 2024 | 25 de abril, arquitectura, Cabo Verde, Frederico Hopffer Almada, Nhonhô