E de repente eclodiu a revolução do 25 de Abril de 1974 e deu-se a libertação dos presos políticos do Tarrafal e tudo o mais que viria depois!...*

Por Tuna Furtado Lopes1

 (…) 3. E de repente eclodiu o 25 de Abril de 1974, considerado pelo Nhonhô numa entrevista à RTC (Radio-Televisão de Cabo Verde) sobre o seu percurso de vida como “uma autêntica revolução”. E de facto foi a festa infinita que começou com a caça aos informadores e agentes  da PIDE/DGS na cidade da Praia, a queima das respectivas viaturas e/ou seu despenhamento no mar a partir do Cruzeiro do Platô, actos nos quais o Nhonhô e os seus amigos estudantes da Assomada residentes na cidade-capital da colónia/província ultramarina portuguesa participaram activamente e continuou com o lançamento de panfletos políticos na vila da Assomada dirigidos aos militares aquartelados no antigo edifício da SAGA e para o qual fui mobilizado pelo Betinho de Nho Bebeto-Alberto Lopes Barbosa, Júnior (sendo essa a primeira acção política, ademais clandestina, de toda a minha vida, depois muito marcada pela intervenção política e cívica, se bem que em larga medida fora do quadro político-partidário), e, logo depois, com a libertação dos presos políticos do Tarrafal, prosseguindo com os frequentes comícios, reuniões, sessões de esclarecimento e manifestações, os saraus culturais e as muitas e acaloradas discussões políticas, nas quais nós, adolescentes, também nos envolvíamos entusiástica e freneticamente.

Nessa altura, o Nhonhô, primeiramente, e, posteriormente, o Benny, depois de ambos terem concluido os estudos no Ciclo Preparatório da Assomada, inaugurado em 1969 (diga-se que por forte pressão do nosso irmão David e de outros estudantes liceais e universitários oriundos do concelho de Santa Catarina), residiam na cidade da Praia para absolver os primeiros anos do Curso Geral dos Liceus, seguindo os passos da nossa irmã Lurdes e do nosso irmão Orlando. Foi durante a sua estadia na cidade da Praia para a prossecução dos estudos liceais que o Nhonhô e o Benny devem ter tomado contacto com as células clandestinas do PAIGC. Foi nessa altura que o Nhonhô iniciou as suas actividades como cantor em tocatinas, serenatas e outros convívios e tertúlias de amigos, colegas e camaradas do Liceu e não só. As minhas irmãs Mariazinha, Tuginha e Lurdes (sendo que esta entretanto tinha deixado o Liceu da cidade da Praia para se empregar como professora primária, tal como as  outras duas irmãs mais velhas), que na altura residiam na cidade da Praia, devem também ter tomado contacto e colaborado com as estruturas clandestinas do mesmo PAIGC, depois de terem sido frequentemente chamadas à sede da PIDE-DGS da Assomada para interrogatório por suspeita de actividades subversivas contra a nação, que era como eram denominadas as actividades clandestinas dos militantes da luta para a independência, acintosamente desqualificados e aterrorizados como turras e, por isso, sempre sob a ameaça de serem encarcerados e aprisionados no famigerado campo da morte lenta do Tarrafal ou de serem deportados para Angola e confinados no campo de concentração de São Nicolau localizado no deserto de Moçâmedes na foz do rio Cunene.

No ano anterior ao 25 de Abril, isto é, em 1973, o David tinha regressado dos estudos universitários de Direito na prestigiada Universidade de Coimbra e aberto o seu escritório de advogado no Platô da cidade da Praia e no qual a nossa irmã Lurdes se tornou funcionária. O David tinha jogado um importante papel como advogado de presos políticos e, depois, no processo de libertação dos presos políticos do Tarrafal, conjuntamente com os seus colegas advogados Felisberto Vieira Lopes e Arlindo Vicente Silva. Foi a libertação dos presos políticos do Tarrafal que me proporcionou a ocasião e a oportunidade de dar a minha primeira volta, por assim dizer, à ilha toda de Santiago, ademais sem a autorização e sem ser acompanhado pelo nosso pai, como fora da primeira vez que, muito cedo e no autocarro Albion do Sr João de Fábrica, fora à cidade da Praia para ser vacinado no Hospital provincial e obter alguns documentos necessários para o meu ingresso no Ciclo Preparatório da Assomada. Com efeito, capitaneados por Toco (Fernando Tavares), um ex-preso político da Cadeia Civil da Praia e do Tarrafal, fomos para o Chão Bom, localidade tarrafalense onde estava localizado o famigerado campo de concentração-presídio político e onde assistimos ao momento único da libertação dos doze presos políticos caboverdianos, entre os quais sobressaía nítido e agigantado o Pedro Martins, dos cinquenta presos políticos angolanos, onde se destacavam o branco angolano António Cardoso, o negro Mendes de Carvalho, depois celebrizado como o escritor Uanhenga Xito, e os irmãos Pinto de Andrade, cuja mãe era caboverdiana bem como de dois presos políticos guineenses.

Libertados os presos políticos e feito o comício apropriado para a ocasião no qual falaram o Jorge Querido, responsável máximo do PAIGC em Cabo Verde, na altura ainda na clandestinidade ou em semi-clandestinidade, o Pedro Martins, o mais jovem preso político do Tarrafal, o angolano António Cardoso, o Carlos Tavares, um antigo e muito barbudo preso político caboverdiano libertado, conjuntamente com Luís Fonseca e Jaime Schofield, logo depois do assassinato de Amílcar Cabral, permanecendo todavia encarcerado no Tarrafal o Lineu Miranda, então considerado mais velho e veterano, porque o mais antigo preso político caboverdiano. Depois do comício realizado no largo defronte do famigerado campo de concentração/ presídio político do Chão Bom do Tarrafal, onde pela primeira vez ouvi gritar vivas ao PAIGC, à independência  de Cabo Verde e à memória de Amílcar Cabral e abaixos ao colonial-fascismo português pela voz sonora e embargada de Pedro Martins, e, depois de darmos uma muito alegre e ruidosa volta à Vila de Mangue do Tarrafal, seguimos todos para a cidade da Praia, sempre festejados pelas numerosas multidões das localidades, a maioria da beira-mar, por onde passávamos, como a Calheta de São Miguel, a vila de Pedra Badejo, Milho Branco, São Domingos, São Filipe, Vila Nova, Fazenda e, finalmente, o Platô da cidade da Praia. Aqui na Praça Grande do Platô da cidade da Praia assisti pela segunda vez na minha vida a um comício político e no qual se proferiu publicamente e se deram vivas à liberdade, à independência de Cabo Verde, ao PAIGC e à memória da vida e da obra de Amílcar Cabral e se gritaram abaixos contra a PIDE-DGS e o colonial-fascismo português, confusamente misturados com vivas à Junta de Salvação Nacional e ao General António Spínola, levados ao poder em Portugal Continental pelo golpe de estado militar do 25 de Abril de 1974 perpetrado pelo MFA (Movimento das Forças Armadas).

Da Praia seguimos para a Assomada, com paragens nas várias localidades do interior por onde passávamos para que as respectivas populações pudessem cumprimentar e vitoriar os presos políticos libertados, na sua esmagadora maioria oriundos do concelho e da freguesia de Santa Catarina. A paragem na localidade dos Órgãos serviu também para ajustar contas com o padre Arlindo, um missionário metropolitano que se dizia ter sido informador da famigerada, odiada e agora extinta PIDE-DGS. Parece que a população dos Órgãos, muito conhecida pela sua extrema religiosidade católica, em especial aquela vizinha da igreja local e da residência do padre Arlindo, não gostou desse gesto de alguns integrantes mais velhos, afoitos e destemidos da comitiva dos presos políticos e veio armada com catanas, facas e pedras em socorro do padre Arlindo, pondo em sério risco a integridade física e a vida dos inopinados e desabridos ajustadores de contas, incluindo do meu irmão Nhonhô, considerados blasfemos porque assumidos agressores de um representante de Deus na Terra. Ultrapassado o percalço, dele saindo todos ilesos, seguimos para a Vila de Assomada onde nos reunimos a uma multidão de pessoas em festa e delírio em frente da casa-vivenda do Sr Damas e da Dona Elisa, os pais do agora libertado ex-preso político Pedro Martins. Nessa noite, tomaram a palavra o Sr Damas bem como o próprio Pedro Martins e, finalmente, o Peta (Armando Araújo) que recitou em tom declamatório um poema clamando por sangue e vingança por todas as atrocidades cometidas pela PIDE-DGS e por todas as iniquidades devidas à opressiva dominação colonial-fascista portuguesa. Nessa sequência, todas as atenções viraram-se para algumas pessoas presentes, mais ou menos discretamente, no meio da multidão sobre-excitada e imediatamente apontadas como suspeitas de terem sido informadoras da odiada e extinta PIDE-DGS. Devidamente interpeladas e açoitadas as pessoas apontadas como tendo sido galinhas da PIDE-DGS, as atenções concentraram-se na sede local da PIDE-DGS domiciliada do outro lado da mesma rua numa casa vizinha da moradia/vivenda do Sr Damas cujas vidraças foram totalmente estilhaçadas a pedrada. Depois, o grupo de jovens vingadores, encabeçados por um jovem adulto oriundo de Nhagar e acolitados por alguns de nós adolescentes, dirigiu-se para as casas de outros supostos informadores da PIDE-DGS, as quais foram igualmente cercadas e as vidraças das respectivas janelas devidamente estilhaçadas. A caminho foram abordadas, sempre de forma assaz violenta e agressiva, outras pessoas acusadas de terem sido bufos da famigerada polícia política colonial-fascista portuguesa, nem sempre com razão, nesse momento de excessiva excitação e muita exaltação, acrescidas de raiva e exacerbada vontade de vingança, quiçá compreensíveis, dadas as excepcionais e momentâneas circunstâncias de descompressão política.
Poucos dias depois da libertação dos presos políticos do Tarrafal, foi a vez de as populações da cidade da Praia e de vários recantos da ilha de Santiago bem como da ilha de São Vicente irem receber de forma maciça, entusiástica e apoteótica no aeródromo da cidade da Praia e no aeródromo de São Pedro na ilha de São Vicente os presos políticos regressados de Angola. Na verdade, depois de libertados do campo de concentração localizado na Foz do Cunene no deserto de Mocâmedes, os presos políticos caboverdianos foram primeiramente conduzidos a Luanda, de onde viajaram num avião militar para a ilha do Sal, onde na altura existia o único aeroporto internacional de Cabo Verde e uma base da Força Aérea Portuguesa em Cabo Verde. Da ilha do Sal os presos políticos caboverdianos vindos de Angola foram reconduzidos para as respectivas ilhas, designadamente para a ilha de São Vicente e para a cidade da Praia, na ilha de Santiago, de onde, aliás, provinha a maioria deles, nomeadamente o santa-catarinense Homero Vieira Lopes, sobrinho do advogado Felisberto Vieira Lopes celebrizado como o poeta crioulógrafo Kaoberdiano Dambará, ambos, sobrinho e tio, conhecidos pelo seu feitio destemido e pelo seu carácter irreverente e temerário.
O Homero Vieira Lopes tinha sido preso numa madrugada de Janeiro de 1974, quando, com o Dico (Eurico Correia Monteiro) e o Luís Cunha, colava cartazes com textos anti-colonialistas de poetas revolucionários caboverdianos e foram surpreendidos por uma patrulha da PSP (Polícia de Segurança Pública), tendo o Luís Cunha conseguido escapar à abordagem policial. Para nosso espanto, o nosso herói Homero Vieira Lopes não tinha regressado de Angola com os demais presos políticos caboverdianos, tais os conhecidos Euclides Fontes, Luis Oliveira Tolentino (chamado teacher), Eduardo Tavares, Alexandre de Pina (Aleixa), Filinto Vaz Rodrigues, Óscar Duarte, Fernando Santos (Funa), Focá, Ulisses Tavares (Fogo) e Eurico Correia Monteiro (Dico), num total de doze presos políticos caboverdianos confinados no campo de trabalhos forçados da Foz do Cunene, os mais antigos desde 1972, e os mais recentes desde Janeiro de 1974. Filho de mãe angolana, como ficámos a saber, o Homero preferiu ficar em Angola e ir à procura da mãe. Viríamos a saber que viria a integrar as FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), afectas ao partido-irmão do PAIGC, o MPLA, quando caiu em combate na guerra contra os agressores e invasores sul-africanos e os seus acólitos, aliados e/ou auxiliares da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola). Todos os presos políticos libertados do Tarrafal ou regressados de Angola nesse convulsivo mês de Maio de 1974 eram certamente conhecidos dos nossos irmãos David e Nhonhô e, quiçá, das nossas irmãs ou, pelo menos, de algumas delas, pois que eram todos assumidamente afectos ao PAIGC, partido de que eram todos simpatizantes activos ou militantes na clandestinidade e por causa do qual esses jovens deportados políticos tinham sido presos.
Na verdade, como viemos a saber muitos anos depois, os primeiros presos políticos caboverdianos foram mobilizados para a causa independentista num quadro estritamente islenho/arquipelágico por José André Leitão da Graça que em Lisboa integrou a célebre CEI (Casa dos Estudantes do Império) e foi um dos fundadores do Grupo político-cultural denominado Nova Largada, que nos anos anos cinquenta do século XX viria a ser responsável pela primeira ruptura político-literário-cultural com os pressupostos luso-crioulistas e luso-tropicalistas da claridosidade enquanto primeira geração nacionalista caboverdiana de nítida matriz pan-africanista revelada no Suplemento Cultural do Boletim Cabo Verde e nos dois últimos números, de 1958 e de 1960, da revista Claridade e de que Amílcar Cabral, com o seu veemente apelo anti-assimilacionista de reafricanização dos espíritos, foi o principal mentor e de cuja praxis ensaística e literária Manuel Duarte, Aguinaldo Fonseca, Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Iolanda Morazzo e Francisco Lopes da Silva foram os protagonistas fundamentais. Curiosamente, Amílcar Cabral foi o encarregado de educação do estudante universitário de Direito José André Leitão da Graça. Perdida a mesada do pai e sem poder concluir o Curso de Direito que frequentava na respectiva Faculdade da Universidade Clássica de Lisboa, José André Leitão da Graça teve de regressar a Cabo Verde, fixando-se primeiramente na cidade do Mindelo onde concluíra os cursos dos Liceus e se cruzou com o antigo camarada do Grupo da Nova Largada Manuel Duarte, então desempenhando as funções de Procurador da República na Comarca de Barlavento, e com Abílio Duarte, enviado especial do PAIGC, fundado em Bissau em 1956, para proceder à mobilização dos estudantes, dos operários e dos integrantes de outras categorias sociais mindelenses/ sanvicentinas para a luta da independência de Cabo Verde no quadro do principio cabralista e pan-africanista da unidade Guiné-Cabo Verde, a pretexto de concluir os estudos liceais, interrompidos quando emigrou para a então Guiné Portuguesa, onde reencontrou Amílcar Cabral, Luís Cabral e Fernando Fortes, conheceu Aristides Pereira e com eles se tornou militante destacado da causa independentista dos dois territórios ultramarinos portugueses localizados na África Ocidental. Do trabalho político de Abílio Duarte resultou a mobilização não só da sua futura esposa Dulce Almada Duarte, mas também de alguns operários e empregados comerciais, como Dul e António Neves, e de alguns estudantes do terceiro ciclo do Liceu Gil Eanes do Mindelo, vindo alguns deles a integrar a luta político-armada na Guiné dita Portuguesa e a ser importantes responsáveis políticos e comandantes militares do PAIGC, como Silvino da Luz, Honório Chantre, Joaquim Pedro Silva (Baró), entre outros. Depois do Mindelo, José Leitão da Graça fixou-se na sua cidade natal da Praia, onde consegue mobilizar para a causa independentista vários jovens estudantes e intelectuais e funcionários públicos, como Mário Fonseca, Arménio Vieira, Manuel Chantre, Alcides Barros, Anastácio Filinto Correia e Silva, Osvaldo Azevedo, Lucílio Braga Tavares, os quais são todavia descobertos e encarcerados na Cadeia Civil da Praia, juntamente com Aires Leitão da Graça, o qual teria fundado a UPICV (União das Populações das ilhas de Cabo Verde), em 1958, em Rhode Island, nos Estados Unidos da América. Levados a julgamento na cidade da Praia, todos esses primeiros presos políticos caboverdianos são absolvidos por falta de provas. Tanto Abílio Duarte como José Leitão da Graça seriam obrigados à fuga precipitada para Dacar, ambos de barco, o primeiro a partir da ilha de São Vicente, o segundo a partir da cidade da Praia, para escaparem às garras da polícia política colonial-fascista portuguesa. Com o decurso do tempo, todos esse primeiros presos políticos em razão da causa nacionalista caboverdiana passariam a ser simpatizantes e, até, figuras proeminentes do PAIGC, tendo alguns deles chegado a participar na luta política no exílio e na mobilização política dos caboverdianos emigrados, designadamente em Moselle, em França, como no caso de Mário Fonseca que integrou várias representações político-diplomáticas do PAIGC, designadamente em Argel e Dacar, e na luta político-militar conduzida no chão da Guiné, como foi o caso de Osvaldo Azevedo. Dos mobilizados para a cauda independentista cabo-verdiana em fins dos anos cinquenta do século XX na cidade da Praia por José Leitão da Graça, somente o irmão mais novo Aires Leitão da Graça, Manuel Chantre, mais tarde co-fundador da Casa de Cabo Verde de Lisboa, e Lucílio Braga Tavares, durante muito tempo exilado na Bélgica, permaneceriam seus fiéis companheiros nas lides políticas dos tempos posteriores, coloniais e pós-coloniais.
Como vim a saber mais tarde, quer por testemunhos dos protagonistas, quer através de leituras várias, houve muitos outros presos políticos caboverdianos, todos ligados ao PAIGC, militando uns em Portugal Continental e tendo sido encarcerados nas cadeias do Limoeiro, do Aljube, de Caxias, de Peniche e em outras masmorras políticas localizadas na Metrópole colonial, como foram os casos dos estudantes universitários Jorge Querido, Ovídio Martins e de Oswaldo Osório (enquanto cumpria o serviço militar obrigatório) ou militando em Cabo Verde e tendo sido encarcerados no campo de concentração do Tarrafal (como os caboverdianos integrados no contingente de presos políticos vindos da Guiné dita Portuguesa ou encarcerados nas prisões dessa província ultramarina portuguesa, como o célebre Ilhéu das Galinhas ou as masmorras policiais de Bissau e Bolama, o grupo de Toco (Fernando Tavares), Zéqui (José Maria Ferreira Querido), Zezé Manco (José Aguiar Galina Monteiro) e Xanon (Emanuel Braga Tavares) e outros, o grupo de Lineu Miranda, Luís Fonseca, Carlos Tavares e Jaime Schofield, tendo sido libertado no dia 1 de Maio de 1974 o grupo de Pedro Martins e dos assaltantes do navio a motor Pérola do Oceano, a que acrescia o veterano Lineu Miranda, remanescente do grupo anterior. A título de curiosidade, seja referido que ainda nos anos quarenta do século XX, quando o campo de concentração do Tarrafal acolhia somente presos políticos portugueses, foram aí encarcerados os foguenses Abílio Macedo e os irmãos Henriques por terem protestado contra a fome e apelado à ajuda internacional, designadamente dos Estados Unidos da América. Essa experiência certamente traumática parece ter calado para sempre a voz de Abílio Macedo, antigo Presidente da Câmara Municipal da cidade da Praia e antigo director do icónico jornal republicano praiense A Voz de Cabo Verde, no qual escreveram como colaboradores permanentes os escritores Eugénio da Paula Tavares, Pedro Monteiro Cardoso, José Lopes da Silva, Luís Loff de Vasconcellos e outros importantes letrados e republicanos caboverdianos.
O curioso é que na nossa infância passada na zona do Cutelo conhecemos e fomos amigos de Bumba, do Tony e do Caló, todos netos do Sr. António Querido, vizinho, colega mais velho e amigo do nosso pai e com quem, acompanhando o nosso pai a caminho das nossas propriedades do Pombal, cruzávamos muitas vezes quando ele visitava, sempre a cavalo, as suas terras de Sedeguma e de Mato Sanches. Muitas vezes íamos brincar com o Bumba na sua casa sobranceira ao mal-assombradro Carris Morto, e lá encontrávamos também o Camilo que, segundo nos disseram, tinha vindo com a mãe Tchutcha (Maria das Mercês) da capital do Senegal, Dacar, onde normalmente residiam com o pai. Ninguém nos disse na altura que o pai era um foragido da polícia política portuguesa por se ter posicionado e continuar a posicionar-se contra a presença colonial portuguesa em Cabo Verde, isto é, um terrorista ou um turra, segundo a linguagem generalizadamente utilizada na altura para designar os depois consagrados e enaltecidos combatentes da liberdade da pátria, por ora severamente ameaçados de confinamento por tempo indeterminado no campo de trabalho e presídio político do Chão Bom do Tarrafal. Foi o que efectivamente acontecera ao Toco (Fernando Tavares), ao Zéqui Querido (José Maria Ferreira Querido), ao Manel Braga (Emanuel Braga Tavares) e ao Zezé Manco (José Aguiar Galina Monteiro)e veio a repetir-se com o Pedrinho Damas (Pedro Martins) e dos seus colegas da luta clandestina de Achada Falcão e de outras localidades das redondezas da Assomada, acusados e emprisionados em razão da sua participação no assalto ao navio a motor Pérola do Oceano, enganados por um agente infiltrado da PIDE/DGS nas fileiras clandestinas do PAIGC em Achada Falcão chamado José dos Reis Borges e que se apresentara como um comandante militar e enviado especial desse mesmo partido, encarregado de os conduzir à luta armada na Guiné dita Portuguesa conduzida pelo mítico Amílcar Cabral depois do devido trânsito por Dacar para onde devia ser desviado o navio a motor Pérola do Oceano. Depois de assaltado no porto da Praia e a pretexto de falta de combustível, o navio foi atracado no porto do Rincão, no concelho de Santa Catarina, de onde José dos Reis Borges saíra alegadamente para obter o precioso combustível, mas para onde, alertada pelo mesmo  José dos Reis Borges, se dirigira uma brigada da PIDE/DGS para prender os revoltosos.
Depois de sair da prisão, o Toco abriu uma loja em cujo pátio situado nas suas traseiras estava instalado um jogo de matraquilhos que atraía todos os meninos, adolescentes e jovens da Assomada. Quando passei a frequentar o ciclo preparatório da Assomada, todos os fins de trimestre ia mostrar as minhas excelentes notas ao Toco que me compensava com alguns trocados, creio que com dois escudos e cinquenta centavos, que me serviam para comprar algumas guloseimas nas vendedeiras do mercado da Assomada e para pagar o jogo de matraquilhos. Quando o Pedrinho Damas foi preso e levado para a Cadeia Civil da cidade da Praia toda a vila da Assomada caiu num ambiente de silêncio, luto e consternação e todos diziam à boca pequena, alegadamente para não serem detectados pelos famosos e poderosos aparelhos de escuta da PIDE/DGS, que era por ele ser contra a nação e ser a favor das ideias de Amílcar Cabral que estava a combater no mato da Guiné contra os soldados portugueses e por isso era chamado de terrorista. Quando se ouviu dizer que Amílcar Cabral tinha sido morto, um ambiente de mistério e curiosidade à volta dessa estranha e, de algum modo, fascinante personagem envolveu-nos a todos nós, os meninos e adolescentes da Assomada. De Amílcar Cabral dizia-se que era originário da nossa zona da Achada Falcão, tinha estudado na Praia, no Mindelo e em Lisboa, era formado em Agronomia e Direito e falava cinco línguas internacionais, além do português e do crioulo, e que para provar perante a ONU que Cabo Verde era uma colónia dominada por Portugal e não uma província ultramarina portuguesa retirara da algibeira uma moeda onde estava estampada “Vinte Centavos Colónia de Cabo Verde”. Dizia-se ademais que o homem grande (como era chamado de forma sussurrada por alguns dos nossos parentes mais velhos) aparecia às nossas gentes nas mais diversas ocasiões e e em diferentes sítios disfarçado de padre, de pastor, de professor, de agricultor, de velho e, até, de mulher. Eu o via amiúde em sonhos sentado numa secretária e envolto numa redoma de vidro antes de ser baleado por pistoleiros irrompendo subitamente na sala transparente onde se encontrava ou então via-o conduzindo homens armados com pistolas e metralhadoras escondidos nos regos das hortas e nas folhagens dos coqueiros, das mangueiras e das laranjeiras de Pombal e da ribeira de Sedeguma. Foi num passeio a Praia Baixo no camião do Sr Tatá Lubrano e em que estavam presentes várias famílias da Assomada (incluindo a nossa família dirigida pelo nosso pai bem como o Toco e a sua irmã Tocha) que vi pela primeira vez o azul do mar e afaguei as suas ondas tumultuosas. Nessa altura, o Toco parecia querer conquistar o afecto e o amor da nossa irmã Tuginha, sob o olhar complacente do nosso pai…

4. Nos dias seguintes ao 25 de Abril de 1974 e à libertação dos presos políticos do Tarrafal no dia 1 de Maio de 1974, houve dois acontecimento políticos que marcariam todo o ano de 1974. O primeiro foi a morte a tiro pela polícia colonial, no mesmo dia da libertação dos presos políticos do Tarrafal, de um residente do bairro da Vila Nova na cidade da Praia da família Di Pala e o segundo foi uma altercação verbal entre populares e soldados portugueses na esplanada da Praça Grande da cidade da Praia. Essa altercação verbal degeneraria em confrontação física e pancadaria que provocaram a intervenção da PM (Polícia Militar) portuguesa e redundaria na perseguição e no ferimento de dois jovens populares, designadamente do conhecido Chico Cham (Francisco Varela) e de Sagui, ambos activistas do PAIGC, sendo os dois evacuados de emergência para tratamento urgente em Bissau, ainda em poder dos portugueses, mas já em fase de confraternização e de negociações com os combatentes e os responsáveis  políticos do PAIGC. A nossa irmã Lurdes, então namorada de Chico Cham e grávida da sua filha primogénita Kyrha que, aliás, viria a nascer em Bissau, acompanhou o namorado ferido para a futura capital da República da Guiné-Bissau, tendo sido acompanhada nessa viagem inesperada pela nossa irmã Tuginha. Enquanto que o Chico Cham e a nossa irmã Lurdes regressariam à cidade da Praia, já com a filha deles Kyrha, a nossa irmã Tuginha ficaria na Guiné-Bissau a dar aulas no ensino primário do país nascente, vindo depois a casar-se com o bissau-guineense Mamadu Cassamá do qual teria os filhos Samory e Sidikhoy, todos nascidos em Bissau. O Mamadu foi dos primeiros bissau-guinensees que conheci quando depois visitou Cabo Verde para ser apresentado à nossa família, se nos abstrairmos do amigo de infância Adolfo, realmente o primeiro guineense (preto da Guiné, como se dizia na altura) que conheci em toda a minha vida e que foi trazido dessa província ultramarina portuguesa por uma filha do Sr. Nunes, nosso vizinho directo, que vivia na Guiné Portuguesa. Regressado à sua terra natal, o Adolfo teria sido devorado por jacarés quando se banhava num rio, segundo nos foi contado depois.
O dia 19 de Maio, o qual marcou o sangrento confronto na cidade da Praia entre tropas coloniais portuguesas e populares caboverdianos, viria a ser declarado Dia do Concelho da Praia e tornado feriado municipal depois da proclamação da independência política de Cabo Verde. Os dois acontecimentos acima referidos foram de grande importância para a mobilização das populações da cidade da Praia e de toda a ilha de Santiago contra a presença das forças coloniais no arquipélago caboverdiano e, por isso, amplamente divulgados no jornal independentista Alerta, que substituiu o famigerado e obsoleto semanário colonial-fascista O Arquipélago e era dirigido pelo nosso irmão David e dotado de um suplemento cultural intitulado Ariópe e coordenado pelo poeta Oswaldo Osório (pseudónimo literário de Osvaldo Alcântara Medina Custódio). Devido às suas opções aberta e vincadamente paigcistas e assumidamente anti-spinolistas, o jornal Alerta seria extinto nos tempos da governação de Cabo Verde pelo Encarregado de Negócios português Loureiro dos Santos e substituído pelo Novo Jornal de Cabo Verde, que alegadamente se queria de natureza mais pluralista e se dizia representativa de todas as correntes políticas presentes na sociedade caboverdiana da altura.

5. O restante ano de 1974 foi de total emersão nas actividades da luta pela independência política de Cabo Verde e em grande medida dirigidas contra os então denominados partidos fantoches, um assumidamente federalista e que era a UDC (União Democrática de Cabo Verde, dirigida pelo advogado João Monteiro, fundada a partir da Associação Democrática de Barlavento, implantada sobretudo nas ilhas do norte do arquipélago caboverdiano e conotada com alguns letrados e intelectuais claridosos e neo-claridosos, como Baltasar Lopes da Silva, Manuel Lopes e Henrique Teixeira de Sousa, e defensora das teses spinolistas de autonomia política e de federalismo no seio de uma suposta Comunidade Lusíada ou Luso-Africana); o outro, abertamente conotando-se com a esquerda revolucionária radical, pró-chinesa e anti-soviética e que era a UPICV (União do Povo das Ilhas de Cabo Verde, fundada em 1958, em Boston, nos EUA, por Aires Leitão da Graça e refundada em 1962 em Dacar, no Senegal, pelo seu irmão mais velho José André Leitão da Graça e identificada com uma extrema-esquerda maoísta alegadamente posicionada contra o imperialismo americano e euro-ocidental e contra o social-imperialismo soviético, de que o PAIGC seria supostamente o agente e promotor na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, e totalmente avessa ao princípio cabraliano e ao projecto paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde). Os simpatizantes dessas duas últimas organizações político-partidárias e os seus parentes próximos no Liceu, que passámos a frequentar a partir do ano lectivo de 1974-1975, eram muito causticados e fustigados por nós, adolescentes e jovens paigcistas, o mesmo tendo ocorrido com os parentes próximos dos seus aderentes e nossos colegas na Vila da Assomada. Tudo viria a culminar com a total neutralização política da UPICV-UDC em Dezembro de 1974 mediante o encarceramento, ainda que “em regime de recreio”, como ironicamente vazado no livro Os Bastidores da Independência, de José Vicente Lopes, de alguns dos seus mais proeminentes militantes e simpatizantes no ex-campo de concentração do Tarrafal pelo MFA local e com a cumplicidade da Direcção do ramo caboverdiano do PAIGC, sendo alguns deles acusados de terem sido agentes e informadores pagos da PIDE-DGS e outros de activamente obstruírem o processo de descolonização então em curso e erigido pelo MFA como um dos seus três Ds (de Descolonização, Democratização e Desenvolvimento) para o desencadeamento da Revolução dos Cravos. Dessa vaga de prisões salvou-se o líder da UPICV, José Leitão da Graça, porque em viagem pela Europa alegadamente para angariar fundos e aliados. A neutralização política da UDC e da UPICV foi facilitada pelo conveniente amalgamamento das duas formações político-partidárias sob o rótulo de partidos fantoches e spinolistas, tanto mais que, depois dos acontecimentos de 28 de Setembro de 1974 em Portugal e que levaram à queda do General António de Spínola, consubstanciada na sua demissão do alto cargo de Presidente da República Portuguesa, e da sua famigerada maioria silenciosa, grande parte dos militantes e simpatizantes da UDC passou a apoiar a UPICV que, assim, transmutou-se num partido nominalmente de extrema-esquerda nacionalista com militantes de extrema-direita colonial-saudosista. Ademais, os militantes da UPICV/UDC foram acusados de prepararem atentados contra a vida e a integridade física de altos dirigentes do PAIGC presentes em Cabo Verde, como então denunciado mediante a ampla difusão na Rádio da gravação de uma das suas reuniões alegadamente infiltradas por um agente do PAIGC e que deram azo e foram o pretexto para a realização de grandes e histéricas manifestações dos militantes e simpatizantes do PAIGC exigindo ao MFA local a prisão imediata dos alegados reaccionários spinolistas, considerados ademais impenitentes e inveterados saudosistas do obsoleto e defunto regime colonial-fascista português. Nessa altura, munidos de bastões e varapaus, nós, jovens e adolescentes paigcistas, montámos guarda no pátio da esquadra policial do Platô da Cidade da Praia a alguns desses presos políticos alegadamente opositores da descolonização de Cabo Verde, sendo alguns deles oriundos de Santa Catarina, tendo sido detidos pelos militantes locais do PAIGC capitaneados pelo ex-preso político anti-colonial Toco (Fernando Tavares). Alguns desses recentes presos políticos da descolonização eram nossos vizinhos e antigos ídolos do futebol na nossa infância, depois afastados em razão das fundas divergências políticas entre nós e as nossas famílias então vindas à tona. A maior parte dos setenta e dois novos presos políticos encarcerados no presídio político do Chão Bom do Tarrafal em Dezembro de 1974,  como já referido, foram sendo libertados ao longo do ano de 1975 (trinta e nove no total), não restando nenhum preso político nesse antigo presídio político no dia da proclamação da independência política de Cabo Verde, pois que os remanescentes presos políticos caboverdianos (dezanove no seu todo), designadamente os suspeitos de terem sido informadores da PIDE/DGS e/ou os mais ostensivamente posicionados contra o PAIGC e a independência política de Cabo Verde, foram enviados para a prisão de Caxias em Portugal em 19 de Junho de 1975, de onde foram finalmente libertados na sequência dos acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, tendo alguns regressado a Cabo Verde, já livre e independente e vivendo em regime político de partido único. Por sua vez, o campo de concentração do Tarrafal (oficialmente denominado sucessivamente colónia penal -na sua primeira fase de 1936 a 1954- e campo de trabalho -na sua segunda fase de 1962 até 1974) seria oficialmente encerrado enquanto presídio político e campo de trabalho de delinquentes comuns com o decreto-lei 3/75, de 19 de Julho.
Foi também nessa altura que os militares portugueses estacionados na ilha de Santiago saíram em massa em manifestação política, aliás, muito aplaudida pelos militantes e simpatizantes do PAIGC, a exigir o seu regresso imediato a Portugal. Nunca mais me esquecerei, assim como certamente o Nhonhô e outros presentes nessa ocasião, dos slogans-palavras-de-ordem/gritos/clamores proferidos por esses militares portugueses nas ruas do Platô da Cidade da Praia: “Esta terra não é nossa! Queremos regressar para a nossa terra!”. Nessa mesma altura, mais precisamente a 9 de Dezembro de 1974, simpatizantes, activistas, militantes e responsáveis políticos do PAIGC na cidade do Mindelo na ilha de São Vicente ocuparam as instalações da Rádio Barlavento, considerada como sendo próxima, senão porta-voz da UDC, e transformada em Rádio Voz de S. Vicente, doravante defensora das posições políticas independentistas do PAIGC e do MFA local. Estavam assim reunidas as condições para, na sequência do Acordo de Argel, nos termos do qual Portugal aprazara para o dia 10 de Setembro de 1974 o reconhecimento solene e de jure da República da Guiné-Bissau, unilateralmente proclamada a 24 de Setembro de 1973 na zona libertada de Madina do Boé, tendo Portugal outrossim reconhecido o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e independência, aliás, já consagrado na Lei portuguesa da Descolonização (Lei 7/74, de 17 de Julho), e tendo o PAIGC sido anteriormente, ainda antes do 25 de Abril de 1974, reconhecido como o único e legítimo representante do povo de Cabo Verde, tanto pela OUA (Organização da Unidade Africana), como pela ONU (Organização das Nações Unidas). O reconhecimento de facto do PAIGC como o único e legítimo interlocutor para o exercício do direito à autodeterminação e independência do povo de Cabo Verde, embora sem nomeação expressa do movimento de libertação binacional, viria a ser dado por Portugal com o encetamento e a conclusão com o PAIGC dos Acordos de Lisboa de 19 de Dezembro de 1974 e que instituíram um Governo de Transição do Estado de Cabo Verde (entidade político-administrativa criada formalmente com a revisão da Constituição portuguesa de 1972, para substituir enquanto região nominalmente autónoma de Portugal a entidade político-administrativa denominada província ultramarina). O Governo de Transição do Estado de Cabo Verde seria dirigido por um Alto-Comissário português nomeado pelo Presidente da República Portuguesa, o Almirante Almeida d´Eça (cuja mãe curiosamente era natural da ilha Brava, sendo ele próprio natural de Cabo Verde, da ilha de São Vicente) e constituído paritariamente por ministros portugueses indicados pelas autoridades portuguesas e por ministros caboverdianos indicados pelo PAIGC, sendo todos os membros do Governo de Transição nomeados pelo mesmo Presidente da República Portuguesa, com vista à criação das condições político-institucionais para a proclamação da independência política do Estado de Cabo Verde e da soberania nacional e internacional do mesmo Estado, marcada para o dia 5 de Julho de 1975 por uma Assembleia Legislativa Soberana e Constituinte, eleita por sufrágio directo, secreto e universal por todos os caboverdianos, residentes no território e residentes no estrangeiro, incluindo os emigrantes, em listas de candidatos apresentados em cada círculo eleitoral por grupos de cidadãos, na prática totalmente controlados e monopolizados pelo PAIGC. A mesma Assembleia Legislativa Constituinte e Soberana constituiu-se enquanto tal no dia 4 de Julho de 1975 adoptando a denominação de ANP (Assembleia Nacional Popular), tendo de seguida eleito Abílio Duarte como o primeiro Presidente da sua Mesa. Logo depois da assinatura dos respectivos documentos de transferência do poder soberano por Vasco Gonçalves, Primeiro-Ministro de Portugal e representante do Presidente da República Portuguesa, General Costa Gomes, e por Abílio Duarte, Presidente da recém-eleita e constituída Assembleia Nacional Popular de Cabo Verde, e da proclamação solene da República de Cabo Verde no Estádio da Várzea da Cidade da Praia por Abílio Duarte, a mesma Assembleia Nacional Popular adoptou a LOPE (Lei da Organização Política do Estado) e procedeu à eleição de Aristides Pereira como o primeiro Presidente da República de Cabo Verde e, por indicação deste, de Pedro Pires como o primeiro Primeiro-Ministro da República de Cabo Verde. Nos termos dos Acordos de Lisboa e da lei eleitoral portuguesa para uma Assembleia Legislativa Constituinte e Soberana do Estado de Cabo Verde, a LOPE deveria vigorar até à adopção da Primeira Constituição Política da República de Cabo Verde, o que deveria ocorrer no prazo máximo de três meses após a proclamação solene da independência nacional de Cabo Verde, prazo sucessivamente prorrogado. A primeira Constituição da República de Cabo Verde viria a ser efectivamente adoptada  pela ANP em Setembro de 1980, para entrar em vigor em Fevereiro de 1981 na primeira sessão legislativa da nova ANP eleita em Dezembro de 1980, e imediatamente revista nessa mesma sessão legislativa para dela expurgar todas as referências ao PAIGC e ao princípio e projecto de unidade Guiné-Cabo Verde, entretanto extintos em razão do golpe de Estado de 14 de Novembro ocorrido na Guiné-Bissau e da subsequente fundação do PAICV, enquanto partido estritamente caboverdiano e herdeiro do PAIGC para o povo das ilhas e diásporas caboverdianas. A LOPE instituiu o PAIGC como força política dirigente da sociedade, aliás, tal como estava estatuído na primeira Constituição Política da República da Guiné-Bissau de 24 de Setembtro de 1973 e viria a ficar estipulado na primeira Constituição Política da República de Cabo Verde, de Setembro de 1980, mas com as prerrogativas do PAIGC enquanto força política dirigente da sociedade a serem alargadas ao Estado.
Deste modo, pode-se dizer que o regime caboverdiano de partido único socializante ficou instituído de facto desde o mês de Dezembro de 1974 e de jure desde a proclamação da independência política de Cabo Verde e a condequente adopção da LOPE, valendo as eleições legislativas de 30 de Junho de 1975 como autênticas consultas referendárias para ratificar os convulsivos e controversos acontecimentos revolucionários de Dezembro de 1974, acima referidos, e, assim, plebiscitar i. a independência política e a soberania nacional e internacional de Cabo Verde; ii. O projecto paigcista da unidade Guiné-Cabo Verde; iii. o regime de partido único socializante; iv. o triunvirato dirigente do novo país e constituído por Aristides Pereira, Pedro Pires e Abílio Duarte. E com o regime de partido único veio a aparente paz político-social, intermitentemente quebrada pelas dissensões abertas e latentes entre as diversas correntes político-ideológicas presentes no ramo caboverdiano do PAIGC e nas lutas estudantis nos dois Liceus de Cabo Verde e que viriam a culminar com a auto-exclusão/a expulsão no mês de Março/Abril de 1979 da chamada corrente trotskista do PAIGC.
Com a implantação de facto do regime de partido único, protagonizada pelo MFA local e pelas diferentes correntes político-ideológicas presentes no ramo caboverdiano do PAIGC, encerrou-se por assim dizer a prolongada festa iniciada com o 25 de Abril de 1974 com os seus diferentes partidos políticos em luta legal aberta pelos seus ideários e programas políticos e patentes em panfletos, manifestos, comunicados, comícios, sessões de esclarecimento e manifestações públicas, a sua quase irrestrita liberdade da palavra dita, escrita e radiodifundida, concentrando-se doravante o nosso entusiasmo na preparação da eclosão da Hora Zero da República, na poética expressão de Corsino Fortes, de construção de um novo país nas nossas ilhas africanas de Cabo Verde, isto é, de “uma outra terra dentro da terra”, como profetizado por Amílcar Cabral com palavras do seu amigo e confrade poeta Aguinaldo Fonseca, bem como no país africano continental irmão. E foram realmente muito altas a euforia e as expectativas postas pelo Nhonhô e por todos nós na concretização desse magno desiderato, necessariamente envolto num manto de muita e maravilhada utopia revolucionária que, aos poucos, se foi desvanecendo e/ou se foi alicerçando em bases cada vez mais realistas e pragmáticas, indispensáveis para a construção de um país republicano, democrático, laico, anti-colonialista, anti-imperialista e não-alinhado, mas considerado pela comunidade internacional como inviável ou, pelo menos, muito improvável. 

5.Nessa altura de grande entusiasmo com a causa da independência política de Cabo Verde no quadro catártico e emancipatório da unidade Guiné-Cabo Verde e da unidade africana, o Nhonhô desempenhou um importante papel na difusão da imagem de Amílcar Cabral e na disseminação dos slogans políticos do PAIGC que, com a técnica adequada própria para esse efeito, fazia ostentar em camisolas e t-shirts de propaganda do partido da unidade e luta e da bandeira ouro, rubra e verde da estrela negra, bem como nas paredes e nos muros das avenidas, das ruas, das ruelas, dos becos, das praças, das pracetas e dos largos da cidade da Praia, da vila da Assomada e de todas as demais vilas e localidades mais importantes da ilha de Santiago. Conhecidos ficaram também os seus desenhos, muito bem elaborados, de outras figuras míticas e de heróis revolucionários, muito em voga na altura, como Marx, Engels, Lenine, Mao Tsé Tung, Che Guevara, Patrice Lumumba, Kwame Nkrumah, Domingos Ramos ou Titina Silá.
Foi nessa altura que o nosso irmão Orlando e o seu amigo de peito e companheiro das tertúlias musicais coimbrãs Carlos Moreira, mais conhecido e chamado por Carlos Nhonhô de Cabeça Carreira, regressaram dos seus estudos de regente agrícola, interrompendo-os, para darem o seu contributo na mobilização política para a luta para a independência política do nosso país. E foi deveras valioso o seu contributo, pois que eram eles que animavam musicalmente os comícios, as sessões de esclarecimento e os saraus culturais na vila da Assomada e nas suas redondezas.
Foi com o Orlando e o Carlos Nhonhô Moreira que ouvimos pela primeira vez músicas africanas revolucionárias da Guiné-Bissau e de Moçambique, sendo que as músicas do Bonga constantes dos LP Angola 72 e Angola 74 e gravadas na Holanda pela Morabeza Records de Djunga de Biluca (João Silva) eram muito ouvidas no bar-restaurante do santa-catarinense Palo Nha Lela e no bar Holanda do sanvicentino Titino Boxero, ambos depois conotados com a UPICV/UDC e acusados de terem sido informadores da PIDE-DGS, por isso tendo sido o Palo Nha Lela encarcerado no presídio do Tarrafal aquando das prisões, no mês de Dezembro de 1974, dos militantes dos partidos adversários e rivais do PAIGC, devidamente desqualificados como fantoches e reaccionários. Por sua vez, o Titino Boxero viria a ser vítima dos acontecimentos repressivos de 1977 na cidade do Mindelo, na sequência dos quais algumas pessoas foram acusadas de tentativa de sabotagem dos sistemas de abastecimento de água e electricidade à cidade do Mindelo, alegadamente enquadrados numa conspiração internacional de teor neo-colonialista para derrubar os regimes progressistas africanos, incluindo o regime do PAIGC implantado em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. O Titino Boxero teria perecido em razão de se ter precipitado de um prédio quando se sentiu cercado pelas forças de segurança caboverdianas, mais tarde baptizadas como FSOP (Forças de Segurança e Ordem Pública).
Nessa altura, era imenso o nosso orgulho no nosso irmão Orlando, que também contava com a complacência do nosso pai que o tinha feito deixar o Liceu da Praia e o tinha enviado para encetar os estudos de regente agrícola em Coimbra, a conselho do nosso irmão David que já nesse tempo se encontrava a estudar na célebre cidade universitária portuguesa. Nessa altura o nosso pai estava totalmente comprometido e entusiasmado com as actividades da luta para a independência política do nosso país, ele que, segundo testemunhos oculares fidedignos, designadamente do seu sobrinho e nosso primo Bentura (Alexandre de Deus Monteiro), sempre fora um admirador de Amílcar Cabral, do seu incomum percurso e da sua heroica luta, tendo sido por isso um assíduo ouvinte clandestino da Rádio Libertação do PAIGC, emitido a partir de Conacri, fora testemunha abonatória do Toco (Fernando Tavares) e dos seus companheiros no seu julgamento político na ilha de São Vicente e vira as suas filhas serem amiúde chamadas para interrogatórios na sede da PIDE/DGS sob a batuta do vermelhusco e famigerado Sr. Eusébio.
Ademais, o Orlando trouxe na sua bagagem de Coimbra uma parte da rica e diversa biblioteca da estudantil república dos mil y onários que foi de imensa valia para os meus primeiros contactos e a minha iniciação na leitura de obras marxistas e revolucionárias, com destaque para o famoso livro O Processo Histórico, de Clemente Zamora, os livros sobre o materialismo histórico, de Marta Hanecker, algumas obras dos clássicos do marxismo, designadamente de Marx, Engels e Lenine, bem como obras de cultura geral, como alguns livros de Wilhem Reich, cujo conhecimento depois aprofundei com a leitura e a devoração dos livros de muitos outros autores constantes da biblioteca pessoal do meu irmão David. A biblioteca trazida de Coimbra pelo Orlando era da minha particular afeição e foi deixada em grande parte na nossa casa da Assomada quando fui continuar os estudos liceais na cidade da Praia e fazer os estudos universitários em Leipzig, na Alemanha de Leste. Ela deve ter sido toda lida pelo nosso sobrinho Samory que, apesar de, em razão de vicissitudes e atribulações várias, não ter podido concluir os estudos liceais e, assim, encetar e concluir os estudos universitários, ostentava uma grande cultura geral que fazia questão de exibir e lhe valeu o epiteto de rapaz inteligente que todos lhe atribuíam.

6. Entretanto, poucas semanas depois do 25 de Abril de 1974, compareceu na nossa casa da Assomada um senhor que se dizia chamar Henrique Semedo. Reconhecido imediatamente pela nossa mãe que nele viu o seu primo Furtado embarcado há vários anos para São Tomé e Príncipe e/ou Angola, o nosso tio de há muito desaparecido esclareceu ter fugido para o Congo Brazzaville e, depois, para Dacar e Conacri para se juntar a Amílcar Cabral e aos combatentes do PAIGC. Daí o seu desaparecimento de todos os radares familiares islenhos, tendo ele sido todavia visita assídua aos filhos da tia Minda e do tio Nezinho, da Arribada, nossos parentes Furtado de há muito embarcados e radicados em Dacar, onde, aliás, nasceu Paulo, um dos filhos do tio Henrique. E agora, com a eclosão do 25 de Abril de 1974 regressava acompanhado de Zezé Manco (José Aguiar Galina Monteiro), um assomadense ex-preso político do Tarrafal com Toco (Fernando Tavares), Manel Braga (Emanuel Braga Tavares) e Zéqui (José Maria Ferreira Querido), num pequeno contingente de combatentes do PAIGC para apalpar o terreno e participar na mobilização popular para a independência política de Cabo Verde. Foi visível e incomensurável a alegria dos primos Furtado reencontrados depois de tantos anos em que até se pensava que o tio Henrique Semedo já tinha falecido na Terra-Longe. Esse mesmo contingente do PAIGC seria constituído por outros combatentes e militantes caboverdianos regressados da luta político-armada e da sua retaguarda logística e diplomática nas duas Guinés e enviados para as respectivas ilhas para os fins de mobilização política acima referidos. A partir daí as vagas de combatentes, militantes, responsáveis e dirigentes políticos regressados da luta nas duas Guinés e nas diásporas caboverdianas além-Piréneus iam assumindo contornos cada mais elevados na hierarquia partidária, como foram os casos sucessivamente de João Pereira Silva, Osvaldo Lopes da Silva, Silvino da Luz, Pedro Pires e, finalmente, Aristides Pereira. O interessante é que tanto nós, os filhos, como também o nosso pai, sempre participámos de forma entusiástica na recepção apoteótica no aeroporto e nas ruas da cidade da Praia desses responsáveis e altos dirigentes do PAIGC, se bem que sempre situados em lugares diferentes dos desfiles, manifestações, comícios e saraus culturais.
Curiosamente, a recepção a Aristides Pereira no Aeroporto da cidade da Praia e o subsequente comício na Praça Grande do platô da mesma cidade, no dia 21 de Fevereiro de 1975, foi a última oportunidade que nós, os filhos estudantes e residentes na cidade da Praia, tivemos de ver o nosso pai com e em vida.

7. O nosso pai faleceu no dia 27 de Fevereiro de 1975, na nossa propriedade do Cerrado enquanto dirigia os trabalhadores na construção de um novo tanque, entre os muitos tanques cuja construção dirigiu nas ribeiras de Sedeguma e Cerrado. Segundo nos contaram depois, ele relatava com emoção e entusiasmo aos trabalhadores presentes o cenário da apoteótica recepção de Aristides Pereira na Cidade da Praia quando foi fulminado por um ataque cardíaco que se comprovaria como mortal. As várias tentativas da sua reanimação demonstraram-se como infrutíferas, não se dispondo na altura de meios de transporte rápidos que pudessem fazê-lo chegar com celeridade ao hospital da Assomada. O pai foi assim mais uma das muitas vítimas do subdesenvolvimento crónico que então grassava em Cabo Verde. A morte do nosso pai apanhou todo o mundo de surpresa, em razão da sua alta estatura e da sua grande corpulência que faziam parecer que ele gozava de boa e inquebrantável saúde, poucos sabendo que sofria de diabetes, e provocou uma comoção geral no meio das gentes das ribeiras de Sedeguma e dos Engenhos, onde era mais conhecido por todos os seus amigos e próximos por Totó de Suzana e cujas crianças o tratavam afectuosamente por “Papai de Pombal”. A notícia do falecimento do nosso pai foi-nos dada, ao Nhonhô, ao Benny e a mim, pelo Gustavo Monteiro que nos veio buscar à cidade da Praia no Fiat que o David lhe cedera para o efeito. Para a nossa mãe, para os nossos irmãos e para mim pessoalmente foi um choque de que nunca nos recuperámos verdadeiramente. Ainda me lembro como, vindo de Portugal já depois do funeral do pai e acompanhado do Rui, nosso irmão mais velho, o nosso irmão Orlando se estendeu, de gravata e vestido com o seu fato de luto, em altos gritos, berros e choros convulsivos no chão da sala onde eram recebidas as visitas das inúmeras pessoas que vinham dar os pêsames e as condolências à mãe Júlia e aos demais familiares do falecido e estava armada a esteira (termo crioulo para designar o altar que era erigido na sala de visitas) para o ilustre defunto que era o nosso pai. Durante muito tempo depois da sua morte, eu sonhava que o nosso pai tinha regressado, pois que, afinal, ele se encontraria simplesmente emigrado num estrangeiro assaz incógnito. No enterro dele, compareceram as gentes todas das ribeiras e as autoridades políticas locais, tanto as municipais como as partidárias. Em reconhecimento do papel do nosso pai na divulgação do ideário e da luta para a independência de Cabo Verde, o caixão dele foi coberto com a bandeira do PAIGC, antes de o corpo dele ter sido dado à terra.

8. Também muito marcante foi a morte de Gustavo Monteiro, creio que no mês de Maio de 1975, poucos meses depois da morte do nosso pai e menos de dois meses antes da proclamação solene da independência de Cabo Verde. O Gustavo Monteiro era o filho mais velho do Sr Manelinho Pina e da sua esposa legítima, a Dona Palmira, embora fosse o segundo filho - depois do Tony, filho biológico do Sr Manelinho Pina e da Dona Nair de Pedra Barro-, a ser criado por esse conhecido casal de comerciantes da Assomada. Militante na clandestinifdade do PAIGC, o Gustavo Monteiro fez parte do contingente de militares caboverdianos que se recusaram a jurar a bandeira portuguesa no Morro Branco na ilha de São Vicente pouco tempo depois da eclosão do 25 de Abril de 1974. Colocado depois no seu concelho natal de Santa Catarina, desempenhou um importante papel na mobilização dos jovens santa-catarinenses para a causa independentista e pan-africanista do PAIGC, juntamente com o seu amigo, camarada e cunhado Caló Querido, sobrinho de Jorge Querido, o responsável máximo do PAIGC em Cabo Verde, até à sua suspensão ocorrida na Holanda numa reunião com uma delegação do PAIGC chefiada por Abílio Duarte e vinda da sede do partido em Conacri, pouco tempo depois da eclosão do 25 de Abril de 1974, e ademais filho de Sílvio Querido, integrante do Grupo que fez a preparação político-militar em Cuba para a concretização da Operação Esperança de desembarque  armado de guerrilheiros caboverdianos do PAIGC nas ilhas de Santiago e de Santo Antão, tendo depois abandonado o PAIGC quando este decidiu adiar sine die a Operação Esperança, em razão da deserção e da denúncia da mesma por um integrante do  grupo político-militar formado em Cuba e na União Soviética, o tristemente famoso Bibino. Regressado a Cabo Verde para assistir à festa da independência de Cabo Verde, Sílvio Querido foi expulso do seu país natal nas vésperas do transcendente evento histórico por ordem do Governo de Transição então em funções e assinada por Carlos Reis. 

A morte de Gustavo Monteiro foi envolvida num espesso nevoeiro conspiracionista, correndo entre as hostes paigcistas de Santa Catarina que teria sido tramado pelos círculos mais reaccionários e ainda sobreviventes da UPICV/UDC, alegadamente descontentes e desesperados com a irreversível caminhada do povo de Cabo Verde para a eminente proclamação da independência política do seu país e que o teriam atingido à distância com uma arma devidamente munida de mira telescópica enquanto conduzia a  viatura do partido por um descampado localizado entre a Vila da Assomada e a Achada Falcão. Mais tarde, veio a saber-se que afinal Gustavo Monteiro tinha sido atingido acidental e mortalmente por uma bala disparada de uma arma manuseada pelo seu camarada Samy, antigo colega e companheiro na tropa portuguesa e na negação do juramento da bandeira portuguesa no Morro Branco. Todavia, a verdadeira causa da sua morte não podia ser imediata e publicamente revelada, pois que ele e o Samy eram os encarregados da guarda de um paiol de armas introduzidas clandestinamente em Cabo Verde pelo PAIGC a partir do navio Ocante e armazenadas em vários pontos das ilhas de Santiago e de São Vicente como medida de preparação e de prevenção contra eventuais ataques armados de forças reaccionárias contrárias à independência e à transformação revolucionária do Cabo Verde pós-colonial, num período conturbado em que não se tinham certezas absolutas sobre o rumo que as coisas podiam tomar tanto em Portugal como nas demais colónias portuguesas ainda não independentes. Ao enterro de Gustavo Monteiro compareceu uma grande multidão liderada por altos dirigentes do PAIGC na altura residentes na ilha de Santiago. De todo o modo o largo/praça principal da Vila da Assomada seria com todo o merecimento baptizado Largo Gustavo Monteiro.

9. Cena idêntica à passada com o tio Henrique Semedo ocorreu pouco tempo antes da festa da proclamação da independência política de Cabo Verde, tinham já passado alguns meses sobre a morte repentina do nosso pai António.  Um belo dia, surgiu na nossa casa da Assomada, um homem alegre e muito janota, carregando uma pasta diplomática e que se apresentou como o tio Mano Lópi (Lopes), irmão da nossa mãe Júlia Furtado do Livramento Lopes, filho do nosso prematuramente falecido dono (avô) o papai David do Livramento Lopes, mais conhecido por Dionísio, e criado pela nossa dona (avó) a mamãi Tuna Tavares Furtado Lopes. Como habitual nessas inusitadas ocasiões de quase ressurreição de uma pessoa tida por morta ou desaparecida ou, melhor ainda, de re-aparição de um filho da terra considerado pródigo, houve uma choradeira geral, sobretudo por parte da nossa mãe Júlia e da nossa tia Zulmira, as duas completamente emocionadas e comovidas por poderem rever o irmão de pai de ambas e mais novo que a nossa mãe Júlia e a nossa tia Candinha, também presente e testemunha da feliz ocasião, e mais velho que a nossa tia Zulmira. A tia Candinha era uma prima mais velha da nossa mãe Júlia que, tal como o tio Mano e a tia Zulmira, foi também criada em Fonteana pela mamãi Tuna, sua madrinha e irmã do pai da tia Candinha, embarcado no mesmo dia que o papai David para os Estados Unidos da América, de onde não mais regressou, ao contrário do seu cunhado que veio morrer muito jovem na sua terra natal.
O tio Mano dizia ter vindo expressamente de Angola para assistir a esse momento único e irrepetível na História das nossas vidas e das vidas de todos os caboverdianos residentes nas ilhas e emigrantes por todos os cantos do mundo e que seria a proclamação solene da independência política de Cabo Verde, previamente marcada para o dia 5 de Julho de 1975. Por isso e por outras coisas mais, o tio Mano concitou imediatamente a simpatia de todos nós, especialmente do Orlando e do Nhonhô, já com idade suficiente para compreenderem a transcendência do gesto do tio Mano e, ademais, para parodiarem à vontade com ele. Contrariamente a outros parentes próximos como o tio Braz e a família que tinham abandonado Angola em fuga dos violentos distúrbios que assolavam a cidade de Luanda e outras cidades angolanas e da guerra civil que entretanto eclodira ou estava prestes a eclodir, o tio Mano tinha vindo de livre vontade e com data marcada para o seu regresso a Angola. A partir daí foram muitos os regressos do tio Mano e da sua filha e nossa prima Mena, vindo o nosso tio Mano a casar-se com uma prima nossa, a tia Tomásia da Arribada, agora, depois do falecimento do tio Nezinho Pereira, residente na cidade da Praia, juntamente com toda a família da tia Minda, filha do famoso padre Joaquim Furtado, irmão de mamãi Tuna e do pai da tia Candinha e que deixou descendência por todos os recantos e freguesias da ilha de Santiago. O tio Mano tratou de levar a tia Tomásia, juntamente com o Quinzinho, o seu filho único, para o seu país adoptivo e que tanto lhe deu. Mais tarde e depois do meu regresso dos estudos universitários na Alemanha, quando fiz uma visita ao mítico país para uma gorada reunião da LEC (Liga dos Escritores dos Cinco) pude vê-los a todos e ao primo Quinzinho numa Angola mergulhada na guerra civil e na penúria de bens essenciais com recurso obrigatório de todos ao grande mercado a céu aberto do Roque Santeiro, que, depois de várias vezes visitado por mim na companhia ora do tio Mano, ora do Pira, nosso primo pelo lado paterno dos Almada, comparei a um acampamento do exército hitita antes da invasão do antigo Egipto…Quando voltei pela segunda vez a Angola, agora para participar em Luanda, em nome do INAC (Instituto Nacional da Cultura) e acompanhado do Danny Spínola, num Seminário Internacional sobre a Tutela dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos nos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) promovido pela OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), o tio Mano já não era vivo, tendo falecido em circunstâncias até então não esclarecidas, presumivelmente envenenado, segundo me contou na altura a prima Mena.

*Excertos do texto da minha autoria e parcialmente inédito intitulado “O MEU IRMÃO FREDERICO HOPFFER CORDEIRO ALMADA/NHONHÔ HOPFFER”

(1)Tuna Furtado Lopes é o pseudónimo de José Luis Hopffer C. Almada para a escrita de ensaios e textos de opinião.

  • 1. Pseudónimo de José Luis Hopffer C. Almada para a escrita de ensaios e textos de opinião.

por José Luís Hopffer Almada
A ler | 10 Maio 2024 | Cabo Verde, Independência, presos políticos, Tarrafal