Proposta de ante-projecto de revisão do artigo nono da constituição política da república de Cabo Verde
NOTA EXPLICATIVA
Cabo Verde vem comemorando e vai continuar a celebrar ao longo do presente ano de 2025 o Cinquentenário da Proclamação Solene da sua Independência Nacional e da sua constituição numa República livre, independente e soberana e num Estado unitário, laico, anticolonialista e anti-imperialista erigido num Estado de Direito participativo, qualificado como uma democracia nacional revolucionária e dotado de uma força política dirigente da sociedade e do Estado, nos termos da Constituição Política cabo-verdiana, de 6 de Setembro de 1980/de 14 de Fevereiro de 1981, posteriormente conformado numa democracia política plena e num Estado de Direito Democrático, com a Revisão Constitucional de 29 de Setembro de 1990, a qual alterou o regime político vigente de monopartidário para pluripartidário (permanecendo, todavia, muito marcado pela nomenclatura característica da democracia nacional revolucionária), e, finalmente, consolidado num Estado de Direito Democrático e Social em conformidade com a Constituição Política cabo-verdiana, de 25 de Setembro de 1992.
A conquista da independência política e a obtenção das soberanias nacional e internacional de Cabo Verde foram um feito de incomensurável transcendência política e da mais elevada grandeza humana na História multissecular do povo cabo-verdiano e representaram, outrossim, um singular e heroico acto cultural de reafirmação da identidade nacional do povo cabo-verdiano, cuja componente essencial é o crioulo cabo-verdiano, o qual tem sido considerado como imanente, transversal e consubstancial a todas as outras manifestações e expressões culturais do povo das nossas ilhas e diásporas.
Forjado na sociedade colonial-escravocrata como meio de comunicação entre os diferentes grupos étnicos negros escravizados trazidos cativos da costa africana vizinha para as ilhas e os seus senhores brancos chegados com as navegações marítimas europeias, o tráfico negreiro e o comércio triangular transatlântico, o crioulo cabo-verdiano emergiu, assim, como a expressão (linguística) mais eloquente e visível da cultura crioula surgida da interacção, do confronto e do diálogo civilizacionais entre dominados e dominadores, entre explorados e exploradores, no chão agreste das ilhas cabo-verdianas, encontradas desertas de populações autóctones e virgens dos pontos vista antropológico e sociológico.
Perseguido, vilipendiado, ostracizado, completamente arredado do ensino formal oficial, religioso e particular e activamente reprimido e menosprezado pelos poderes estrangeiros opressores vigentes no período da consolidação da dominação colonial portuguesa na sua forma clássica, o crioulo cabo-verdiano logrou resistir com sucesso às investidas coloniais glotofágicas (glotocidas) e assimilacionistas para se tornar a língua nacional do povo cabo-verdiano de todas as classes e categorias sociais nativas e de todas as ilhas e diásporas. Foi, assim, que a língua materna cabo-verdiana foi defendida com amor e sabedoria pelo povo anónimo, humilde e simples que o falava e consagrava em todos os dias da sua vida nhanhida de quotidiana sobrevivência e de estoica resiliência contra as múltiplas tragédias históricas que o assolaram bem como contra as secas e estiagens e outras calamidades climatéricas cíclicas e as correlativas mortandades e hecatombes sociais periódicas causadas pelas fomes com as suas inevitáveis emigrações forçadas para desconhecidos e inóspitos mundos, tendo sido, ademais, cultivada com engenho e arte pelos trovadores populares e pelos poetas eruditos das ilhas e diásporas cabo-verdianas e levada, com destemor e audácia, aos mais nobres espaços de comunicação formal pelos mais notáveis representantes das elites letradas cabo-verdianas activas na altura. Para além da sua elevação a língua literária nos domínios da poesia, do teatro e da prosa narrativa ficcional, a língua cabo-verdiana tornou-se igualmente matéria de aturado estudo e proficiente investigação, a par de se ter feito objecto da recolha das tradições orais nele vazadas.
Deste modo, o crioulo cabo-verdiano tornou-se, como, aliás, constatou assertivamente o filólogo Baltasar Lopes da Silva, tão arreigado ao homem cabo-verdiano como o chão que ele habita e cultiva e no qual fincou os seus pés e a sua alma, e conforme também explicitou Amílcar Cabral, o estratega e líder político-militar e diplomático da luta de libertação binacional dos povos irmãos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, como a prova mais cabal e insofismável da existência e da identidade do povo cabo-verdiano enquanto comunidade nacional dotada do seu próprio idioma singular e único bem como da necessidade e da legitimidade do exercício do seu correlativo direito à autodeterminação e independência políticas.
- Depois da conquista da independência nacional de Cabo Verde, o crioulo
cabo-verdiano foi política e socialmente reconhecido como língua materna dos cabo-verdianos das ilhas e diásporas e componente essencial do património cultural e da identidade nacional do povo cabo-verdiano, ao mesmo tempo que o português continuava a ser considerado e consagrado como única língua oficial do país e, por isso, como a única língua a ser utilizada no sistema formal de ensino, na elaboração das decisões e deliberações dos órgãos do poder do Estado (isto é, dos órgãos de soberania e do poder local) e da administração pública e como língua quase exclusiva de comunicação nos espaços formais de comunicação. Em resultado disso, gerou-se uma deplorável e crítica situação de diglossia linguística consubstanciada na atribuição de estatutos diferenciados, desiguais e desequilibrados à língua oficial portuguesa e à língua materna cabo-verdiana, com efeitos altamente negativos, prejudiciais e contraproducentes para ambas as línguas de Cabo Verde.
Em 1992, aquando da aprovação da Constituição Política cabo-verdiana ainda vigente, o partido parlamentar da oposição, derrotado de forma esmagadora nas urnas, por isso, não tendo conseguido obter o mínimo de um terço dos mandatos parlamentares necessários para apresentar a sua própria proposta de Lei de Revisão Constitucional, apresentou à sociedade cabo-verdiana um projecto de nova Constituição que no seu artº 91º e com a epígrafe “Línguas de Cultura Nacional”, estabelecia o seguinte: “1. O Estado protege a língua cabo-verdiana e assegura o seu ensino, utilização e valorização como língua e património da Nação. 2. O Estado protege a língua portuguesa e assegura o seu ensino, utilização e valorização como língua oficial e património comum dos povos que a utilizam”.
As relações entre a língua oficial portuguesa e a língua materna cabo-verdiana viriam a conhecer uma sensível melhoria do ponto de vista jurídico-político com a constitucionalização do seu estatuto, empreendida, pela primeira vez, mediante a Revisão de 1999 da Constituição Política Cabo-Verdiana, de 25 de Setembro de 1992. A mesma Revisão Constitucional manteve, através do artº 9º da Constituição Política da República, a consagração da língua portuguesa como a única língua plenamente oficial da República de Cabo Verde, ao mesmo tempo que melhorou o estatuto da língua materna cabo-verdiana, erigindo-a como “língua oficial em construção” na República de Cabo Verde, ademais obrigando o Estado a promover as condições para a obtenção da paridade oficial plena entre as duas línguas de Cabo Verde e atribuindo aos cidadãos cabo-verdianos o dever de aprender as línguas oficiais e o direito de usá-las.
Anote-se que a actual redacção do artº 9º da Constituição Política de Cabo Verde representou uma solução compromissória entre as propostas das duas forças parlamentares existentes e actuantes nessa altura: uma, oriunda da maioria parlamentar qualificada do partido do Governo e que consagrava a língua portuguesa como a língua oficial de Cabo Verde ao mesmo tempo que pugnava pela valorização da língua materna cabo-verdiana, e a segunda, proveniente do partido da oposição parlamentar minoritária e que consagrava o português e o crioulo cabo-verdiano como as duas línguas oficiais de Cabo Verde.
Por outo lado e em razão da sua natureza compromissória, o actual artigo 9º da Constituição da República de Cabo Verde tem sido objecto de leituras e interpretações díspares e controversas, incluindo por entidades oficiais responsáveis pela área da cultura e por organizações da sociedade civil estatutariamente incumbidas da promoção da língua cabo-verdiana. Essas mesmas leituras e interpretações têm oscilado entre aquela defensora da tese segundo a qual a oficialização da língua materna cabo-verdiana está ainda por fazer, e outra que considera, de forma muito mais sustentada do ponto de vista técnico-jurídico, que a oficialização da língua materna cabo-verdiana foi já promovida, ainda que somente parcialmente pelo artº 9º da Constituição Política cabo-verdiana de 1992, faltando lhe, todavia, a sua oficialização plena.
A leitura do arº 9º da Constituição da República que recusa a oficialidade, ainda que parcial, da língua materna cabo-verdiana, e nega a possibilidade da sua oficialização plena a breve trecho estriba-se essencialmente numa interpretação literal da primeira parte do seu nº 2 quando diz que “o Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana”, todavia omitindo, consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, a sua segunda e última parte, pois que acrescenta expressamente ao resto da norma a expressão, aliás, assaz decisiva “em paridade com o português”. Tratando-se o português da única língua plenamente oficial em Cabo Verde, uma oficialização da língua materna cabo-verdiana em paridade com o português só pode, pois, significar a oficialização plena da mesma língua.
Ademais, os defensores da tese que nega a oficialidade da língua materna cabo-verdiana também refutam a possibilidade da sua oficialização plena a breve trecho, advogando que ainda não se encontram reunidas as condições necessárias e indispensáveis para essa mesma oficialização plena, tanto mais que, segundo alegam e argumentam, nem sequer existe ainda uma variante normalizada e padronizada da língua materna cabo-verdiana, pelo que seria impossível ou, pelo menos, altamente arriscado e desaconselhável, introduzi-la no ensino e/ou editar diplomas legais, posturas municipais e decisões judiciais na língua materna cabo-verdiana.
Sendo certo que não existe ainda uma variante padronizada da língua materna cabo-verdiana (sendo de se considerar neste contexto a chamada variante pan-dialectal do cabo-verdiano, ilegalmente constante do famigerado “Manual da Língua e da Cultura Cabo-Verdianas”, uma grosseira e absolutamente inaceitável aberração linguística a querer fazer as vezes de uma espécie de esperanto cabo-verdiano na sua falsa, traiçoeira e bairrista pretensão de se constituir em língua-padrão cabo-verdiana), nem sequer uma escrita padronizada da mesma língua, mas somente recomendações mais ou menos fundamentadas e consensualizadas de escrita da língua materna cabo-verdiana constantes das Bases do ALUPEC, a urgência da introdução da única língua plenamente nacional e identitária do povo cabo-verdiano no ensino formal e a premência da escrita de obras em língua cabo-verdiana determinou que, depois de anos de reflexões e debates, se tivesse optado pela seguinte metodologia:
- O ensino, numa primeira fase, primacialmente marcada pela inexistência de
uma variante-padrão e pelo estatuto oficial de um alfabeto de base foinético –fonológica, o ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano), de todas as variantes da língua cabo-verdiana, consoante a sua presença dominante em cada uma das ilhas habitadas do nosso país, tanto mais que é através das suas respectivas variantes que a língua cabo-verdiana se torna e se actualiza como língua materna dos caboverdianos.
- A oficialização plena da língua cabo-verdiana por via da Revisão
Constitucional, mas somente no plano polítrico-simbólico, pois que salvaguardando a expressa manutenção, ainda que numa redacção melhorada, da norma programática constante do actual nº2 do artº 9º da Constituição Política cabo-verdiana, a qual estipula e preceitua que o Estado tem a obrigação de promover as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com o português, ou, por outras palavras, para a sua oficialização plena.
É nesta óptica que, no decurso do processo de Revisão Constitucional de 2010, a qual consabidamente emprestou à Constituição Política cabo-verdiana a sua actual redacção, a maioria parlamentar de então apresentou uma proposta de oficialização plena da língua materna cabo-verdiana em paridade progressiva com a língua portuguesa e lavrada nos seguintes termos: “Artigo nono (Línguas Oficiais da República de Cabo Verde) 1. São línguas oficiais da República de Cabo Verde o português e o cabo-verdiano. 2. O Estado promove as condições para a utilização plena das línguas oficiais da República de Cabo Verde”. Todavia, a proposta da maioria parlamentar não logrou obter os 2/3 requeridos dos votos dos deputados da Assembleia Nacional em razão da oposição da minoria parlamentar do anterior partido do Governo.
3. Entretanto, o estatuto da língua materna cabo-verdiana foi conhecendo melhorias progressivas e muito significativas durante todo o período pós-colonial, não só mediante a já referida Revisão Constitucional de 1999, mas também através da adopção de medidas várias tanto durante a vigência da Primeira República cabo-verdiana, como na vigência da actual Segunda República cabo-verdiana, com destaque para as seguintes:
a) A adopção de um alfabeto de base fonético-fonológica para a escrita da língua cabo-verdiana, primeiramente, de forma oficiosa com o chamado Alfabeto do Mindelo, aprovado pelo Colóquio Linguístico Internacional de 1979, realizado na cidade nortenha cabo-verdiana, caracterizado pelo uso sistemático de acentos circunflexos (os chamados chapéus) nas palatais. O chamado Colóquio do Mindelo recomendou, ademais, que a variante de Santiago, considerada a variante-base da língua cabo-verdiana, fosse adoptada como a variante-padrão da mesma língua, em conformidade, aliás, com recomendações de vários linguistas, filólogos e estudiosos, com destaque para Baltasar Lopes da Silva.
b) A adopção, em 1989, pelo Fórum de Alfabetização Bilingue, de um alfabeto, igualmente de base fonético-fonológica, que procedeu à supressão dos chamados chapéus e reintroduziu os dígrafos e os trígrafos nas palatais, e, depois, em 1993/1994, do ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano), proposto pelo Grupo constituído para a elaboração do mesmo alfabeto unificado e adoptado, primeiramente, a título experimental por diploma legal do Governo e, posteriormente e também por diploma legal do Governo, como alfabeto oficial da língua cabo-verdiana por proposta do Fórum Linguístico da Praia, de 2009, convocado pelo Departamento Linguístico da Direcção de Ciências Sociais do Instituto de Investigação e de Promoção Culturais (IIPC) do Ministério da Cultura de Cabo Verde, o qual procedeu a uma exaustiva avaliação da utilização a título experimental do ALUPEC e recomendou algumas significativas alterações ao ALUPEC e a sua adoção, como já referido, como o alfabeto oficial da língua materna cabo-verdiana, recomendações essas cumpridas na íntegra pelo Governo no que se refere à adopção do ALUPEC como alfabeto oficial para a escrita da língua cabo-verdiana, mas não cumpridas no que respeita designadamente à supressão da letra y e a substituição pela letra i em todas as circunstâncias e funções gramaticais.
c) A Introdução, desde 1979, da língua materna cabo-verdiana como matéria de ensino na Escola de Formação de Professores do Ensino Secundário e, a partir de 2011, a criação de um mestrado em língua cabo-verdiana e de uma cátedra de língua cabo-verdiana na Universidade (Pública) de Cabo Verde, bem como a introdução, a partir de 2023, do mesmo idioma materno cabo-verdiano como matéria de ensino facultativa e a título experimental no 10º ano de escolaridade do ensino oficial cabo-verdiano, para além da anterior organização do ensino bilingue inglês-crioulo nos Estados Unidos da América, do precedente ensino do crioulo cabo-verdiano no âmbito das actividades de diversas associações comunitárias cabo-verdianas em Portugal e nos Países Baixos e da introdução, a título experimental, do ensino bilingue português-crioulo numa escola da margem sul da região da Grande Lisboa e, nos anos lectivos 2013/2014 e 2014/2015, em algumas escolas do ensino básico das ilhas de Santiago e de São Vicente, tendo esse projecto sido extinto pela nova Ministra da educação empossada com a governação iniciada com a terceira alternância política democrática ocorrida em 2016.
d) A criação, em 1989, da Comissão Nacional da Língua Cabo-Verdiana, contudo sem actividade assinalável em razão do anúncio da Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990, de todo o modo tornada inoperacional com a entrada em funções do primeiro Governo Constitucional da Segunda República cabo-verdiana e constituído pela antiga oposição política emergente.
e) A aprovação da Lei nº 103/III/90, de 29 de dezembro, que estabeleceu as Bases do Sistema do Ensino em Cabo Verde e que, pela primeira vez, previu a introdução do ensino da língua cabo-verdiana no sistema educativo formal cabo-verdiano, mas somente a partir dos últimos anos de escolaridade obrigatória, todavia permanecendo a mesma lei letra morta nesta matéria. A mesma Lei foi alterada pela Lei no 113/V/99, de 18 de outubro, permanecendo, todavia, e tal como a Lei anterior, letra mortíssima no que se refere à introdução da língua cabo-verdiana nos currículos escolares dos ensinos primário e secundário.
f) A adopção, já após a segunda vitória do partido do Governo na sequência da verificação da segunda alternância política democrática, ocorrida em 2001, da Resolução do Conselho de Ministros que propiciou e possibilitou a livre e ampla utilização da língua materna cabo-verdiana em espaços formais de comunicação de diversa índole.
g) A criação, em 2012, após a terceira vitória eleitoral do partido do Governo, da Comissão Nacional para as Línguas (designadamente o crioulo cabo-verdiano e o português), que realizou, em 2013, conjuntamente com a Comissão Especializada de Educação, Cultura, Juventude e Desporto da Assembleia Nacional o Fórum Parlamentar sobre o Bilinguismo Cabo-Verdiano, o qual fez várias “Conclusões e Recomendações”, de entre as quais uma proposta conjunta das duas entidades acima referidas de Revisão do artigo nono da Constituição Política cabo-verdiana visando a oficialização plena da língua cabo-verdiana, em paridade progressiva com a língua portuguesa. São os seguintes os termos do texto completo das acima referidas Conclusões e Recomendações do Fórum Parlamentar da Praia, de 13 e 14 de Maio de 2013: “Considerando que neste mundo global e pluricultural, centrado na comunicação, o bilinguismo, a situação mais comum e factor de inclusão e desenvolvimento humano, desafia os poderes públicos para políticas linguísticas inovadoras; Considerando a importância da nossa língua materna (língua cabo-verdiana) na afirmação da identidade, da coesão e da solidariedade nacionais; Considerando o estabelecido na Declaração Universal dos Direitos linguísticos patrocinada pela UNESCO, nomeadamente nos seus artigos 2º,3º, 9º, 12º e 13º; Considerando ainda que a Constituição da República de Cabo Verde incumbe o Estado de defender, preservar, valorizar e incentivar o uso da língua materna; a Assembleia Nacional, através da Comissão Especializada da Educação, Cultura, Juventude e Desporto (CECJD) e o Ministério da Cultura, através da Comissão Nacional para as Línguas, ,e com o apoio da UNESCO, realizaram nos dias 17 e 18 de Maio de 2013, um Fórum Parlamentar, para aprofundamento da reflexão acerca da problemática da oficialização da língua cabo-verdiana, tendo em vista a construção de um bilinguismo social efectivo. Este Fórum constituiu-se como um espaço de discussão aberta, plural, com participação de diferentes sectores da sociedade civil e de articulação entre esta, políticos e técnicos. Tendo concluído existir consenso acerca da necessidade e da urgência da oficialização da língua cabo-verdiana, dadas as diferentes disfunções de que o país padece, o Fórum recomenda que: seja acelerado o processo de oficialização da língua cabo-verdiana, considerando que ela cria a base legal para o tratamento técnico deste património cultural, factor de identidade, coesão e solidariedade nacionais, com a correspondente alteração do artº 9º da Constituição:
1. São línguas oficiais de Cabo Verde o crioulo cabo-verdiano e o português;
Ou
São línguas oficiais de Cabo Verde o crioulo, língua cabo-verdiana, e o português;
2.Todos os cidadãos têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las;
3.O Estado criará as condições para a construção progressiva do bilinguismo social efectivo das duas línguas de Cabo Verde;
-Sejam accionados todos os mecanismos que envolvam a sociedade civil neste processo, nomeadamente encontros para divulgação e consensualização das propostas técnicas;
-Seja promovido, com apoio institucional, um programa sistemático de investigação da língua cabo-verdiana, com descrição de todas as suas variedades na perspectiva do seu desenvolvimento.
Feito na Praia, aos 18 de Maio de 2013”.
Anote-se que a mesma Comissão Nacional para as Línguas foi extinta pelo novo Ministro da Cultura e Indústrias Criativas empossado com a governação iniciada com a terceira alternância política democrática encetada no país, em 2016.
h) A crescente e efectiva utilização da língua materna cabo-verdiana em vários espaços formais de comunicação, como o parlamento e os órgãos de comunicação social, incluindo a imprensa escrita, sendo que a língua materna cabo-verdiana tem sido a língua utilizada quase exclusivamente em comícios políticos, encontros comunitários e campanhas e sessões públicas de esclarecimento sobre questões políticas fundamentais para o povo cabo-verdiano, como a saúde, a educação, a segurança e a ordem públicas. Marcantes da visibilidade da língua materna cabo-verdiana nos planos nacional e internacional foram uma intervenção do anterior Primeiro-Ministro de Cabo Verde feita em crioulo cabo-verdiano numa sessão da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), as intervenções em português entremeadas de expressões em língua cabo-verdiana do anterior Chefe do Estado aquando da declaração do estado de emergência e das suas prorrogações por ocasião da eclosão e da disseminação da pandemia da covid-19 e a intervenção bilingue português-crioulo do actual Chefe de Estado no seu Discurso de Tomada de Posse do Cargo de Presidente da República de Cabo Verde.
i) A edição de um número crescente de textos, de livros e de colectâneas em língua cabo-verdiana nos mais variados géneros literários e de escrita, quais sejam poesia, prosa de ficção (incluindo romances, contos, novelas), teatro, ensaio, peças jornalísticas, etc., contribuindo, assim, de forma determinante para a formação e a consolidação de um cada vez mais pujante sistema literário cabo-verdiano, que coexiste, no seio de uma prestigiada santíssima trindade literária cabo-verdiana, com a oratura (ou literatura oral) cabo-verdiana e o já antigo e longevo sistema literário cabo-verdiano em língua portuguesa.
j) A elaboração de diversos estudos, teses de mestrado e de doutoramento e outras obras de pesquisa e investigação científicas sobre diferentes aspectos e dimensões da língua cabo-verdiana e das suas diferentes variantes dialectais por numerosos estudiosos cabo-verdianos e estrangeiros, existindo, por isso, na actualidade um muito importante acervo de materiais científicos sobre a língua cabo-verdiana, a sua história, as suas variantes e as suas características essenciais e as suas especificidades gramaticais.
k) A aprovação do Decreto-Lei nº 28/2022, de 12 de julho, que, no seu arº 15º , introduz no currículo do 10º ano de escolaridade, a disciplina de língua e cultura cabo-verdianas.
O mesmo artigo tem a seguinte redacção : “artigo 15º (Língua e Cultura cabo-verdianas)1- É introduzida a disciplina da Língua e Cultura Cabo-verdianas, com os objetivos de: a) Reforçar a identidade linguística e cultural do aluno; b) Desenvolver a consciência linguística da sua língua materna; c) Familiarizá-lo com todas as variedades do cabo-verdiano, desenvolvendo atitudes positivas face à variação linguística; d) Aprofundar o conhecimento e a afirmação da escrita da língua, fazendo do aluno seu utilizador independente; e) Integrá-lo na sua coletividade em desenvolvimento; e f) Promover os valores de diversidade linguística,
do multiculturalismo e da tolerância.
2-A estratégia para a introdução do estudo da língua e da cultura cabo-verdianas desenvolve-se nos termos seguintes: a) É introduzida a “Língua e Cultura Cabo-verdianas” como disciplina optativa, a partir do 10º ano de escolaridade, por um período experimental de três anos, renovável por mais dois anos; b) O caráter experimental da disciplina será encarado como uma experiência metodologicamente e pedagogicamente orientada no quadro de um projeto de investigação-ação, em que os dois anos, após a fase experimental, serão dedicados à consolidação da disciplina; c) A disciplina, em que a língua cabo-verdiana será meio de ensino e objeto de aprendizagem, será centrada em conteúdos linguísticos enquadrados em teorias linguísticas atuais; d) Privilegiar-se-á uma abordagem linguística descritiva, inclusiva e contrastiva, fundamentada em princípios de educação para a diversidade linguística e metodologias e práticas educativas internacionalmente recomendadas; e e) No âmbito de conteúdos de natureza cultural, dever-se-á abordar a génese e a formação da língua cabo-verdiana inseridas no contexto global de processos histórico-culturais e linguísticos, de contacto de línguas e de crioulização, bem como as produções culturais que têm a língua como o seu principal veículo.
3- Após o período experimental, a disciplina de Língua e Cultura Cabo-verdianas passa a integrar o currículo do Ensino Secundário a partir do 10o ano.4-Após consolidação dos aspetos técnico-científicos e metodológicos, que ocorrerá na sequência da fase experimental, serão empreendidos esforços que garantam a introdução da língua cabo-verdiana no currículo desde o 10º ano de escolaridade e a exploração das potencialidades técnicas da educação bilingue, desde o ensino pré-escolar”.
A opção do Ministério da Educação de Cabo Verde pela introdução da língua cabo-verdiana no 10º ano de escolaridade e não nos primeiros anos de escolaridade, conforme recomendado pela UNESCO e pela sua Convenção sobre os Direitos Linguísticos dos Povos, mereceu fortes críticas de pedagogos, professores e outros especialistas na matéria, mas também foi saudada como um primeiro passo oficial nessa importante vertente de valorização e dignificação da língua materna cabo-verdiana que é o seu ensino formal aos alunos das escolas do país. Críticas muito mais contundentes mereceu o “Manual de Língua e Cultura Cabo-Verdianas” cuja elaboração foi liderada por uma consultora polaca e realizada com o concurso de uma consultora brasileira e duas consultoras oriundas da ilha de Santo Antão, sendo todas elas especialistas em crioulística cabo-verdiana e, em especial, das variantes de barlavento da língua cabo-verdiana. Esse facto tornou-se assaz relevante, pois que as mesmas consultoras foram igualmente as responsáveis pela elaboração do chamado pandialecto cabo-verdiano, que pretendendo ser uma variante-padrão da língua cabo-verdiana neutra em relação a todas as suas variantes e alegadamente incorporando os contributos de todas elas, porém intenta impor uma variante aparentada com as variantes de barlavento como variante-padrão da língua caboverdiana, diga-se que suma e inequivocamente artificial e artificiosa. Por isso e por ser considerado, ademais, totalmente ilegal por pretender promover a padronização da língua cabo-verdiana à revelia das leis vigentes, além de desqualificado como uma espécie de esperanto cabo-verdiano e uma autêntica aberração linguística formulada por autores pejados de preconceitos supremacistas bairristas, o chamado pandialecto cabo-verdiano tem sido ferozmente atacado e rejeitado por vários linguistas e especialistas em crioulística cabo-verdiana bem como por escritores de língua cabo-verdiana e por outros interessados na valorização da nossa língua materna
l) A declaração por parte do Governo e por iniciativa do Ministério da CVultiura e das Indústrias Criativas, da língua materna cabo-verdiana como património cultural imaterial nacional de Cabo Verde, seguida, algum tempo depois e por iniciativa de uma deputada integrante da bancada da maioria parlamentar, da declaração por parte da Assembleia Nacional da língua portuguesa, a única ainda plenamente oficial da República de Cabo Verde, como património cultural imaterial nacional de Cabo Verde.
m) A criação, em 2023, da Associação da Língua Materna Cabo-Verdiana (ALMA-CV), na sequência e como resultado mais tangível da apresentação aos órgãos de soberania do Estado cabo-verdiano de uma petição exigindo “a oficialização da língua materna cabo-verdiana”, e, em 2024, da sua Delegação em Portugal (DALMACV-PT), tendo a mesma associação como objectivo imediato mais importante “a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa” com todas as consequências inerentes para as políticas linguísticas a promover pelo Estado cabo-verdiano.
n)A aprovação pela Assembleia da Delegação da ALMA.CV em Portugal (DALMACV.PT), na sua reunião ordinária de 5 de Abril, de uma moção de censura do “Manual de Língua e Cultura Cabo-Verdianas” e de veemente condenação do chamado crioulo pandialectal dele integrante.
4. Urge, pois, neste ano da celebração do Cinquentenário da Conquista pelo Povo Cabo-Verdiano da sua Independência Nacional clarificar de forma definitiva, a questão do estatuto oficial da língua materna caboverdiano, e dos seus âmbito, extensão e dimensão, ao mesmo tempo que se envia uma forte mensagem político-cultural ao Povo livre, independente e soberano de Cabo Verde nas ilhas e diásporas, consubstanciada na forma de um significativo gesto político-simbólico que seja plenamente congruente com essa efeméride maior da sua História, e dele inteiramente merecedor, mas também seja realista e tenha suficientemente em conta a real situação sociolinguística existente e prevalecente no país e no seio das diferentes comunidades cabo-verdianas espalhadas pelo mundo sem nunca descurar a circunstância objectiva caracterizada pela fragilidade estrutural do país e traduzida nos parcos recursos económico-financeiros com que o Estado cabo-verdiano e as instituições públicas e privadas nacionais podem continuar a contar para o desenvolvimento do seu sistema educativo bem como para a promoção da língua materna cabo-verdiana e de uma sã, produtiva e profícua coexistência entre as duas línguas de Cabo Verde, assim, contribuindo para um efectivo, funcional e real bilinguismo português-crioulo no nosso país.
TEXTO DA PROPOSTA DE ANTEPROJECTO DA REVISÃO DO ARTIGO NONOO DA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA CABO-VERDIANA
Visando marcar o Cinquentenário da Independência Nacional com um sinal claro e inequívoco significativo do comprometimento total dos Deputados da Nação reunidos na Assembleia Nacional com a promoção contínua e a dignificação permanente da língua materna cabo-verdiana.
Tendo em devida conta a necessidade de promover um real, funcional e efectivo bilinguismo social na sociedade cabo-verdiana e que seja marcado pela coexistência cada vez mais produtiva e profícua entre as duas línguas de Cabo Verde,
Considerando a modéstia e a parcimónia dos recursos económico-financeiros de que o país dispõe,
Por mandato do povo, a Assembleia Nacional decreta, nos termos da alínea a) do artigo 174º da Constituição, o seguinte
Artigo Primeiro
(Modificações)
É revista a Constituição de 1992, aprovada pela Lei Constitucional nº 1/IV/92, de 25 de Setembro, alterada pelas Leis Constitucionais números 1/IV/95, de 13 de Novembro, 1/V/99, de 23 de Novembro, e 1/VII/2010 de 3 de Maio, nos termos seguintes:
O artº9º da Constituição da República passa a ter a seguinte redacção:
Artº 9º
(Línguas Oficiais)
1.A língua portuguesa e a língua cabo-verdiana são as línguas oficias da República de
Cabo Verde
2. O Estado promoverá as condições para a oficialização plena da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa, bem como para o desenvolvimento de um bilinguismo social efectivo em Cabo Verde.
3. Todos os cidadãos cabo-verdianos têm o dever de conhecer as línguas oficiais da República de Cabo Verde e o direito de usá-las em todos os espaços formais e informais de comunicação.
4. O Estado criará, em concertação com as organizações da sociedade civil e com outras entidades públicas e privadas, as condições para a introdução progressiva da língua materna cabo-verdiana em todos os níveis de ensino, na comunicação social pública e privada e na formulação das decisões e deliberações e de outras formas de comunicação dos órgãos de soberania, da Administração Pública e das empresas públicas, privadas, cooperativas e outras.
5. O Estado promoverá a preservação e a difusão da língua materna cabo-verdiana nas diferentes comunidades cabo-verdianas radicadas no estrangeiro e o seu ensino, em concertação com as associações cabo-verdianas, as escolas de diferentes níveis, os institutos politécnicos e as universidades dos países de acolhimento das mesmas comunidades cabo-verdianas.
Artigo Segundo
O actual artº9º da Constituição da República passa a ter a redacção introduzida pela presente Lei de Revisão Constitucional
Arigo Terceiro
A presente Lei Constitucional entra em vigor na data da sua publicação.
Aprovada em …..
O Presidente da Mesa da Assembleia Nacional
/Austelino Tavares Correia/
Promulgada em …
O Presidente da República
/José Maria Pereira Neves/
Publique-se.
PROPOSTA ELABORADA E APRESENTADA À REUNÃO ORDINÁRIA, DE 25 DE JULHO DE 2025, DA ASSEMBLEIA DA DALMACV-PT POR JOSÉ LUIS HOPFFER ALMADA, JURISTA E COORDENADOR DO CONSELHO DIRECTIVO DA DALMACV-PT
PROPOSTA
DE ANTE-PROJECTO DE REVISÃO DO ARTIGO NONO
DA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DA REPÚBLICA DE CABO VERDE
NOTA EXPLICATIVA
- Cabo Verde vem comemorando e vai continuar a celebrar ao longo do
presente ano de 2025 o Cinquentenário da Proclamação Solene da sua Independência Nacional e da sua constituição numa República livre, independente e soberana e num Estado unitário, laico, anticolonialista e anti-imperialista erigido num Estado de Direito participativo, qualificado como uma democracia nacional revolucionária e dotado de uma força política dirigente da sociedade e do Estado, nos termos da Constituição Política cabo-verdiana, de 6 de Setembro de 1980/de 14 de Fevereiro de 1981, posteriormente conformado numa democracia política plena e num Estado de Direito Democrático, com a Revisão Constitucional de 29 de Setembro de 1990, a qual alterou o regime político vigente de monopartidário para pluripartidário (permanecendo, todavia, muito marcado pela nomenclatura característica da democracia nacional revolucionária), e, finalmente, consolidado num Estado de Direito Democrático e Social em conformidade com a Constituição Política cabo-verdiana, de 25 de Setembro de 1992.
A conquista da independência política e a obtenção das soberanias nacional e internacional de Cabo Verde foram um feito de incomensurável transcendência política e da mais elevada grandeza humana na História multissecular do povo cabo-verdiano e representaram, outrossim, um singular e heroico acto cultural de reafirmação da identidade nacional do povo cabo-verdiano, cuja componente essencial é o crioulo cabo-verdiano, o qual tem sido considerado como imanente, transversal e consubstancial a todas as outras manifestações e expressões culturais do povo das nossas ilhas e diásporas.
Forjado na sociedade colonial-escravocrata como meio de comunicação entre os diferentes grupos étnicos negros escravizados trazidos cativos da costa africana vizinha para as ilhas e os seus senhores brancos chegados com as navegações marítimas europeias, o tráfico negreiro e o comércio triangular transatlântico, o crioulo cabo-verdiano emergiu, assim, como a expressão (linguística) mais eloquente e visível da cultura crioula surgida da interacção, do confronto e do diálogo civilizacionais entre dominados e dominadores, entre explorados e exploradores, no chão agreste das ilhas cabo-verdianas, encontradas desertas de populações autóctones e virgens dos pontos vista antropológico e sociológico.
Perseguido, vilipendiado, ostracizado, completamente arredado do ensino formal oficial, religioso e particular e activamente reprimido e menosprezado pelos poderes estrangeiros opressores vigentes no período da consolidação da dominação colonial portuguesa na sua forma clássica, o crioulo cabo-verdiano logrou resistir com sucesso às investidas coloniais glotofágicas (glotocidas) e assimilacionistas para se tornar a língua nacional do povo cabo-verdiano de todas as classes e categorias sociais nativas e de todas as ilhas e diásporas. Foi, assim, que a língua materna cabo-verdiana foi defendida com amor e sabedoria pelo povo anónimo, humilde e simples que o falava e consagrava em todos os dias da sua vida nhanhida de quotidiana sobrevivência e de estoica resiliência contra as múltiplas tragédias históricas que o assolaram bem como contra as secas e estiagens e outras calamidades climatéricas cíclicas e as correlativas mortandades e hecatombes sociais periódicas causadas pelas fomes com as suas inevitáveis emigrações forçadas para desconhecidos e inóspitos mundos, tendo sido, ademais, cultivada com engenho e arte pelos trovadores populares e pelos poetas eruditos das ilhas e diásporas cabo-verdianas e levada, com destemor e audácia, aos mais nobres espaços de comunicação formal pelos mais notáveis representantes das elites letradas cabo-verdianas activas na altura. Para além da sua elevação a língua literária nos domínios da poesia, do teatro e da prosa narrativa ficcional, a língua cabo-verdiana tornou-se igualmente matéria de aturado estudo e proficiente investigação, a par de se ter feito objecto da recolha das tradições orais nele vazadas.
Deste modo, o crioulo cabo-verdiano tornou-se, como, aliás, constatou assertivamente o filólogo Baltasar Lopes da Silva, tão arreigado ao homem cabo-verdiano como o chão que ele habita e cultiva e no qual fincou os seus pés e a sua alma, e conforme também explicitou Amílcar Cabral, o estratega e líder político-militar e diplomático da luta de libertação binacional dos povos irmãos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, como a prova mais cabal e insofismável da existência e da identidade do povo cabo-verdiano enquanto comunidade nacional dotada do seu próprio idioma singular e único bem como da necessidade e da legitimidade do exercício do seu correlativo direito à autodeterminação e independência políticas.
- Depois da conquista da independência nacional de Cabo Verde, o crioulo
cabo-verdiano foi política e socialmente reconhecido como língua materna dos cabo-verdianos das ilhas e diásporas e componente essencial do património cultural e da identidade nacional do povo cabo-verdiano, ao mesmo tempo que o português continuava a ser considerado e consagrado como única língua oficial do país e, por isso, como a única língua a ser utilizada no sistema formal de ensino, na elaboração das decisões e deliberações dos órgãos do poder do Estado (isto é, dos órgãos de soberania e do poder local) e da administração pública e como língua quase exclusiva de comunicação nos espaços formais de comunicação. Em resultado disso, gerou-se uma deplorável e crítica situação de diglossia linguística consubstanciada na atribuição de estatutos diferenciados, desiguais e desequilibrados à língua oficial portuguesa e à língua materna cabo-verdiana, com efeitos altamente negativos, prejudiciais e contraproducentes para ambas as línguas de Cabo Verde.
Em 1992, aquando da aprovação da Constituição Política cabo-verdiana ainda vigente, o partido parlamentar da oposição, derrotado de forma esmagadora nas urnas, por isso, não tendo conseguido obter o mínimo de um terço dos mandatos parlamentares necessários para apresentar a sua própria proposta de Lei de Revisão Constitucional, apresentou à sociedade cabo-verdiana um projecto de nova Constituição que no seu artº 91º e com a epígrafe “Línguas de Cultura Nacional”, estabelecia o seguinte: “1. O Estado protege a língua cabo-verdiana e assegura o seu ensino, utilização e valorização como língua e património da Nação. 2. O Estado protege a língua portuguesa e assegura o seu ensino, utilização e valorização como língua oficial e património comum dos povos que a utilizam”.
As relações entre a língua oficial portuguesa e a língua materna cabo-verdiana viriam a conhecer uma sensível melhoria do ponto de vista jurídico-político com a constitucionalização do seu estatuto, empreendida, pela primeira vez, mediante a Revisão de 1999 da Constituição Política Cabo-Verdiana, de 25 de Setembro de 1992. A mesma Revisão Constitucional manteve, através do artº 9º da Constituição Política da República, a consagração da língua portuguesa como a única língua plenamente oficial da República de Cabo Verde, ao mesmo tempo que melhorou o estatuto da língua materna cabo-verdiana, erigindo-a como “língua oficial em construção” na República de Cabo Verde, ademais obrigando o Estado a promover as condições para a obtenção da paridade oficial plena entre as duas línguas de Cabo Verde e atribuindo aos cidadãos cabo-verdianos o dever de aprender as línguas oficiais e o direito de usá-las.
Anote-se que a actual redacção do artº 9º da Constituição Política de Cabo Verde representou uma solução compromissória entre as propostas das duas forças parlamentares existentes e actuantes nessa altura: uma, oriunda da maioria parlamentar qualificada do partido do Governo e que consagrava a língua portuguesa como a língua oficial de Cabo Verde ao mesmo tempo que pugnava pela valorização da língua materna cabo-verdiana, e a segunda, proveniente do partido da oposição parlamentar minoritária e que consagrava o português e o crioulo cabo-verdiano como as duas línguas oficiais de Cabo Verde.
Por outo lado e em razão da sua natureza compromissória, o actual artigo 9º da Constituição da República de Cabo Verde tem sido objecto de leituras e interpretações díspares e controversas, incluindo por entidades oficiais responsáveis pela área da cultura e por organizações da sociedade civil estatutariamente incumbidas da promoção da língua cabo-verdiana. Essas mesmas leituras e interpretações têm oscilado entre aquela defensora da tese segundo a qual a oficialização da língua materna cabo-verdiana está ainda por fazer, e outra que considera, de forma muito mais sustentada do ponto de vista técnico-jurídico, que a oficialização da língua materna cabo-verdiana foi já promovida, ainda que somente parcialmente pelo artº 9º da Constituição Política cabo-verdiana de 1992, faltando lhe, todavia, a sua oficialização plena.
A leitura do arº 9º da Constituição da República que recusa a oficialidade, ainda que parcial, da língua materna cabo-verdiana, e nega a possibilidade da sua oficialização plena a breve trecho estriba-se essencialmente numa interpretação literal da primeira parte do seu nº 2 quando diz que “o Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana”, todavia omitindo, consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, a sua segunda e última parte, pois que acrescenta expressamente ao resto da norma a expressão, aliás, assaz decisiva “em paridade com o português”. Tratando-se o português da única língua plenamente oficial em Cabo Verde, uma oficialização da língua materna cabo-verdiana em paridade com o português só pode, pois, significar a oficialização plena da mesma língua.
Ademais, os defensores da tese que nega a oficialidade da língua materna cabo-verdiana também refutam a possibilidade da sua oficialização plena a breve trecho, advogando que ainda não se encontram reunidas as condições necessárias e indispensáveis para essa mesma oficialização plena, tanto mais que, segundo alegam e argumentam, nem sequer existe ainda uma variante normalizada e padronizada da língua materna cabo-verdiana, pelo que seria impossível ou, pelo menos, altamente arriscado e desaconselhável, introduzi-la no ensino e/ou editar diplomas legais, posturas municipais e decisões judiciais na língua materna cabo-verdiana.
Sendo certo que não existe ainda uma variante padronizada da língua materna cabo-verdiana (sendo de se considerar neste contexto a chamada variante pan-dialectal do cabo-verdiano, ilegalmente constante do famigerado “Manual da Língua e da Cultura Cabo-Verdianas”, uma grosseira e absolutamente inaceitável aberração linguística a querer fazer as vezes de uma espécie de esperanto cabo-verdiano na sua falsa, traiçoeira e bairrista pretensão de se constituir em língua-padrão cabo-verdiana), nem sequer uma escrita padronizada da mesma língua, mas somente recomendações mais ou menos fundamentadas e consensualizadas de escrita da língua materna cabo-verdiana constantes das Bases do ALUPEC, a urgência da introdução da única língua plenamente nacional e identitária do povo cabo-verdiano no ensino formal e a premência da escrita de obras em língua cabo-verdiana determinou que, depois de anos de reflexões e debates, se tivesse optado pela seguinte metodologia:
- O ensino, numa primeira fase, primacialmente marcada pela inexistência de
uma variante-padrão e pelo estatuto oficial de um alfabeto de base foinético –fonológica, o ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano), de todas as variantes da língua cabo-verdiana, consoante a sua presença dominante em cada uma das ilhas habitadas do nosso país, tanto mais que é através das suas respectivas variantes que a língua cabo-verdiana se torna e se actualiza como língua materna dos caboverdianos.
- A oficialização plena da língua cabo-verdiana por via da Revisão
Constitucional, mas somente no plano polítrico-simbólico, pois que salvaguardando a expressa manutenção, ainda que numa redacção melhorada, da norma programática constante do actual nº2 do artº 9º da Constituição Política cabo-verdiana, a qual estipula e preceitua que o Estado tem a obrigação de promover as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com o português, ou, por outras palavras, para a sua oficialização plena.
É nesta óptica que, no decurso do processo de Revisão Constitucional de 2010, a qual consabidamente emprestou à Constituição Política cabo-verdiana a sua actual redacção, a maioria parlamentar de então apresentou uma proposta de oficialização plena da língua materna cabo-verdiana em paridade progressiva com a língua portuguesa e lavrada nos seguintes termos: “Artigo nono (Línguas Oficiais da República de Cabo Verde) 1. São línguas oficiais da República de Cabo Verde o português e o cabo-verdiano. 2. O Estado promove as condições para a utilização plena das línguas oficiais da República de Cabo Verde”. Todavia, a proposta da maioria parlamentar não logrou obter os 2/3 requeridos dos votos dos deputados da Assembleia Nacional em razão da oposição da minoria parlamentar do anterior partido do Governo.
3. Entretanto, o estatuto da língua materna cabo-verdiana foi conhecendo melhorias progressivas e muito significativas durante todo o período pós-colonial, não só mediante a já referida Revisão Constitucional de 1999, mas também através da adopção de medidas várias tanto durante a vigência da Primeira República cabo-verdiana, como na vigência da actual Segunda República cabo-verdiana, com destaque para as seguintes:
a) A adopção de um alfabeto de base fonético-fonológica para a escrita da língua cabo-verdiana, primeiramente, de forma oficiosa com o chamado Alfabeto do Mindelo, aprovado pelo Colóquio Linguístico Internacional de 1979, realizado na cidade nortenha cabo-verdiana, caracterizado pelo uso sistemático de acentos circunflexos (os chamados chapéus) nas palatais. O chamado Colóquio do Mindelo recomendou, ademais, que a variante de Santiago, considerada a variante-base da língua cabo-verdiana, fosse adoptada como a variante-padrão da mesma língua, em conformidade, aliás, com recomendações de vários linguistas, filólogos e estudiosos, com destaque para Baltasar Lopes da Silva.
b) A adopção, em 1989, pelo Fórum de Alfabetização Bilingue, de um alfabeto, igualmente de base fonético-fonológica, que procedeu à supressão dos chamados chapéus e reintroduziu os dígrafos e os trígrafos nas palatais, e, depois, em 1993/1994, do ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-Verdiano), proposto pelo Grupo constituído para a elaboração do mesmo alfabeto unificado e adoptado, primeiramente, a título experimental por diploma legal do Governo e, posteriormente e também por diploma legal do Governo, como alfabeto oficial da língua cabo-verdiana por proposta do Fórum Linguístico da Praia, de 2009, convocado pelo Departamento Linguístico da Direcção de Ciências Sociais do Instituto de Investigação e de Promoção Culturais (IIPC) do Ministério da Cultura de Cabo Verde, o qual procedeu a uma exaustiva avaliação da utilização a título experimental do ALUPEC e recomendou algumas significativas alterações ao ALUPEC e a sua adoção, como já referido, como o alfabeto oficial da língua materna cabo-verdiana, recomendações essas cumpridas na íntegra pelo Governo no que se refere à adopção do ALUPEC como alfabeto oficial para a escrita da língua cabo-verdiana, mas não cumpridas no que respeita designadamente à supressão da letra y e a substituição pela letra i em todas as circunstâncias e funções gramaticais.
c) A Introdução, desde 1979, da língua materna cabo-verdiana como matéria de ensino na Escola de Formação de Professores do Ensino Secundário e, a partir de 2011, a criação de um mestrado em língua cabo-verdiana e de uma cátedra de língua cabo-verdiana na Universidade (Pública) de Cabo Verde, bem como a introdução, a partir de 2023, do mesmo idioma materno cabo-verdiano como matéria de ensino facultativa e a título experimental no 10º ano de escolaridade do ensino oficial cabo-verdiano, para além da anterior organização do ensino bilingue inglês-crioulo nos Estados Unidos da América, do precedente ensino do crioulo cabo-verdiano no âmbito das actividades de diversas associações comunitárias cabo-verdianas em Portugal e nos Países Baixos e da introdução, a título experimental, do ensino bilingue português-crioulo numa escola da margem sul da região da Grande Lisboa e, nos anos lectivos 2013/2014 e 2014/2015, em algumas escolas do ensino básico das ilhas de Santiago e de São Vicente, tendo esse projecto sido extinto pela nova Ministra da educação empossada com a governação iniciada com a terceira alternância política democrática ocorrida em 2016.
d) A criação, em 1989, da Comissão Nacional da Língua Cabo-Verdiana, contudo sem actividade assinalável em razão do anúncio da Abertura Política de 19 de Fevereiro de 1990, de todo o modo tornada inoperacional com a entrada em funções do primeiro Governo Constitucional da Segunda República cabo-verdiana e constituído pela antiga oposição política emergente.
e) A aprovação da Lei nº 103/III/90, de 29 de dezembro, que estabeleceu as Bases do Sistema do Ensino em Cabo Verde e que, pela primeira vez, previu a introdução do ensino da língua cabo-verdiana no sistema educativo formal cabo-verdiano, mas somente a partir dos últimos anos de escolaridade obrigatória, todavia permanecendo a mesma lei letra morta nesta matéria. A mesma Lei foi alterada pela Lei no 113/V/99, de 18 de outubro, permanecendo, todavia, e tal como a Lei anterior, letra mortíssima no que se refere à introdução da língua cabo-verdiana nos currículos escolares dos ensinos primário e secundário.
f) A adopção, já após a segunda vitória do partido do Governo na sequência da verificação da segunda alternância política democrática, ocorrida em 2001, da Resolução do Conselho de Ministros que propiciou e possibilitou a livre e ampla utilização da língua materna cabo-verdiana em espaços formais de comunicação de diversa índole.
g) A criação, em 2012, após a terceira vitória eleitoral do partido do Governo, da Comissão Nacional para as Línguas (designadamente o crioulo cabo-verdiano e o português), que realizou, em 2013, conjuntamente com a Comissão Especializada de Educação, Cultura, Juventude e Desporto da Assembleia Nacional o Fórum Parlamentar sobre o Bilinguismo Cabo-Verdiano, o qual fez várias “Conclusões e Recomendações”, de entre as quais uma proposta conjunta das duas entidades acima referidas de Revisão do artigo nono da Constituição Política cabo-verdiana visando a oficialização plena da língua cabo-verdiana, em paridade progressiva com a língua portuguesa. São os seguintes os termos do texto completo das acima referidas Conclusões e Recomendações do Fórum Parlamentar da Praia, de 13 e 14 de Maio de 2013: “Considerando que neste mundo global e pluricultural, centrado na comunicação, o bilinguismo, a situação mais comum e factor de inclusão e desenvolvimento humano, desafia os poderes públicos para políticas linguísticas inovadoras; Considerando a importância da nossa língua materna (língua cabo-verdiana) na afirmação da identidade, da coesão e da solidariedade nacionais; Considerando o estabelecido na Declaração Universal dos Direitos linguísticos patrocinada pela UNESCO, nomeadamente nos seus artigos 2º,3º, 9º, 12º e 13º; Considerando ainda que a Constituição da República de Cabo Verde incumbe o Estado de defender, preservar, valorizar e incentivar o uso da língua materna; a Assembleia Nacional, através da Comissão Especializada da Educação, Cultura, Juventude e Desporto (CECJD) e o Ministério da Cultura, através da Comissão Nacional para as Línguas, ,e com o apoio da UNESCO, realizaram nos dias 17 e 18 de Maio de 2013, um Fórum Parlamentar, para aprofundamento da reflexão acerca da problemática da oficialização da língua cabo-verdiana, tendo em vista a construção de um bilinguismo social efectivo. Este Fórum constituiu-se como um espaço de discussão aberta, plural, com participação de diferentes sectores da sociedade civil e de articulação entre esta, políticos e técnicos. Tendo concluído existir consenso acerca da necessidade e da urgência da oficialização da língua cabo-verdiana, dadas as diferentes disfunções de que o país padece, o Fórum recomenda que: seja acelerado o processo de oficialização da língua cabo-verdiana, considerando que ela cria a base legal para o tratamento técnico deste património cultural, factor de identidade, coesão e solidariedade nacionais, com a correspondente alteração do artº 9º da Constituição:
1. São línguas oficiais de Cabo Verde o crioulo cabo-verdiano e o português;
Ou
São línguas oficiais de Cabo Verde o crioulo, língua cabo-verdiana, e o português;
2.Todos os cidadãos têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las;
3.O Estado criará as condições para a construção progressiva do bilinguismo social efectivo das duas línguas de Cabo Verde;
-Sejam accionados todos os mecanismos que envolvam a sociedade civil neste processo, nomeadamente encontros para divulgação e consensualização das propostas técnicas;
-Seja promovido, com apoio institucional, um programa sistemático de investigação da língua cabo-verdiana, com descrição de todas as suas variedades na perspectiva do seu desenvolvimento.
Feito na Praia, aos 18 de Maio de 2013”.
Anote-se que a mesma Comissão Nacional para as Línguas foi extinta pelo novo Ministro da Cultura e Indústrias Criativas empossado com a governação iniciada com a terceira alternância política democrática encetada no país, em 2016.
h) A crescente e efectiva utilização da língua materna cabo-verdiana em vários espaços formais de comunicação, como o parlamento e os órgãos de comunicação social, incluindo a imprensa escrita, sendo que a língua materna cabo-verdiana tem sido a língua utilizada quase exclusivamente em comícios políticos, encontros comunitários e campanhas e sessões públicas de esclarecimento sobre questões políticas fundamentais para o povo cabo-verdiano, como a saúde, a educação, a segurança e a ordem públicas. Marcantes da visibilidade da língua materna cabo-verdiana nos planos nacional e internacional foram uma intervenção do anterior Primeiro-Ministro de Cabo Verde feita em crioulo cabo-verdiano numa sessão da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), as intervenções em português entremeadas de expressões em língua cabo-verdiana do anterior Chefe do Estado aquando da declaração do estado de emergência e das suas prorrogações por ocasião da eclosão e da disseminação da pandemia da covid-19 e a intervenção bilingue português-crioulo do actual Chefe de Estado no seu Discurso de Tomada de Posse do Cargo de Presidente da República de Cabo Verde.
i) A edição de um número crescente de textos, de livros e de colectâneas em língua cabo-verdiana nos mais variados géneros literários e de escrita, quais sejam poesia, prosa de ficção (incluindo romances, contos, novelas), teatro, ensaio, peças jornalísticas, etc., contribuindo, assim, de forma determinante para a formação e a consolidação de um cada vez mais pujante sistema literário cabo-verdiano, que coexiste, no seio de uma prestigiada santíssima trindade literária cabo-verdiana, com a oratura (ou literatura oral) cabo-verdiana e o já antigo e longevo sistema literário cabo-verdiano em língua portuguesa.
j) A elaboração de diversos estudos, teses de mestrado e de doutoramento e outras obras de pesquisa e investigação científicas sobre diferentes aspectos e dimensões da língua cabo-verdiana e das suas diferentes variantes dialectais por numerosos estudiosos cabo-verdianos e estrangeiros, existindo, por isso, na actualidade um muito importante acervo de materiais científicos sobre a língua cabo-verdiana, a sua história, as suas variantes e as suas características essenciais e as suas especificidades gramaticais.
k) A aprovação do Decreto-Lei nº 28/2022, de 12 de julho, que, no seu arº 15º , introduz no currículo do 10º ano de escolaridade, a disciplina de língua e cultura cabo-verdianas.
O mesmo artigo tem a seguinte redacção : “artigo 15º (Língua e Cultura cabo-verdianas)1- É introduzida a disciplina da Língua e Cultura Cabo-verdianas, com os objetivos de: a) Reforçar a identidade linguística e cultural do aluno; b) Desenvolver a consciência linguística da sua língua materna; c) Familiarizá-lo com todas as variedades do cabo-verdiano, desenvolvendo atitudes positivas face à variação linguística; d) Aprofundar o conhecimento e a afirmação da escrita da língua, fazendo do aluno seu utilizador independente; e) Integrá-lo na sua coletividade em desenvolvimento; e f) Promover os valores de diversidade linguística,
do multiculturalismo e da tolerância.
2-A estratégia para a introdução do estudo da língua e da cultura cabo-verdianas desenvolve-se nos termos seguintes: a) É introduzida a “Língua e Cultura Cabo-verdianas” como disciplina optativa, a partir do 10º ano de escolaridade, por um período experimental de três anos, renovável por mais dois anos; b) O caráter experimental da disciplina será encarado como uma experiência metodologicamente e pedagogicamente orientada no quadro de um projeto de investigação-ação, em que os dois anos, após a fase experimental, serão dedicados à consolidação da disciplina; c) A disciplina, em que a língua cabo-verdiana será meio de ensino e objeto de aprendizagem, será centrada em conteúdos linguísticos enquadrados em teorias linguísticas atuais; d) Privilegiar-se-á uma abordagem linguística descritiva, inclusiva e contrastiva, fundamentada em princípios de educação para a diversidade linguística e metodologias e práticas educativas internacionalmente recomendadas; e e) No âmbito de conteúdos de natureza cultural, dever-se-á abordar a génese e a formação da língua cabo-verdiana inseridas no contexto global de processos histórico-culturais e linguísticos, de contacto de línguas e de crioulização, bem como as produções culturais que têm a língua como o seu principal veículo.
3- Após o período experimental, a disciplina de Língua e Cultura Cabo-verdianas passa a integrar o currículo do Ensino Secundário a partir do 10o ano.4-Após consolidação dos aspetos técnico-científicos e metodológicos, que ocorrerá na sequência da fase experimental, serão empreendidos esforços que garantam a introdução da língua cabo-verdiana no currículo desde o 10º ano de escolaridade e a exploração das potencialidades técnicas da educação bilingue, desde o ensino pré-escolar”.
A opção do Ministério da Educação de Cabo Verde pela introdução da língua cabo-verdiana no 10º ano de escolaridade e não nos primeiros anos de escolaridade, conforme recomendado pela UNESCO e pela sua Convenção sobre os Direitos Linguísticos dos Povos, mereceu fortes críticas de pedagogos, professores e outros especialistas na matéria, mas também foi saudada como um primeiro passo oficial nessa importante vertente de valorização e dignificação da língua materna cabo-verdiana que é o seu ensino formal aos alunos das escolas do país. Críticas muito mais contundentes mereceu o “Manual de Língua e Cultura Cabo-Verdianas” cuja elaboração foi liderada por uma consultora polaca e realizada com o concurso de uma consultora brasileira e duas consultoras oriundas da ilha de Santo Antão, sendo todas elas especialistas em crioulística cabo-verdiana e, em especial, das variantes de barlavento da língua cabo-verdiana. Esse facto tornou-se assaz relevante, pois que as mesmas consultoras foram igualmente as responsáveis pela elaboração do chamado pandialecto cabo-verdiano, que pretendendo ser uma variante-padrão da língua cabo-verdiana neutra em relação a todas as suas variantes e alegadamente incorporando os contributos de todas elas, porém intenta impor uma variante aparentada com as variantes de barlavento como variante-padrão da língua caboverdiana, diga-se que suma e inequivocamente artificial e artificiosa. Por isso e por ser considerado, ademais, totalmente ilegal por pretender promover a padronização da língua cabo-verdiana à revelia das leis vigentes, além de desqualificado como uma espécie de esperanto cabo-verdiano e uma autêntica aberração linguística formulada por autores pejados de preconceitos supremacistas bairristas, o chamado pandialecto cabo-verdiano tem sido ferozmente atacado e rejeitado por vários linguistas e especialistas em crioulística cabo-verdiana bem como por escritores de língua cabo-verdiana e por outros interessados na valorização da nossa língua materna
l) A declaração por parte do Governo e por iniciativa do Ministério da CVultiura e das Indústrias Criativas, da língua materna cabo-verdiana como património cultural imaterial nacional de Cabo Verde, seguida, algum tempo depois e por iniciativa de uma deputada integrante da bancada da maioria parlamentar, da declaração por parte da Assembleia Nacional da língua portuguesa, a única ainda plenamente oficial da República de Cabo Verde, como património cultural imaterial nacional de Cabo Verde.
m) A criação, em 2023, da Associação da Língua Materna Cabo-Verdiana (ALMA-CV), na sequência e como resultado mais tangível da apresentação aos órgãos de soberania do Estado cabo-verdiano de uma petição exigindo “a oficialização da língua materna cabo-verdiana”, e, em 2024, da sua Delegação em Portugal (DALMACV-PT), tendo a mesma associação como objectivo imediato mais importante “a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa” com todas as consequências inerentes para as políticas linguísticas a promover pelo Estado cabo-verdiano.
n)A aprovação pela Assembleia da Delegação da ALMA.CV em Portugal (DALMACV.PT), na sua reunião ordinária de 5 de Abril, de uma moção de censura do “Manual de Língua e Cultura Cabo-Verdianas” e de veemente condenação do chamado crioulo pandialectal dele integrante.
4. Urge, pois, neste ano da celebração do Cinquentenário da Conquista pelo Povo Cabo-Verdiano da sua Independência Nacional clarificar de forma definitiva, a questão do estatuto oficial da língua materna caboverdiano, e dos seus âmbito, extensão e dimensão, ao mesmo tempo que se envia uma forte mensagem político-cultural ao Povo livre, independente e soberano de Cabo Verde nas ilhas e diásporas, consubstanciada na forma de um significativo gesto político-simbólico que seja plenamente congruente com essa efeméride maior da sua História, e dele inteiramente merecedor, mas também seja realista e tenha suficientemente em conta a real situação sociolinguística existente e prevalecente no país e no seio das diferentes comunidades cabo-verdianas espalhadas pelo mundo sem nunca descurar a circunstância objectiva caracterizada pela fragilidade estrutural do país e traduzida nos parcos recursos económico-financeiros com que o Estado cabo-verdiano e as instituições públicas e privadas nacionais podem continuar a contar para o desenvolvimento do seu sistema educativo bem como para a promoção da língua materna cabo-verdiana e de uma sã, produtiva e profícua coexistência entre as duas línguas de Cabo Verde, assim, contribuindo para um efectivo, funcional e real bilinguismo português-crioulo no nosso país.
TEXTO DA PROPOSTA DE ANTEPROJECTO DA REVISÃO DO ARTIGO NONOO DA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA CABO-VERDIANA
Visando marcar o Cinquentenário da Independência Nacional com um sinal claro e inequívoco significativo do comprometimento total dos Deputados da Nação reunidos na Assembleia Nacional com a promoção contínua e a dignificação permanente da língua materna cabo-verdiana.
Tendo em devida conta a necessidade de promover um real, funcional e efectivo bilinguismo social na sociedade cabo-verdiana e que seja marcado pela coexistência cada vez mais produtiva e profícua entre as duas línguas de Cabo Verde,
Considerando a modéstia e a parcimónia dos recursos económico-financeiros de que o país dispõe,
Por mandato do povo, a Assembleia Nacional decreta, nos termos da alínea a) do artigo 174º da Constituição, o seguinte
Artigo Primeiro
(Modificações)
É revista a Constituição de 1992, aprovada pela Lei Constitucional nº 1/IV/92, de 25 de Setembro, alterada pelas Leis Constitucionais números 1/IV/95, de 13 de Novembro, 1/V/99, de 23 de Novembro, e 1/VII/2010 de 3 de Maio, nos termos seguintes:
O artº9º da Constituição da República passa a ter a seguinte redacção:
Artº 9º
(Línguas Oficiais)
1.A língua portuguesa e a língua cabo-verdiana são as línguas oficias da República de
Cabo Verde
2. O Estado promoverá as condições para a oficialização plena da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa, bem como para o desenvolvimento de um bilinguismo social efectivo em Cabo Verde.
3. Todos os cidadãos cabo-verdianos têm o dever de conhecer as línguas oficiais da República de Cabo Verde e o direito de usá-las em todos os espaços formais e informais de comunicação.
4. O Estado criará, em concertação com as organizações da sociedade civil e com outras entidades públicas e privadas, as condições para a introdução progressiva da língua materna cabo-verdiana em todos os níveis de ensino, na comunicação social pública e privada e na formulação das decisões e deliberações e de outras formas de comunicação dos órgãos de soberania, da Administração Pública e das empresas públicas, privadas, cooperativas e outras.
5. O Estado promoverá a preservação e a difusão da língua materna cabo-verdiana nas diferentes comunidades cabo-verdianas radicadas no estrangeiro e o seu ensino, em concertação com as associações cabo-verdianas, as escolas de diferentes níveis, os institutos politécnicos e as universidades dos países de acolhimento das mesmas comunidades cabo-verdianas.
Artigo Segundo
O actual artº9º da Constituição da República passa a ter a redacção introduzida pela presente Lei de Revisão Constitucional
Arigo Terceiro
A presente Lei Constitucional entra em vigor na data da sua publicação.
Aprovada em …..
O Presidente da Mesa da Assembleia Nacional
/Austelino Tavares Correia/
Promulgada em …
O Presidente da República
/José Maria Pereira Neves/
Publique-se.
PROPOSTA ELABORADA E APRESENTADA À REUNÃO ORDINÁRIA, DE 25 DE JULHO DE 2025, DA ASSEMBLEIA DA DALMACV-PT POR JOSÉ LUIS HOPFFER ALMADA, JURISTA E COORDENADOR DO CONSELHO DIRECTIVO DA DALMACV-PT
Lisboa, 15 de Julho de 2025