Nativismo, pan-africanismo e nacionalismo caboverdiano - alguns subsídios teóricos para a compreensão da recepção do pan-africanismo e da lealdade bipartida - ou cissiparidade pátrida - entre os letrados nativistas, regionalistas e autonomistas caboverdia

Primeira parte 

1. Lealdade bipartida ou cissiparidade pátrida, super-pátria portuguesa, mátria caboverdiana e pan-africanismo nos nativistas e nos claridosos 

Tal como entendida pelos nativistas clássicos e pelos claridosos - também denominados nativistas literários ou considerados fautores de uma deriva literária do nativismo por Onésimo Silveira -, a lealdade bipartida ou cissiparidade pátrida tinha como objecto, por um lado, uma comunidade política efectivamente existente, a chamada nação lusitana constituída de todos os cidadãos portugueses, metropolitanos e ultramarinos, ancorada no Portugal imperial e tendo como epicentro a metrópole colonial tida por pátria monumental (no dizer de Gabriel Fernandes da obra A Diluição de África, Uma Interpretação da Saga Identitária Cabo-Verdiana no Panorama Político Pós-Colonial) ou super-pátria (na expressão de Manuel Ferreira utilizada no ensaio “A cissiparidade pátrida ou a nostalgia das origens”, inserto como Introdução na edição fac-similada da revista Claridade pela editora ALAC - África, Literatura, Arte e  Cultura, do mesmo Manuel Ferreira), e, por outro, uma comunidade humana, politicamente menor, mas também efectivamente existente e considerada matricial, o povo habitante da terra caboverdiana. Enquanto possessão colonial de Portugal, Cabo Verde conheceu sucessivamente os estatutos de capitania-geral, província ultramarina, prefeitura, colónia, de novo província ultramarina e, finalmente em 1972, já no período tardio do estertor da dominação colonial das ilhas, como Estado fantoche alegadamente (isto é, dotado somente no papel) de autonomia política interna, mas administrado por um Governador-Geral colonial nomeado directamente pelas autoridades centrais portuguesas e coadjuvado por dois Governadores Distritais, designadamente do Distrito de Sotavento, com sede na cidade da Praia e abrangendo a ilha Brava e as ilhas de Santiago, do Maio e do Fogo, e do Distrito de Barlavento, com sede na cidade do Mindelo e abrangendo as ilhas de Santo Antão, de São Vicente, de  Santa Luzia, de São Nicolau, da Boavista e do Sal. 

A lealdade bipartida - ou cissiparidade pátrida - dos nativistas caboverdianos alicerçava-se, assim, na autenticidade possível de seres-de-dois-mundos (na muito adequada expressão também utilizada por Manuel Ferreira na sua Introdução à obra No Reino de Caliban - Antologia Panorâmica da Poesia Africana de Expressão Portuguesa e constante do primeiro volume relativo a Cabo Verde e à Guiné-Bissau), dois-mundos esses que eles efectivamente habitavam ou de que se consideravam legítimos moradores, um, o primeiro, perceptivelmente real, porque fundado no chão islenho e na vivência quotidiana da cultura matricial caboverdiana (mesmo que na sua vertente mais elitista), e outro, o segundo, também vivenciado, mas largamente imaginado e nutrido na sua cultura escolar, propiciadora daquilo que, na obra supra-mencionada, Gabriel Fernandes denomina o mínimo cultural compartilhado com todos os outros portugueses,  metropolitanos e ultramarinos. 

Tal lealdade bipartida - ou cissiparidade pátrida - é visível na obra literária, jornalística e cívica de todos os os nativistas, sem excepção alguma, tendo sido depois adoptada pelos claridosos, salvo na sua obra literária, a qual como é sabido preferiu eleger a terra e o homem caboverdianos como objecto quase-exclusivo da sua obra literária. Com efeito, enquanto que, na sua obra literária e jornalística, os nativistas abordaram indiferentemente temas portugueses - com destaque para os heróis da expansão marítima portuguesa, os grandes poetas e escritores portugueses e os líderes republicanos,  e caboverdianos, em especial os letrados e demais defensores da terra e do povo caboverdianos,  pugnando sempre pela plena igualdade de direitos entre todos os portugueses de lei, na significativa expressão de Pedro Cardoso, isto é, entre os portugueses reinóis-metropolitanos e os portugueses africanos- aqui entendidos no sentido de portugueses luso-ultramarinos, incluindo-se entre estes os caboverdianos, os claridosos (com excepção de António Aurélio Gonçalves, consabidamente autor de ensaios sobre Eça de QueIrós e Veríssimo) preferiram fincar inteiramente os pés literários e ensaísticos na terra caboverdiana, com isso protagonizando “a proclamação da independência literária das nossas ilhas”, mesmo se na sua conduta cívico-política continuassem fiéis à lealdade bipartida em relação à pátria portuguesa e à mátria caboverdiana. Releve-se que podendo ter sido críticos ferozes das mazelas coloniais - tal como, aliás, foram os nativistas, com grande destaque para Eugénio Tavares-,  podendo ser considerados neste sentido como anti-colonialistas, e, depois, anti-fascistas,  os claridosos - incluindo João Lopes, Jorge Barbosa e Baltasar Lopes da Silva e salvo talvez Jaime Figueiredo-  nunca puderam transitar para uma qualquer forma de nacionalismo  caboverdiano, ainda menos para um nacionalismo caboverdiano de matriz pan-africanista.  

Enfatize-se neste concreto contexto que parecem ter sido os constrangimentos estruturais da sociedade caboverdiana que, no passado,  forjaram, a um tempo, a sua independência identitária e o seu crónico défice de crença ou de confiança nas suas capacidades endógenas e autónomas de sobrevivência. Releve-se ainda que são esses constrangimentos que induziram tanto os nativistas clássicos como os nativistas claridosos para a pugna pela autonomia político-cultural e/ou pela adjacência político-cultural no quadro político-institucional do império colonial (ou, mais restritamente, do Estado-nação) português, numa óptica obsessivamente pragmática de plena valorização, não só da sua outorgada/conquistada cidadania lusitana como também do mínimo cultural compartilhado entre todos os cidadãos portugueses de lei, designadamente entre os portugueses africanos ou ultramarinos (como também se auto-representavam) e os portugueses reinóis/metropolitanos. É assim que, depois de ter reivindicado a autonomia político-administrativa para as ilhas de Cabo Verde no jornal Alvorada que fundara e dinamizara nos fins do século XIX durante o seu exílio nos Estados Unidos da América e no contexto eufórico da desagregação do império colonial espanhol e do separatismo político boer na África do Sul, Eugénio Tavares viria a clamar depois, já na segunda década do século XX, nas páginas do jornal praiense A Voz de Cabo Verde, dando mostras de uma pragmática contenção, contra o que considerava o irrealismo delirante de uma reivindicação independentista: “Independência para essas pobres ilhas rochosas? Nem para hoje, nem para nunca!”. Como é sabido e conforme nos elucida de forma mais aprofundada a monumental obra A Imprensa Cabo-Verdiana (1842-1975), de João Manuel Nobre de Oliveira, Eugénio Tavares passou a concentrar-se, a par da continuidade na pugna e na reivindicação da autonomia político-administrativa para as ilhas de Cabo Verde, na obtenção de um estatuto jurídico-formal e jurídico-material de plena igualdade que fizesse jus à expressão por ele cunhada como sua preocupação maior, enquanto caboverdiano: “Portugueses irmãos sim! Portugueses escravos nunca!”. 

Relembre-se que um primeiro fervor anti-colonialista e mais vincadamente nacionalista caboverdiano se tinha rapidamente desvanecido e dissipado em face da voracidade de novas potências (neo-)coloniais emergentes, designadamente os Estados Unidos da América, em relação a alguns países recém-independentes das Américas e da Ásia, como Cuba, Porto Rico ou as Filipinas, aos quais, a par de outros domínios ibéricos, essas mesmas potências, designadamente a Grã-Bretanha e os Estados Unidos da América, tinham prestado ajuda com o fito da sua libertação dos jugos coloniais espanhol e português, usando, entre os outros, o slogan A América aos Americanos. É esse slogan, criado por Monroe, Secretário de Estado estado-unidense, que inspiraria Eugénio Tavares no seu slogan A África aos Africanos na expressão, a partir do seu exílio norte-americano, da sua inusitada veia  luso-ultramarina e regionalista caboverdiana consubstanciada na sua reivindicação de autonomia político-administrativa para Cabo Verde. O desvanecimento e a dissipação do fervor nacionalista caboverdiano encontra outrossim sustentáculo na subjugação das reivindicações do povo africander (afrikaaner no respectivo idioma afrikaans) da África do Sul pelo Império Britânico, numa época em que, salvos o caso exemplar, mas trágico, do Haiti e o caso falhado das Filipinas de Aguinaldo, o papel determinante, dirigente ou preponderante na desagregação dos impérios coloniais cabe às elites brancas crioulas nativizadas nas terras colonizadas das Américas, da África e da Oceânia. 

Num outro contexto e em face da moda da venda das colónias para saldar dívidas reinóis/metropolitanas ou para satisfazer os interesses de potências ocidentais mais poderosas, apela o nativista Luís Loff de Vasconcelos a metrópole portuguesa ao abandono de jure das colónias à sua sorte (in João Nobre de Oliveira, obra citada), que é como dizer, ao seu próprio destino, tanto mais que a ligação dessas mesmas colónias às metrópoles coloniais só subsistiria por livre consentimento dos povos coloniais e o descaso no tratamento das questões caboverdianas era de há muito uma característica imputada negativamente à administração colonial portuguesa. Pese embora o seu amor filial a um pai severo e ingrato e, demasiadas vezes, negligente, Pedro Cardoso expressou, como é sabido  (in Pedro Cardoso, A Manduco - Organização de Manuel Brito Semedo, Livraria Pedro Cardoso, Praia, 20015, também citado por João Nobre de Oliveira, obra citada), a sua preferência colonial pela albarda portuguesa em lugar da pata teutónica, pois que, para além do mais, seria mais fácil para os povos coloniais desenvencilharem-se dessa leve, conquanto ofensiva, sela lusa, quer num quadro ideal de plena igualdade formal e material entre cidadãos reinóis/metropolitanos e cidadãos coloniais/ultramarinos, quer numa mais longínqua e indesejada separação entre irmãos euro-africanos alegadamente uterinos, porque supostamente compartilhando da mesma cultura pátria e igualmente descendentes tanto dos “antigos e bravos lusitanos” como dos “intrépidos navegadores portugueses” quatrocentistas e quinhentistas. 

José Lopes, por seu lado, almejou ver independentes as nossas ilhas como já o eram as pequenas Andorra e San Marino, para, já no crepúsculo da sua longa e cívica e poeticamente muito produtiva vida, preferir “vê-las afundar-se nos fundos abissais do  Atlântico a deixarem de “ser portuguesas” (citado por João Nobre de Oliveira, obra supracitada). 

Do ponto de vista do estatuto político almejado para Cabo Verde, houve diferenças de monta entre os nativistas e os claridosos.

Representados em inúmeros textos de Eugénio Tavares e coerentes com o seu entendimento da cultura caboverdiana como uma cultura crioula de predominante teor cristão ocidental, isto é, como um caso de regionalismo cultural europeu, os nativistas pugnaram pela autonomia político-administrativa do arquipélago de Cabo Verde, simultaneamente com a intransigente defesa da plena igualdade de direitos entre todos os cidadãos portugueses, em especial entre portugueses metropolitanos e caboverdianos. Neste contexto, foram abjurados tanto a adjacência político-cultural de Cabo Verde a Portugal, como um estatuto discriminatório dos caboverdianos e do seu arquipélago em relação aos portugueses e a Portugal. Ilustrativos dessa postura são inúmeros textos de Eugénio Tavares, com destaque para “O Nativismo através da Alma de Mistral”, “O Grande Exemplo da Inglaterra”, “Regimes de Administração” e “Província de Cabo Verde - O Projecto de Carta Orgânica”.

É assim que,  no artigo “Regimes de Administração”, citando A. Loureiro da Fonseca, autor da “25 Lição da Benemérita Universidade Livre”, o qual  distingue três regimes distintos de administração colonial, escreve Eugénio Tavares em defesa do regime de autonomia, pelo qual “ as leis para as colónias são elaboradas pelas próprias colónias”: “Neste regime, os direitos e os deveres dos cidadãos coloniais e metropolitanos são perfeitamente iguais. A colónia autónoma tem seus funcionários, tem suas colectividades, estas electivas e aqueles, às vezes, de nomeação metropolitana. Que dirigem os seus negócios. É, pois, para Cabo Verde, aconselhável um regime de autonomia”. Por outro lado, repudia os outros dois regimes de administração colonial, i. o  “regime de sujeição”, pelo qual as leis para as colónias são exclusivamente elaboradas na metrópole pelos poderes metropolitanos”, considerando que “em caso algum deve ser hoje aplicado” por sufragar a opinião segundo a qual o mesmo regime é  considerado “uma norma absolutamente anacrónica, como ordem de exploração egoísta, avara, depauperante, sem outro fim que a colheita material às cegas, num exclusivismo de proveitos que arrastou tanta vez as metrópoles a impor deveres sem se lembrarem de outorgar direitos”; ii. o regime de assimilação - na verdade equivalente ao que também  seria conhecido como regime de adjacência político-administrativa- e “pelo qual as leis para as colónias são feitas na metrópole, mas com a colaboração das colónias interessadas”, considerando que “desconvém em absoluto” porque “tem declives, nos quais mais de uma vez se tem visto resvalarem para o embuste mais grosseiro, princípios igualitários”. 

Contrariamente aos nativistas, os claridosos foram convictos defensores de um estatuto de adjacência político-cultural de Cabo Verde em relação a Portugal, atitude certamente adveniente da por alguns considerada famigerada tese da diluição da África na cultura caboverdiana, ferreamente defendida por Baltasar Lopes da Silva no ensaio-livro Cabo Verde Visto por Gilberto Freyre, depois de já em 1931 ter feito publicar no jornal mindelense Notícias de Cabo Verde o artigo “As Ilhas Adjacentes de Cabo Verde”, em clara e inequívoca defesa desse estatuto político-administrativo para Cabo Verde, aliás, à semelhança do estatuto então aplicado aos arquipélagos portugueses dos Açores e da Madeira. 

Seja-me ademais permitido neste concreto contexto transcreverr dois dos  mais paradigmáticos poemas de Eugénio Tavares sobre esta problemática que são os poemas  “Irmãos” e “Revolucão ou Morte” e que certamente espelham o pensamento político republicano tanto dos nativistas como, mais tarde, dos claridosos:

IRMÃOS  

Filhos dos mesmos pais

Nós somos, portugueses,

Irmãos de sangue e coração.

Algumas vezes

Diante da lei iguais,

Mas outras não.

 

No sangue e no amor; 

No sangue, aqui e além;

No amor, porém, 

Sempre, seja em que extremo fôr!

 

Como vós outros, nós também amamos

A nossa Pátria, a Mãe

De vossos pais, que é nossa mãe também; 

Do mesmo tronco somos nós os ramos. 

 

Nossa linda bandeira

Mais a adoramos 

cada vez que o vento

A inclina para a beira

Do abismo truculento.

 

Esta Pátria fizeram-na assim bela

Vossos avós, que são nossos também; 

E agora todos nós â roda dela

De todos nós é Ela a mesma Mãe.

 

E  não vos dói, a vós, decerto, mais

Que a nós, os males que a torturam tanto;

Ao vê-la triste e fraca, o vosso pranto

E o nosso em lealdade são iguais.

 

Dos grandes filhos dela, antigamente,

Ficavam uns no lar a defendê-la,

E outros partiam, valorosamente

A sublimar a luz da sua estrela.

Embora algumas vezes

Por descuidos cruéis andemos sós, 

Nós somos portugueses

Como o sois vós….

 

Somos arroio

Na luta amara-

Demos mútuo apoio, 

Seremos Niágara.

 

Formemos um só povo!

Oh! Demo-nios as mãos!

Sejamos, de alma, irmãos

E a Lusitânia se erguerá de novo!

 

Unidos, brilharemos outra vez

Entre as Nacões,.

Vós sois cinco milhões_

Nós somos dez…

HINOS

I

A PEDRO CARDOSO

Revolução ou morte! Eis o nosso dever.

A paz é, já, um crime; e morte infame, a vida.

E se havermos de, irmãos, um dia apodrecer

No ventre desta terra infausta, tâo querida; 

 

Se a Pátria santa ao mal temos que ver rendida

Se a aurora do combate um dia há-de romper, 

Se a lágrima, e o suor, e o sangue hão-de correr

Avermelhsando o mar e a terra envilecida; 

 

E se hão-de um futuro incerto, derramá-los

Filhos do nosso amor, às mãos de mercenários,

Pátria e filhos- irmãos!- tentemos nós salvá-los!

 

Morte ou Revolução: que não há cobardia

Que iguale a de legar a filhos os calvários 

De nomes com brazões de lodo e vilania!

                                   Brava, 1900

  1. 2. Interessante ainda é que nalguns nativistas a acima referida lealdade bipartida - ou cissiparidade pátrida, na terminologia preferida por Manuel Ferreira - conjugou-se tanto com uma vertente hesperitana ou arsinária, como foram os casos clássicos de José Lopes da Silva e Pedro Monteiro Cardoso na sua busca de uma origem mítica para Cabo Verde alternativa à matriz portuguesa dos descobrimentos marítimos quinhentistas, como também com uma vertente pan-africanista. 

Pedro Cardoso é o exemplo mais representativo e paradigmático dessa vertente pan-africanista do ideário nativista caboverdiano. De tal modo é assim que se pode afirmar que a poesia caboverdiana da afro-crioulitide (ou, mais, impropriamente dito, da negritude ou/e da africanitude crioula, da negro-crioulitude) começou por ser uma poesia que se alimentava da mesma ambiguidade e ambivalência identitárias, características do pan-africanismo nativista, republicano e luso-patriota dos letrados caboverdianos. 

Pedro Cardoso, o Afro do seu muito profícuo pseudónimo para uma parte da sua produção jornalística, apóstolo do socialismo e de Marx, “o mestre venerando” (como consta do poema “Primeiro de Dezembro” de louvação do movimento sindical caboverdiano, in Jardim das Hespérides, Famalicão, Tipografia “Minerva” de Cruz, Sousa & Barbosa, Lda, 1926), que, procurando integrar-se na transpátria lusitana (na pátria monumental portuguesa, como prefere dizer Gabriel Fernandes), enquanto português de lei e de pleno direito, igualmente combateu pela igualdade entre brancos e negros e entre “portugueses europeus e portugueses africanos”, pugnou, em especial nos seus célebres poemas “Ao Egipto” (in Folclore Cabo-Verdiano, editado em 1933 com re-edição em 1986 da Solidariedade Cabo-Verdiana, organizada por Luís Silva com prefácio de Alfredo Margarido) e “Ode a África” (constante do supra-referenciado Jardim das Hespérides), e na sua coluna “A Manduco” do jornal praiense A Voz de Cabo Verde (Praia, Março de 1911 - Setembro de 1918) pelo orgulho da África mediterrânica, faraónica e esfíngica, da Cartago de Aníbal, da Abissínia (Etiópia) do Negus Menelik, da África resistente de Abdel Kader, da raça negra do Haiti alevantada com Toussaint Louverture contra o colonial-esclavagismo, bateu-se pela justiça social e pela disseminação, numa perspectiva positivista, do saber e da instrução, enquanto baluartes da “civilização contra a barbárie” (na certeira interpretação do estudioso americano Russel Hamilton (constante do seu livro Literatura Africana, Literatura Necessária, Volume II, Edições 70, Lisboa, 1984) e, finalmente, exaltou-se, exultando-se, pela valorização da mátria caboverdiana, da língua e das nossas raízes crioulas, ainda que com muitas reservas em relação às nossas manifestações culturais mais ostensivamente afro-crioulas (como o batuco e a tabanca de Santiago, no entanto recolhidas no seu Folclore Cabo-Verdiano, e, por isso, implicitamente valorizadas como manifestações culturais caboverdianas legítimas), ou em nítida contraposição às nossas matrizes afro-negras, consideradas gentílicas. A defesa do crioulo e a sua valorização poética mediante a estilização do folclore poético da ilha do Fogo constitui uma das vertentes mais notáveis e assinaláveis da faceta de intelectual de Pedro Cardoso. A poesia em crioulo desse nativista permite detectar as suas preocupações de justiça social e de dissecação da componente racialista da conflitualidade social caboverdiana da altura, como o atestam alguns textos poéticos publicados no acima referido Folclore Cabo-Verdiano e em outras obras da sua lavra. 

Neste contexto, é de se destacar a luta extenuante desse grande nativista, do “Langston Hughes cabo-verdiano” (segundo qualificação de Teixeira de Sousa em entrevista a Michel Laban (Cabo Verde-Encontro com Escritores, Primeiro Volume, Fundação António de Almeida, Porto, s/d, 1989), na sua equiparação  da luta dos negros americanos pela real igualdade de direitos com a demanda cívico-política dos caboverdianos, em particular de Pedro Cardoso), esse importante precursor, com António Nunes, do nacionalismo caboverdiano no domínio da poesia,  em razão da sua pugna pela inclusão cívica e social da componente racial negra da nossa sociedade, particularmente pertinente se levarmos em consideração a exclusão social e a anatemização como preto-negros dos negros e mulatos pobres da ilha do Fogo, o derradeiro e quase inexpugnável santuário do racismo da oligarquia branca crioula caboverdiana. Tal combate inseria, como referido, uma componente de referência pan-africanista e/ou de exaltação e de recorrência rememorativa às glórias passadas da África cartaginesa e da África esfíngica, faraónica e mediterrânica (como referíramos já no ensaio “A Poética Caboverdeana e Os Caminhos da Nova Geração”, publicado no nº duplo 7/8 da revista de letras, artes e cultura Fragmentos, de Dezembro de 1991) e do seu crucial papel na formação da cultura greco-latina e da cultura euro-ocidental, bem como o desconforto intelectual e civilizacional provocado pelo jugo colonial ocidental. 

Ainda assim, não pode o pan-africanismo de Pedro Cardoso obnubilar a sua compreensão dos Negros no duplo sentido de raça martirizada que escavou as bases para a edificação dos alicerces do mundo, mas também “do sertão os rudes e tisnados filhos/Almas de neve em corpos de carvão”, necessitados, para a sua entrada na modernidade, da instrução e das luzes missionárias da civilização cristã e ocidental, simbolizada nos predicadores da palavra, da compaixão e do amor ao próximo de Jesus Cristo, nas lusas quinas e na língua de Camões. Assim, permanecia tal compreensão eivada de preconceitos jacobinos e assimilacionistas eurocêntricos, legitimadores de supostas mais-valias da empresa colonial e estigmatizantes da alegada barbárie do homem negro-africano “do mato”, e do dilema positivista civilização versus barbárie, conforme detecta certeiramente Russel Hamilton na obra acima referenciada. É o que uma leitura, ainda que breve, das belas estrofes do célebre, mas pouco divulgado, poema «Ode a África» (publicado na íntegra por Manuel Ferreira na terceira edição, de 1985, de A Aventura Crioula), deixa entrever e transparecer: 

“África minha, das Esfinges berço,

já foste grande, poderosa e livre:

Já sob os golpes do teu gládio ingente

Tremeu o Tibre!

 

Como o soberbo baobá frondente,

Os longos braços levantando aos céus,

Ao longe fôste em iberinas plagas

Erguer troféus!

 

Do Tigre os vales e da Ibéria os ecos

O nome teu em tempos aprenderam;

E ao teu poder da Babilónia os filhos

Valor perderam!

 

Dos teus ousados barinéis ovantes

As ondas bravas do Interior aradas,

Por longos anos de opressão gemeram 

Avassaladoras!

 

Entre os antigos já Cartago e Egipto

Foram empórios de poder e fama

Por fim caíram… foram-lhe Calvário,

Pelúsio e Zama

Sim, foste grande, dominaste o mundo;

Mas hoje jazes sem poder sem nada.

E ao férreo jugo das potências gemes

Manietada.

Sôbre o teu corpo, ó meu leão dormente,

 

Vieram bárbaras nações sentar-se;

E quais harpias truculentas, feras,

Nele cevar

 

Ó Pátria minha idolatrada e mesta,

Quando nos campos de batalha erguias

Teus estandartes, forte,

Não sonharas

Tão tristes dias!

Se foste tu quem acendeu o facho

Que fez da Grécia a Glória peregrina

Porque hoje vergas para o chão a fronte

Adamantina?!

Vós que do túmulo dormis à sombra,

«quebrando a lousa do feral jazigo»,

Surgi! Erguei-vos desse pó, guerreiros

Do Egipto antigo

E tu, Aníbal, imortal caudilho,

Que a teus pés viste Roma prosternada,

Ergue-te e empunha novamente a lança

P’la Líbia amada!

Cavalheiroso Abdel Kader e Negus

E vós, valentes filhos dos sertões,

A lanças, chuços expulsai-me todas

Essas nações!

 

Mas que digo? Antes repousai, guerreiros

Bem-vinda seja a paz, seja bem-vinda!

Longe, canhões a vomitar metralhas

E a paz infinda!

 

África minha, das Esfinges berço, 

A voz escuta que te chama e brada:

“Não vês além erguer-se a madrugada?

Por tanto tempo à luz cerraste os olhos,

A doce lei de Cristo desprezando.

Mas eis agora o fim da ignava noite

E o sol raiando!

Curvai os ramos ‘té o chão, olaias!

Leões, rugi na vossa soledade,

Saüdando a estrêla fulgorosa e linda

Da liberdade!

Deixai, deixai que se derrame prestes

A luz da fé no inóspito sertão,

E, a-par-e-passo, profligando as trevas,

A da instrução!

 

Missionários mais que heróis ousados,

Sede bem—vindos! Nobres mensageiros

Da Boa Nova por Jesus pregada,

Sóis verdadeiros!

Não cobiçais riquezas deslumbrantes,

Não vindes, não, pelo oiro que seduz;

Ferro homicida não vibrais: vossa arma

É uma cruz!

No cumprimento da missão sublime

Tudo afrontais em nome do Senhor

Golpes, insultos, frio e fome, doenças,

A morte, o horror!

 

Buscar não vindes, trazer sim, pioneiros!

Da augusta crença a árvore frondosa

Plantai, Apóstolos da paz, na Líbia

Triste e inditosa!

 

A amar as lusas quinas ensinai-lhes

E a orar a Deus na língua de Camões! 

Breve outros vates ouvireis cantando

Novos varões/(…)

 

Egipto! berço da Isis lacrimosa,

Do sacro Nilo de caudais enchentes:

Pátria do Faraós armipotentes

E da Hipatia e Cleópatra formosa!/(…) 

Ergue-te, pois! e o jugo anglo-otomano

Sacudindo, proclama soberano

A tua independência entre as nações!

Que no halo envolto de uma glória infinita,

Do alto dessas pirâmides ainda

Lanças ao mundo rútilos clarões

Vós sois, vós sois 

Pirâmides de Mênfis 

De heróicos feitos poema imorredoiro

Em que se gravam dos Menés, os nomes

Em letras de ouro! (..) 

Rubras de glória, as Águias napoleónicas

Viste passar altivas, vencedoras…

E hoje, que é delas? Pó e cinzas, trevas/ 

Aterradoras!

Cantai, tem cada povo a sua Ilíada!

Cantai da Líbia as sempiternas glórias!

Que pergaminhos há de tão 

brilhantes/E altas memórias”. 

Dir-se-ia que o poema se espartilha, dilacerado, entre i. uma consciência eufórica, rebelde e pan-africanista, constante do poema “Ao Egipto” e que celebra figuras gloriosas da História africana, como o cartaginês Aníbal, bem como alguns proeminentes heróis e mártires da resistência africana à empresa colonial, como Abdel Kader ou o Négus da Abissínia, e ii. uma consciência conformada - atente-se que posteriormente aditada ao poema “Ao Egipto” e constante do verso iniciado em “Mas que digo“ e concluída em  “a orar a Deus na língua de Camões”-, manietada pela educação escolar cristã-ocidental e pela percepção da inelutabilidade, da inevitabilidade, tida, todavia, por necessária, da colonização “civilizadora” europeia, ou domesticada pelo patriotismo luso e pela crença nas vantagens da disseminação da civilização cristã e ocidental, não pela força das armas, mas pela força persuasiva do cristianismo e da sua “intrínseca bondade”. Trata-se, pois, segundo Pedro Cardoso, da salvação do homem africano não só da pagã ignorância em relação à doutrina cristã, como também do desconhecimento não só das suas glórias próprias, passadas, e do seu contributo para a edificação da civilização ocidental, como também do seu resgate das trevas de uma alegada barbárie, radicadas, iletradas e pré-científicas, no sertão africano, mas também na glória efémera da altivez dos conquistadores europeus, representados pelas águias napoleónicas, carregadas de orgulhosa fatuidade. Afinal, as pirâmides de Mênfis sobreviveriam à sanha colonial, para testemunhar a eternidade, qual “poema imorredoiro” da “África, das esfinges berço”, e o ressurgimento de uma África vindoura, próspera e orgulhosa dos seus feitos, protagonizados por “novos varões” africanos e devidamente cantados pelos seus vates (“breve outros vates ouvireis cantando/Novos barões”), pois que “cada povo tem a sua Ilíada” e são “sempiternas as glórias da Líbia” (neste caso, sinónima da África toda) e “brilhantes os seus pergaminhos” e “altas as suas memórias”.

Anote-se  que as expressões mais manifestamente afro-crioulas da cultura caboverdiana são referidas em vários poemas de Jorge Barbosa e de Osvaldo Alcântara - pseudónimo literário para a poesia de Baltasar Lopes da Silva-, tendo sido Jorge Barbosa ademais o autor do poema “África”, trazendo ao palco da História uma África muito expectante da sua hora-clarim, bem como de vários poemas de denúncia anti-colonial, do trabalho serviçal nas roças de São Tomé e Príncipe bem como contra o segregacionismo racista anti-negro nos Estados Unidos, escritos sobretudo nos anos sessenta do século passado e mantidos em parte inéditos, em razão da vigência da censura colonial-fascista.

Actualmente, poucos são os poetas caboverdianos nos quais se não detecte uma vertente afro-crioulista, anti-racista e fraternitária na sua apreensão e perceção da génese e da configuração actual da crioulidade caboverdiana.  

(…)

por José Luís Hopffer Almada
A ler | 24 Junho 2023 | nacionalismo caboverdiano, nativismo, pan-africanismo